Resumo: O presente trabalho possui como objeto principal o estudo da fraude contra credores e suas características fundamentais estampadas no Código Civil Brasileiro.
Palavras chave: Fraude, credores, anulabilidade, ação pauliana.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Breves considerações sobre a fraude contra credores. 3. Casos de fraude contra credores: 3.1 Negócios de transmissão gratuita de bens e de remissão de dívida; 3.2 Negócios de transmissão onerosa; 3.3 Pagamento antecipado de dívidas; 3.4 Outorga de direitos preferenciais. 4. Ação pauliana ou revocatória. 5. Diferença entre fraude contra credores e fraude à execução. 6. Conclusões. 7. Referências bibliográficas.
1. Introdução
A fraude contra credores está situada no rol dos defeitos do negócio jurídico, ao lado do erro, dolo, coação, estado de perigo e lesão. Segundo o artigo 171, II, do Código Civil, é anulável o negócio jurídico praticado por vício resultante de fraude contra credores.
Com exceção da fraude contra credores, os demais defeitos do negócio jurídico são classificados como vícios de consentimento, pois resultam de manifestação de vontade que não corresponde com o íntimo e verdadeiro desejo do agente.
Por sua vez, na fraude contra credores, o problema não recai sobre a vontade, uma vez que o ato de alienação do patrimônio do devedor é deliberado e consciente[1], não conduzindo a um desacordo entre a vontade do agente e a sua manifestação no mundo exterior. Aqui, a falha do negócio é condenada pela repercussão social, já que o negócio malfere os princípios da boa-fé e da socialidade.
Nos primórdios da civilização, o próprio corpo do devedor era a garantia das obrigações assumidas. Todavia, essa duríssima execução corporal foi banida do ordenamento jurídico com o advento da Lex Poetelia Papiria, que, inspirada em sentimentos humanitários, transferiu a garantia corporal para o patrimônio do devedor[2].
Desse modo, com o surgimento da Lex Poetelia Papiria, consagrou-se o princípio da responsabilidade patrimonial, pelo qual o patrimônio do devedor é que responde por suas dívidas. Por isso, o ordenamento jurídico brasileiro somente permite a prisão civil por dívida decorrente de prestação alimentícia.
2. Breves considerações sobre a fraude contra credores
Considera-se fraude contra credores toda diminuição maliciosa levada a efeito pelo devedor, com o propósito de desfalcar a garantia patrimonial, em detrimento dos direitos creditórios alheios[3].
Não se constitui fraude contra credores qualquer ato de diminuição do ativo patrimonial por parte do devedor, mas somente a diminuição intencional do patrimônio, praticada com a finalidade de prejudicar credores. Ora, como o patrimônio do devedor é a garantia geral dos credores, qualquer subtração ardilosa e substancial, a ponto de não mais garantir o pagamento de dívidas, configura fraude contra credores.
Na fraude contra credores o devedor deve ser insolvente ou ter ficado insolvente com o ato de disposição patrimonial, porquanto se ele é solvente e possui ativo suficiente para liquidar seus débitos, grande é a sua liberdade de disposição de seus próprios bens, que é inerente ao direito constitucional de propriedade.
Somente ocorre fraude contra credores no caso das garantias dadas pelo devedor serem genéricas, visto que no caso de ser uma garantia específica[4], essa fica sujeita a um vínculo de direito real, que é destinado ao cumprimento da obrigação. Garantia genérica é aquela que não se constitui como garantia real (hipoteca, penhor e anticrese), sendo constituída pelos bens do devedor. Em tal hipótese, esse credor, que se chama quirografário (do grego chirografo – escrito à mão), não dispõe de garantia específica, contando apenas com a garantia comum a todos os credores, que consiste no patrimônio do devedor (Cód. Proc. Civil, art. 591)[5].
A caracterização da fraude contra credores depende da presença de dois elementos. Um elemento objetivo (eventus damni), que decorre da insolvência do devedor e um elemento subjetivo (consilium fraudis), que é a própria má-fé decorrente do intuito malicioso de ilidir os efeitos da cobrança[6].
Destarte, existem três requisitos de caráter geral indispensáveis à revocação dos bens alienados em fraude contra credores: a existência de um crédito quirografário por parte do impugnante, a insolvência do devedor e a anterioridade do crédito ao ato fraudulento[7].
3. Casos de fraude contra credores
Não só nas transmissões onerosas de bens pode ocorrer fraude contra credores, mas também nos atos de transmissão gratuita ou de remissão de dívida, no pagamento antecipado de dívidas vincendas e na constituição de garantias a algum credor quirografário.
3.1 Negócios de transmissão gratuita de bens e de remissão de dívida
O artigo 158, do Código Civil, deixa claro que os negócios de transmissão gratuita de bens e de remissão de dívida, se o devedor pratica-los mediante estado de insolvência ou for reduzido à insolvência, poderão ser anulados pelos credores quirografários como lesivos aos seus direitos. Nessas hipóteses, a fraude contra credores será configurada pelo simples estado de insolvência, independentemente da demonstração do conluio fraudulento, que é presumido pela lei.
O caput do presente dispositivo confere legitimidade aos credores quirografários para anularem o ato fraudulento, já que não possuem garantias específicas para o recebimento de seus créditos. Essa é a regra, pois os credores com garantia real têm a segurança de seu reembolso num ônus real[8].
Como o devedor é insolvente ou torna-se insolvente pela disposição gratuita de seus bens e pelo perdão da dívida, a parte do seu patrimônio que foi perdoada ou doada é, na realidade, porção daquilo que pertence indiretamente a seus credores, restando configurada a fraude contra credores.
A remissão de dívida, tal qual a doação de bens, também constitui uma liberalidade. As dívidas ativas do devedor constituem parte de seu patrimônio e, em caso de perdão, seu conjunto de bens é proporcionalmente reduzido, o que faz com que seus credores tenham legítimo interesse em pleitear a declaração de ineficácia do perdão, para que os créditos remetidos se reincorporem no ativo do devedor[9].
3.2 Negócios de transmissão onerosa
Ao contrário dos negócios de disposição gratuita dos bens e de perdão da dívida, na transmissão onerosa ocorre mudança de panorama, porque entram em choque dois interesses igualmente sustentáveis: o do adquirente de boa-fé e o dos credores do alienante.
Em que pese o ordenamento jurídico garantir aos credores o recebimento de seus créditos, é certo que ele também assegura a firmeza das relações negociais, não permitindo que pessoas de boa-fé possam ser ludibriadas na justa expectativa de que o negócio revestia-se de toda a legalidade e segurança[10]. Caso o adquirente aja de boa-fé, sem conhecer do estado de insolvência do alienante, prevalecerá o seu interesse sobre o dos credores quirografários.
Entretanto, tal qual está disposto no artigo 159, do Código Civil, serão anuláveis os contratos onerosos do devedor insolvente, quando a insolvência for notória ou houver motivo para ser conhecida por parte do outro contratante. Aqui, a má-fé será constituída pela mera ciência por parte do adquirente do estado de insolvência do devedor.
A insolvência pode ser notória ou presumida. Será notória quando for de conhecimento público, que ocorre nos casos de protestos de títulos, ações judiciais que impliquem a vinculação de seus bens, ao passo que será presumida quando adquirente tinha especiais razões para saber do estado financeiro do alienante, quer por razão de parentesco, quer pelo preço do contrato ser vil, etc.. Nesse passo, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, presumindo a ocorrência de fraude decorrente de relação de parentesco, decidiu:
Fraude contra credores. Venda de veículo penhorado entre irmãos. Conluio fraudulento presumido pelo parentesco. Situação de insolvência caracterizada e negócio jurídico celebrado após a constituição do crédito. Art. 106 do CC/16 e art. 159 do CC/02. Improcedência dos embargos. Recurso improvido[11].
3.3 Pagamento antecipado de dívidas
O artigo 162, do Código Civil, coloca em situação de igualdade todos os credores quirografários, sendo aplicável aos casos de pagamento de dívidas ainda não vencidas, visto que no caso de dívida vencida é obrigação do devedor efetivar o adimplemento, não configurando ato fraudulento para efeito de ação pauliana[12].
O pagamento antecipado de dívidas corresponde a um ato de liberalidade por parte do devedor. Assim, por ter igual direito à garantia patrimonial do devedor comum, o pagamento antecipado a alguns escolhidos desfalca indevidamente a garantia para os demais, pois é correto que em caso de insolvência civil abre-se concurso creditório, no qual os credores sem preferências entram em rateio proporcional aos seus créditos.
3.4 Outorga de direitos preferenciais
A outorga de direitos preferenciais ocorre em razão da concessão de direitos reais de garantia (hipoteca, penhor e anticrese) pelo devedor insolvente a algum credor, que o coloca em posição mais vantajosa do que os demais e malfere a igualdade que deveria existir entre eles. A garantia é anulada e o credor retorna ao seu status quo ante, continuando o indivíduo como credor quirografário.
O artigo 163, do Código Civil, visa fazer com que os credores se mantenham em situação de igualdade, sendo cediço que a outorga de um direito real de garantia a um dos credores quirografários faz com que ele deixe de ser quirografário e torne-se preferencial. Com isso, todo o valor da coisa será destinado exclusivamente ao pagamento do crédito do credor preferencial, restando o que sobrar para o rateio entre os demais credores.
Nesse passo, os outros credores receberão uma quantia menor para que o beneficiado com a garantia real possa receber mais. É essa desigualdade que a lei quer evitar e, por essa razão, presume fraudulento o procedimento do devedor para que torne sem efeito a garantia dada.
4. Ação pauliana ou revocatória
Surgiu no direito romano com o pretor Paulo, onde o devedor deixou de responder fisicamente por seu débito, passando o seu patrimônio a ser garantia de suas dívidas. Trata-se de uma ação que se destina a provocar a anulação do negócio jurídico praticado em fraude contra credores, com a finalidade de buscar a equidade natural das coisas, consistindo numa ação essencialmente equitativa, socialmente útil, eminentemente moralizadora[13].
Possui legitimidade ativa para a sua propositura os credores quirografários que possuíam crédito anterior ao ato fraudulento.
Ao credor com garantia real não assiste esse direito por falta de interesse econômico ou moral, uma vez que os bens que acompanham os créditos os seguem por toda a parte, mesmo no caso de alienação.
Consoante o artigo 161, do Código Civil, a ação pauliana pode ser ajuizada contra três possíveis réus: o devedor insolvente, a pessoa que com ele celebrou a estipulação considerada fraudulenta e terceiros adquirentes que hajam procedido de má-fé. No caso, trata-se de litisconsórcio passivo necessário, posto que sua formação é obrigatória, devendo a decisão ser dada de forma uniforme.
5. Diferença entre fraude contra credores e fraude à execução
A fraude contra credores é um defeito do negócio jurídico regulado pelo Código Civil, enquanto a fraude à execução é um incidente do processo disciplinado pelo Código de Processo Civil. Com isso, na primeira são atingidos apenas interesses privados dos credores, ao passo que na última o ato do devedor executado viola a própria atividade jurisdicional do Estado.
A fraude contra credores ocorre num momento em que a dívida é existente, mas não há ação em andamento, enquanto a fraude à execução pressupõe a existência de demanda condenatória ou executiva contra o devedor já citado. Assim sendo, a linha mestra de separação entre a fraude contra credores e a fraude à execução é a citação válida de demanda condenatória ou executiva.
A anulabilidade do negócio jurídico entabulado com fraude contra credores demanda ação própria, que é a ação pauliana ou revocatória, à medida que a ineficácia do negócio firmado com fraude à execução pode ser decretada nos próprios autos, independentemente de ação autônoma.
6. Conclusões
A fraude contra credores ganhou ampla expressão após a edição da Lex Poetelia Papiria, posto que a partir desse momento o patrimônio, e não mais o corpo do devedor, passou a responder por seus débitos. Assim, a proteção ao patrimônio do devedor passou a ser tutelada pela legislação, porque em caso de inadimplemento é o patrimônio que será a garantia de recebimento da dívida.
O legislador brasileiro foi bastante exato ao descrever as hipóteses configuradoras de atos suscetíveis de fraude contra credores, para proteger o recebimento de dívidas por parte dos credores quirografários.
A ação pauliana destina-se a provocar a anulabilidade do negócio celebrado com o vício de fraude contra credores, possuindo, por consequência, nítida natureza constitutiva negativa.
Por fim, não se deve confundir a fraude contra credores com a fraude à execução, porquanto a primeira é instituto de direito material, enquanto a segunda é instituto de direito processual.
BRASIL, Código Civil.
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[1] RODRIGUES, Sílvio, Direito Civil, 34. ed., São Paulo, Saraiva, 2003, v.1, p.183
[2] MONTEIRO,Washington de Barros, Curso de Direito Civil, 38. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, v.1, p.225
[3] PEREIRA,Caio Mário da Silva, Instituições de Direito Civil, 19 ed., Rio de Janeiro, Forense, 2000,v.1, p.343.
[4] Garantia específica é aquela que se estabelece por meio da hipoteca, penhor ou anticrese.
[5] MONTEIRO, Washington de Barros, op. cit., p.226.
[6] RODRIGUES, Sílvio, op.cit., p.230.
[7] THEODORO JÚNIOR, Humberto, Comentários ao novo Código Civil, 2.ed, Rio de Janeiro, Forense, 2003, v.3, t.1: Livro III – dos fatos jurídicos: do negócio jurídico, p.323-324.
[8] LOTUFO, Renan, Código Civil Comentado, 2.ed., São Paulo, Saraiva, 2004, v.1, p.446
[9] RODRIGUES, Sílvio, op. cit., p.231.
[10] RODRIGUES, Sílvio, op. cit., p.232.
[11] Apelação Cível nº 620.988.4/3, 4ª Câmara de Direito Privado, Relator Desembargador Maia da Cunha.
[12] THEODORO JÚNIOR, Humberto, op. cit., p.363-364.
[13] MONTEIRO, Washington de Barros, op. cit. p.231
Procurador Federal. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia/MG. Especializando em Direito Público pela Universidade Anhanguera-UNIDERP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NUNES, Luís Henrique Assis. A fraude contra credores Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 out 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41089/a-fraude-contra-credores. Acesso em: 23 dez 2024.
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