RESUMO: O presente artigo tem como objetivo tecer algumas considerações sobre o cabimento de ação rescisória por violação literal de lei no que se refere às sentenças transitadas em julgado nos casos de desaposentação, com enfoque na Súmula 343 do Supremo Tribunal Federal.
Palavras-chave: ação rescisória; desaposentação; Súmula 343 do STF; violação literal de lei.
A ação rescisória é aquela por meio da qual se pede a desconstituição de sentença transitada em julgado, com eventual rejulgamento, a seguir, da matéria nela julgada[1].
Trata-se de ação cuja natureza jurídica é a de ação autônoma de impugnação[2] e fundamenta-se na existência de um conflito entre as garantias constitucionais da coisa julgada (CF, art. 5º, XXXVI) e da inafastabilidade da jurisdição (CF, art. 5º, XXXV).
De um lado, pretende-se proteger a segurança jurídica e, de outro, a necessidade de reparação de injustiças materiais contidas em decisões transitadas em julgado.
O ajuizamento da ação rescisória deve ser excepcionalíssimo, porquanto a coisa julgada é garantia constitucional relevante para a manutenção do Estado Democrático de Direito, na medida em que traz segurança jurídica a todos os cidadãos que confiaram a pacificação de seus conflitos ao Poder Judiciário.
A sociedade espera que a coisa julgada obtida após o devido processo legal não seja violada nem questionada por qualquer ato estatal ou particular. Nesse sentido, o desrespeito à autoridade da coisa julgada representa descrédito e desestabilização do poder jurisdicional conferido ao Estado.
Conforme observa Cândido Rangel Dinamarco, a ação rescisória é um meio excepcional no sistema, admissível apenas em hipóteses taxativas:
porque consiste em meio de desfazer a coisa julgada (constitucionalmente garantida), só é admissível nos casos estritos em lei, sem possibilidade de ampliações e sempre excluído o reexame de provas (salvo em caso de ação rescisória proposta com fundamento em falsidade probatória)[3].
O Código de Processo Civil concede o prazo de dois anos para o ajuizamento da ação rescisória nas hipóteses previstas no artigo 485[4].
No que se refere especificamente à propositura de ação rescisória contra decisão de mérito por violação literal de lei, deve-se entender “lei” em sentido amplo, incluindo a Constituição, Lei Complementar, Ordinária ou Delegada, Medida Provisória, Decreto, Resolução e Ato Normativo[5], bem como a Súmula Vinculante, cuja interpretação tem força normativa.
Ocorre que existe uma linha tênue que separa, de um lado, a tentativa velada de reexame da aplicação da lei em matéria já decidida e acorbertada pelo manto da coisa julgada e, de outro lado, a necessidade de reparação de injustiças materiais contidas em decisões transitadas em julgado.
Em princípio, o Supremo Tribunal Federal consolidou entendimento de que não cabe ação rescisória por violação literal de lei quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais:
Súmula 343 - Não cabe ação rescisória por ofensa a literal dispositivo de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais.
Conforme observam Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Luiz Arenhart, as decisões que se baseiam em interpretações controvertidas não abrem ensejo para a ação rescisória:
não se admite a utilização da ação rescisória nos casos em que exista divergência sobre a interpretação estabelecida na sentença (...). A ação rescisória constitui remédio extremo, e assim não pode ser confundida com mero recurso. Em outras palavras: a sentença que possui interpretação divergente daquela que é estabelecida pela doutrina e pelos tribunais, exatamente pelo fato de que interpretações diversas são plenamente viáveis e lícitas, não abre ensejo para ação rescisória[6].
Nesse sentido, caso o julgador tenha optado por uma interpretação razoável dentre vários nortes interpretativos para a mesma lei, enfrentando e fundamentando a sua decisão, não caberia ação rescisória por ausência de violação literal de lei.
Apesar disso, constata-se o aumento da flexibilidade dos Tribunais na aplicação da Súmula 343 do STF com a consequente admissibilidade do reexame da matéria inclusive nos casos em que a decisão transitada em julgado enfrentou tema controvertido nos tribunais.
José Carlos Barbosa Moreira reconhece que há exceção à Súmula 343 do STF quando a decisão transitada em julgado fundamenta-se em norma constitucional controvertida nos Tribunais:
Assentou a jurisprudência da Corte Suprema que fica preexcluída a rescisão quando seja “de interpretação controvertida nos tribunais” a norma supostamente violada pela decisão rescindenda, a menos que se trata de texto constitucional[7].
Com efeito, tem-se admitido o ajuizamento de ação rescisória por violação literal de lei se a matéria controvertida referir-se à norma constitucional (STF-Pleno, RE 328.812-EDcl, Min. Gilmar Mendes, j. 6.3.08, DJU 2.5.08)[8].
Por outro lado, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial nº 1.026.34–DF, admitiu o ajuizamento de ação rescisória quando a matéria controvertida referir-se também à lei federal, o que representa alargamento da flexibilidade na aplicação da Súmula 343 do STF:
Por todas essas razões e a exemplo do que ocorreu no STF em matéria constitucional, justifica-se a mudança de orientação em relação à súmula 343/STF, para o efeito de considerar como ofensiva a literal disposição de lei federal, em ação rescisória, qualquer interpretação contrária à que lhe atribui o STJ, seu intérprete institucional.
De acordo com o Ministro Relator Teori Albino Zavascki no julgamento do REsp 1.026.34-DF, a Súmula 343 do STF tem como fundamento a segurança jurídica, porém, a uniformidade da interpretação da lei em prestígio da isonomia merece prevalecer, admitindo-se o ajuizamento de ação rescisória nos casos em que há interpretação controvertida:
(...) Embora tenha a seu favor o argumento da segurança jurídica, é difícil justificar, após a Constituição de 1988, a manutenção dessa súmula. Ao criar o STJ e lhe dar a função essencial de guardião da legislação federal (e, portanto, de seu intérprete oficial), a Constituição impôs ao Tribunal o dever de manter a integridade do sistema normativo, a uniformidade de sua interpretação e a isonomia na sua aplicação. (...)
Como se vê, a própria jurisprudência vem admitindo o cabimento de ação rescisória por violação literal de lei inclusive nos casos em que a decisão foi fundamentada em matéria controvertida nos tribunais, desde que haja ofensa à Constituição Federal ou, até mesmo, à lei federal.
Tais exceções prestigiam a reparação de supostas injustiças contidas nas decisões, mas oferecem risco à estabilidade da coisa julgada, por autorizarem verdadeira rediscussão da matéria controvertida, dentro do prazo de dois anos a contar do trânsito em julgado.
Nesse contexto, nas questões controvertidas que envolvam norma constitucional ou lei federal, somente resta o efetivo respeito à coisa julgada depois de decorrido in albis o prazo de dois anos para o ajuizamento da ação rescisória.
O tema adquire especial relevância nos casos de desaposentação transitados em julgado, uma vez que a questão é atual e contém controvérsia tanto à violação de normas constitucionais quanto de lei federal.
Com efeito, a desaposentação envolve o dever de toda a sociedade contribuir para o financiamento da Seguridade Social, direta e indiretamente, porquanto organizada sob a forma de regime geral de caráter contributivo e filiação obrigatória, e baseada no princípio da solidariedade, com equidade na forma de participação e custeio e diversidade da base de financiamento, conforme previsto nos artigos 194, 195 e 201 da Constituição Federal.
Não obstante, a questão também está relacionada à lei federal, na medida em que se discute a aplicação da lei n. 8.213/91 que veda a utilização das contribuições dos trabalhadores em gozo de aposentadoria para a obtenção de nova aposentadoria ou elevação da já auferida:
Art. 18, § 2º O aposentado pelo Regime Geral de Previdência Social que permanecer em atividade sujeita a este regime, ou a ela retornar, somente tem direito à reabilitação profissional, ao auxílio-acidente e aos pecúlios, não fazendo jus a outras prestações, salvo as decorrentes de sua condição de aposentado, observado o disposto no art. 122 desta Lei.
Apesar do acima exposto, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região vem julgando improcedentes as ações rescisórias, com fundamento na Súmula 343 do STF, por considerar que não se trata de violação literal de lei, sob o fundamento de que há controvérsia sobre o tema nos tribunais:
PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO RESCISÓRIA. DESAPOSENTAÇÃO. DIREITO RECONHECIDO PELO E. STJ EM SEDE DE RECURSO REPETITIVO. VIOLAÇÃO À LITERAL DISPOSIÇÃO DE LEI. INOCORRÊNCIA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. I - A possibilidade de se eleger mais de uma interpretação à norma regente, em que uma das vias eleitas viabiliza o devido enquadramento dos fatos à hipótese legal descrita, desautoriza a propositura da ação rescisória, a teor da Súmula n. 343 do STF. (...) Grifei. (TRF3, AR - AÇÃO RESCISÓRIA – 9485, Processo: 0020922-86.2013.4.03.0000, UF: SP, Órgão Julgador: 3ª Seção, Data do Julgamento: 10/07/2014, Fonte: e-DJF3 Judicial 1 DATA:23/07/2014, Relator Desembargador Federal Sérgio Nascimento)
Por outro lado, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região tem admitido a discussão acerca da desaposentação em sede de ação rescisória e sobrestado o julgamento do feito até que a matéria seja julgada pelo Supremo Tribunal Federal (RE 661256/DF).:
Trata-se de ação rescisória ajuizada pelo INSS objetivando a desconstituição de acórdão desta Corte que acolheu o pedido da parte autora de renúncia ao benefício de aposentadoria que percebe e condenação da autarquia previdenciária a conceder-lhe um novo benefício, mais vantajoso, mediante a soma do tempo de contribuição anterior e posterior à aposentadoria que titulariza. (...) Assim, com o intuito de prevenir a promoção de atos judiciais eventualmente passíveis de retratação nesta instância, e levando em conta o considerável volume de demandas semelhantes, entendo prudente aguardar a definição constitucional da matéria, razão pela qual, com fundamento no art. 1º, § 1º, da Resolução nº 98, de 23-11-2010, desta Corte, que regula os procedimentos relativos à tramitação dos recursos cuja matéria foi submetida ao regime de repercussão geral (art. 543 - B, do CPC), determino o sobrestamento do presente feito. Tendo sido encerrada a instrução do presente feito, aguardem os autos em Secretaria até o julgamento final da controvérsia pelo STF, retornando, após, conclusos para julgamento. Publique-se. Intimem-se as partes. Grifei. (TRF4, Classe: Ação Rescisória, Processo: 5010105-45.2013.404.0000 UF: Data da Decisão: 27/09/2013 Orgão Julgador: TERCEIRA SEÇÃO, Fonte D.E. 27/09/2013, Relator CELSO KIPPER).
Data maxima venia ao julgado do Egrégio Tribunal da 3ª Região acima exposto, partindo-se do pressuposto de que a doutrina e a jurisprudência assentaram entendimento de que a Súmula 343 do STF não deve ser aplicada quando há violação à norma constitucional e, até mesmo, à lei federal, impende concluir que é cabível ação rescisória nos casos de desaposentação.
Em outras palavras, ainda que a desaposentação seja um tema extremamente controvertido nos tribunais, por envolver discussão acerca de norma constitucional e lei federal, há entendimento de que deve ser admitido o cabimento de ação rescisória por violação literal de lei, seja nos casos de procedência seja de improcedência, afastando-se excepcionalmente a aplicação da Súmula 343 do STF.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A ação rescisória é um meio excepcional de correção de injustiças materiais contidas em decisões transitadas em julgado nas hipóteses taxativas previstas no Código de Processo Civil, dentre as quais está a violação literal de lei.
A existência de matéria controvertida nos tribunais, enfrentada na sentença transitada em julgado, não enseja, em regra, o ajuizamento de ação rescisória por violação literal de lei.
Nesse sentido, é o entendimento consolidado na Súmula 343 do Supremo Tribunal Federal.
Todavia, a doutrina e a jurisprudência assentaram exceção à Súmula 343 do STF naquelas hipóteses em que, apesar de existir controvérsia nos tribunais, a matéria envolva norma constitucional e, até mesmo, lei federal.
Tendo em vista que a desaposentação é matéria que está estritamente relacionada à matéria constitucional e à lei federal, conclui-se que a decisão transitada em julgado pode representar violação literal de lei para fins de propositura de ação rescisória.
REFERÊNCIAS
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 6. ed. rev. atual. v. III. São Paulo: Malheiros, 2009.
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Luiz. Processo de Conhecimento. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. V. 15. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Forense, 2010.
[1] MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. V. 15. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 100.
[2] Ibidem, p. 100.
[3] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 6. ed. rev. atual. v. III. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 723.
[4] Art. 485 - A sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando:
I - se verificar que foi dada por prevaricação, concussão ou corrupção do juiz;
II - proferida por juiz impedido ou absolutamente incompetente;
III - resultar de dolo da parte vencedora em detrimento da parte vencida, ou de colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei;
IV - ofender a coisa julgada;
V - violar literal disposição de lei;
VI - se fundar em prova, cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou seja provada na própria ação rescisória;
VII - depois da sentença, o autor obtiver documento novo, cuja existência ignorava, ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável;
VIII - houver fundamento para invalidar confissão, desistência ou transação, em que se baseou a sentença;
IX - fundada em erro de fato, resultante de atos ou de documentos da causa.
[5] MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. V. 15. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 131.
[6] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Luiz. Processo de Conhecimento. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 665.
[7] MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. V. 15. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 132.
[8] NEGRÃO, Theotônio; GOUVÊA, José Roberto F. Código de Processo Civil e legislação em vigor. 41. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 638.
Procuradora Federal. Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo. Especialista em Direito Processual Civil pela Escola Superior da Procuradoria Geral do Estado e Escola Superior da Advocacia-Geral da União.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: TSUTSUI, Priscila Fialho. A ação rescisória nos casos de desaposentação Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 out 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41281/a-acao-rescisoria-nos-casos-de-desaposentacao. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Maurício Sousa da Silva
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Por: DESIREE EVANGELISTA DA SILVA
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