1. INTRODUÇÃO
O muito complexo sistema tributário e a velocidade e abundância das relações econômicas travadas no seio social tornam imprescindível que a tributação se dê de forma racional, econômica, eficiente e sempre com vistas a alcançar a totalidade dos fatos tributários. As idéias de justiça e de isonomia exigem que a tributação atinja a todos os contribuintes, a fim de que ocorra a adequada distribuição dos ônus de se viver em sociedade. A necessidade de o Estado auferir recursos suficientes para a realização de seus fins igualmente aponta para tal necessidade.
Diante de tal inegável realidade, as técnicas de praticidade tornam-se inquestionavelmente necessárias para a execução da tributação.
Por outro lado, a experiência aponta a frequente insatisfação doutrinária em relação às diversas técnicas de praticidade que vêm sendo empregadas. As críticas mais comuns são que, em nome do ideal de praticidade, direitos fundamentais do contribuinte vêm sendo amesquinhados e, com vistas a um incremento indevido da arrecadação, a realidade sobre a qual deve se assentar a tributação vem sendo deturpada por meio de presunções indevidas.
2. A PRATICIDADE E O DIREITO TRIBUTÁRIO
O tema a ser tratado tem sido alvo de debates e controvérsias na atualidade; trata-se da aplicação da praticidade e os seus limites na seara tributária.
Praticabilidade é o nome que se dá a todos os meios e técnicas utilizáveis com o objetivo de tornar simples e viável a execução das leis. Como princípio geral de economicidade e exeqüibilidade inspira o direito de forma global. Toda lei nasce para ser aplicada e imposta, por isso não falta quemm erija a praticabilidade a imperativo constitucional implícito (DERZI, 2008, p. 138/139).
A lei, com vistas à segurança ou à praticidade, se utiliza de abstrações conceituais generalizantes fechadas (presunções, ficções, enumerações taxativas, somatórios e quantificações).
Não obstante, nesse ramo do Direito, a praticidad,e como princípio geral e difuso, além de informar as normas de modo amplo, assume significação muito especial. Ela se apresenta proundamente marcante. A principal razão dessa acentuada expressão da praticidade reside no fato de que o Direito Tributário enseja aplicação em massa de suas normas, a cargo da Administração, ex officio e de forma contínua. (DERZI, 2008, p. 320).
A praticidade engloba métodos de simplificação da execução da lei tributária cujo objetivo é a aplicação em massa dessa legislação. Se por um lado é inconcebível a existência de um sistema tributário que prescinda de tais instrumentos, por outro, não raro tais medidas, que desconsideram particularidades do caso concreto em prol da eficiência, colidem com princípios tributários, a exemplo da capacidade contributiva e da legalidade.
Assim, o estudo do fenômeno da praticidade, e notadamente, os limites de sua legítima aplicação, apresenta relevância para a compreensão da tributação, seja no campo teórico, seja na prática fiscal.
O princípio da isonomia determina que a tributação atinja a todos que realizarem o fato gerador. Porém, a realização desse princípio basilar impõe às Administrações tributárias um colossal dever, que é o de alcançar um universo amplíssimo de contribuintes que diuturnamente realizam diversos fatos geradores de tributo.
A necessidade de aplicação massificada da lei tributária atende a este princípio, porém reclama instrumentos eficientes, de maneira que a manutenção da estrutura fiscalizatória não se torne um fim em si mesmo, mas um instrumento vocacionado à aplicação da lei entre os contribuintes, da forma mais ampla e isonômica possível.
Por outro lado, a necessidade de incrementar as receitas para com elas fazer frente aos objetivos do Estado não pode, evidentemente, ser atendida apenas pela elevação da carga tributária (criação de tributos, aumento dos fatos geradores, bases de cálculo e alíquotas), o que tornou vital o aperfeiçoamento da arrecadação. Foram então concebidos mecanismos e técnicas com o objetivo de facilitar e aumentar a arrecadação, garantindo que a lei tributária alcançasse o maior número possível de contribuintes.
A doutrina alemã entende que o modo de pensar, que chama impropriamente de tipificante, no Direito Tributário, representa a quebra do princípio da legalidade. É um arranhão à concepção tradicional da legalidade, embora para alguns, necessário e inevitável. Não é interpretação do Direito, mas criação, na norma executiva, de padrões que desprezam as diferenças individuais dos casos isolados (em tese, relevantes do ponto de vista da norma legal que se executa), destinado as simplificar a execução. (DERZI, 2008, p. 320/321)
O caso das taxas é emblemático. Como sabido, a base de cálculo das taxas deve mensurar o custo da atuação estatal. Porem, a praticidade impõe que o valor do tributo se satisfaça com uma equivalência razoável entre o custo real e o montante que o contribuinte será compelido a pagar. Do contrário, chegar-se-ia ao absurdo de a taxa de recolhimento de resíduos sólidos exigir que o lixeiro pesasse o lixo recolhido de cada residência para ao fim do mês apurar-se o custo real do serviço em relação a cada contribuinte. Este exemplo é referenciado por PAULSEN (2007, p. 801/802), ao comentar parecer de Sacha Calmon acerca da proporcionalidade e praticabilidade da taxa de fiscalização ambiental.
Diante deste quadro, no qual a adoção da praticidade é inquestionavelmente necessária para tornar a execução da norma tributária viável, cabe indagar a que custo – para o ordenamento jurídico e para o contribuinte - ela vem sendo implementada, bem como investigar as alternativas para a harmonização das incompatibilidades entre a adoção da praticidade e o respeito às garantias do contribuinte frente ao Estado.
3. ARGUMENTOS FAVORÁVEIS E CONTRÁRIOS À PRATICIDADE
Em renomado estudo acerca do fenômeno da tipicidade e praticidade no direito tributário, Misabel Derzi indicou, a respeito das técnicas simplificadoras da execução das normas jurídicas, os seguintes objetivos comuns:
- evitar a investigação exaustiva do caso isolado, com o que se reduzem os custos na aplicação da lei;
- dispensar a colheita de provas difíceis ou mesmo impossíveis em cada caso concreto ou aquelas que representem ingerência indevida na esfera privada do cidadão e, com isso, assegurar a satisfação do mandamento normativo.
Citada por Murilo Silvio de Abreu, a referida professora sintetiza que, no direito alemão, prepondera a doutrina contrária ao modo de pensar padronizante – por alguns chamados de tipificante – na seara tributária. Todavia, os adeptos de tal medida trazem argumentos que merecem atenção, dentre os quais se destacam os tratado a seguir.
Wennrich aponta que a adoção de técnicas da praticidade seria aconselhável na medida em que resguardaria a vida privada, evitando a ingerência excessiva dos órgãos públicos na vida privada do contribuinte:
“a padronização da execução evita a ingerência indevida de órgãos públicos na esfera privada da pessoa. O respeito à intimidade do contribuinte recomenda a padronização da execução, a qual dispensa a investigação exaustiva do caso concreto, dificultando a ocorrência de incontornáveis incômodos ao cidadão.” (ABREU, 2004, p. 51/52, apud MISABEL DERZI, 1988, p. 266).
O art. 145, § 1º da Constituição da República prescreve que “Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte...” Lado outro, o artigo 5º, X do texto constitucional resguarda a inviolabilidade da intimidade e da vida privada das pessoas. Diante de tais comandos, entende-se que a Administração tributária não pode devassar a esfera particular do contribuinte para “apurar-lhe a verdadeira capacidade subjetiva, a chamada capacidade contributiva subjetiva.” (ABREU, 2004, p 52). Consequentemente, o recurso às técnicas de padronização se revela indispensável.
Concordamos com o argumento e acrescentamos que a opção pela tributação em massa, desconsiderando particularidades do caso concreto, deva ser exercida pelo contribuinte, pois se o valor a que se visa resguardar é a defesa da vida privada, caberia a ele, e não ao Estado, decidir em que medida prefere ver resguardada sua esfera privada em prol de uma tributação minuciosamente vinculada ao caso concreto e estreitamente vinculada à verificação da capacidade tributária subjetiva. É o que se passa com a opção pela tributação pelo lucro presumido ou pelo lucro real no imposto de renda. Nesse modelo, adotado pelo Brasil, o contribuinte decide se prefere ser tributado por um lucro presumido, com benefícios à preservação de sua esfera privada e simplificação das obrigações acessórias e contábeis, ou se prefere se ver tributado pela renda que efetivamente auferiu, centavo por centavo.
Assim, as técnicas de praticidade, tais como a presunção acima referida, se mostram úteis e até mesmo necessárias para a harmonização dos comandos constitucionais acima referenciados. Todavia, conforme será tratado com mais vagar, além de a opção caber ao contribuinte, a adoção de presunções deverá sempre permitir a produção de provas em contrário (presunções relativas), sob pena de mal ferimento de garantias fundamentais do contribuinte, tais como a capacidade contributiva, o não confisco, ou mesmo a observância da legalidade estrita na cobrança do tributo.
Um segundo argumento comumente ventilado na defesa da praticidade, talvez o mais robusto de todos, é o estado de necessidade administrativo. Alega-se que sem a adoção de técnicas de aplicação simplificada e massificada da legislação tributária, o Estado simplesmente não teria meios para desempenhar sua função arrecadatória. (ABREU, 2004, p 56/57)
Diz Isensee que as objeções contra o modo de pensar padronizante são numerosas, mas a prática administrativo-financeira possui um único e lapidar argumento: a “tipificação” (termo que usa no sentido impróprio) é inevitável. (ISENSEE, 1976, apud DERZI, 2008, p. 338)
Com efeito, não se pode ignorar que as legislações tributárias são demasiado complexas, que o universo de contribuintes é vastíssimo e que o dever de eficiência administrativa é hoje princípio constitucional que impõe a realização dos fins do Estado pelas vias mais econômicas. Portanto, é de fato impensável que as Administrações tributárias não se possam valer de técnicas de praticidade que permitam harmonizar o seu desiderato de modo eficiente.
Há induvidosa desproporção entre o encargo criado pela lei para a Administração com a execução e capacidade que os órgãos fazendários dispõem para prestar o seu dever (DERZI, 2008, p. 338).
Isensee descreve o seguinte dilema: se cada fato tributário for esclarecido, exaustivamente, com o mesmo cuidado que se requer no Direito Penal, § ex., o custo do aparato administrativo necessário será superior à arrecadação e, o que é mais significativo, a maioria dos casos sujeitos a lançamento ficará sem atendimento. Se, ao contrário, cada fato não for verificado em pormenor, o programa da norma legal será descumprido, será ferido o princípio da justiça tributária e o da individualidade do tratamento do caso isolado.
Diante do estado de necessidade administrativo, da oposição entre legalidade e praticidade, para doutrinadores como Arndt ou Isensee, o modo de pensar que denominam “tipificante” aparece como uma tentaiva de solução do impasse. (DERZI, 2008, p. 339)
Porém, no conflito de valores como a legalidade, a capacidade contributiva e o não confisco, a praticidade deve ceder e permitir que o contribuinte que se sinta injustiçado por alguma técnica de praticidade possa fazer prova do fato gerador efetivamente ocorrido ou de sua capacidade tributária subjetiva, de modo a reconduzir a tributação aos limites legais e constitucionais dentro dos quais é legítimo o seu exercício.
“E caso se argumente que a administração tributária não tem recursos nem capital humano para cumprir este desiderato constitucional, que trabalhe, então, com base na capacidade contributiva objetiva do contribuinte, mas que aceite desconstituir as autuações realizadas com base neste parâmetro, quando o contribuinte produzir prova competente de que sua capacidade contributiva subjetiva é diversa. Que se lhe permita, enfim, revelar à administração tributária a sua capacidade contributiva subjetiva à impossibilidade daquela de auferi-la.” (ABREU, 2004, p. 53)
Ainda na defesa da praticidade, a doutrina costuma apontar a necessidade de uniformização da tributação e, consequentemente, de observância do princípio da isonomia.
A praticidade, cujo objetivo é permitir a aplicação da lei tributária em massa, alcançando, assim, todos os contribuintes, seria, pois, instrumento do princípio da isonomia. Com efeito, caso a tributação necessitasse bater à porta de cada contribuinte, e perante ele apurar detalhadamente o fato tributário, é certo que boa parte do universo dos sujeitos passivos sequer seria visitada e escaparia à tributação, de modo que o encargo recairia desigualmente sobre alguns, apenas. Daí a necessidade da adoção de esquemas, padrões e presunções destinados a simplificar a execução da lei fiscal.
A isonomia é princípio constitucional reiterado no título destinado à tributação a isonomia. Mas há que se lembrar que este princípio, desde há muito, vem sendo interpretado conforme a Ética à Nicômano, na qual Aristóteles ensina que isonomia significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades. Por conseguinte, se dois contribuintes se encontram em situação materialmente distinta, não poderão ser submetidos à mesma norma de tributação, sob pena de ofensa à isonomia e concretização de suma injustiça.
Assim, o ideal de uniformização da tributação, tanto pode reforçar a isonomia tributária – quando permite que a norma atinja a todo universo de contribuintes, e não apenas alguns deles -, como pode, em determinados casos, levar à sua violação.
Eduardo Maneira traz um pitoresco exemplo, suficiente para esclarecer a questão:
Nas pautas e plantas de valores há uma norma geral em nome da praticidade. Como calcular individualizadamente o valor venal de cada imóvel para se cobrar o IPTU? Não é possível, eu me valho de uma norma de simplificação, de generalização, que é a planta de valores. (...)
Tomando por exemplo a planta de valores do Rio de Janeiro, um apartamento em Ipanema, com dez anos de construção, a três quadras da praia, com 300 m², pela planta de valores possui o valor venal de 2 milhões de reais – é preço de mercado de um imóvel deste tamanho em Ipanema. Esta é a norma geral. Mas a adoção da praticidade e das presunções tem que permitir a prova em contrário. O proprietário daquele imóvel vai reclamar na Prefeitura, e diz que realmente tem um imóvel de 300 m²,na rua Barão da Torre, em Ipanema, a três quadras da praia, mas que é vizinho da escada Pavão e Pavãozinho, e está na linha de tiro do tráfico. Esse imóvel, que em tese valeria 2 milhões, não consegue ser vendido por 200 mil, porque ele está localizado na entrada da favela. (MANEIRA, 2008, p. 382/383)
Pensamos, portanto, que o ideal de uniformização somente pode prevalecer quando esteja a serviço da igualdade – esta sim um valor constitucional – e jamais quando com ela conflite. Novamente, a adoção de técnicas de praticidade se mostra um ponto de partida salutar, mas que somente realizará o valor igualdade se permitir prova em contrário pelos contribuintes que estejam em situação jurídica distinta.
O estudo dos argumentos favoráveis à praticidade já revelou o seu contraponto: as críticas comumente feitas à adoção de tais medidas. Porém, podem-se reunir os argumentos contrários à praticidade na precisa síntese apresentada por Misabel Derzi:
São as seguintes as principais objeções feitas pela doutrina:
· ofensa à adequação à lei, que é imperativo geral do Estado-de-Direito, especialmente dirigido aos Poderes Executivo e Judiciário;
· ofensa ao princípio da divisão dos poderes, pois o modo de pensar que estabelece padrões, esquemas ou pauta de valores, cria presunções que não são mera interpretação, mas retificação e modificação da própria lei, enfraquecendo-se o Poder Legislativo, que perde o monopólio da produção legislativa;
· ofensa à indelegabilidade de funções, pois compete privativamente ao Poder Legislativo regular o tributo;
· ofensa à uniformidade de encargos fiscais e à igualdade, pois se o legislador tratou o factualmente desigual de modo desigual, de acordo com sua peculiaridade, a administração converte em igualdade aquilo que é desigualdade, desprezando as características individuais, juridicamente relevantes. (Cf SCHIFFBAUER. Die Tupisierungs Theorie im Steuerrecht. StbJb, 1953-4, p. 177);
· ofensa à capacidade econômica e ao princípio da realidade, pois o Direito Tributário segue o princípio da realidade e deve atingir as reais forças econômicas do contribuinte (DERZI, 2005, p. 181)
Ao discorrer sobre as restrições ao modo de pensar padronizante apresentados pela doutrina tedesca, Derzi anota o entendimento de Arndt no sentido de que razões de conveniência ou rentabilidade não legitimam a execução simplificada das leis. Isso só seria legítimo se caracterizado o estado de necessidade, pela demonstração de que a aplicação individual da lei conduziria ao arbítrio. Porém, uma vez caracterizado tal estado de necessidade, o estabelecimento de limites foi buscado na obra de Isensee:
a impropriamente chamada “tipificação administrativa ”deve sujeitar-se às seguintes regras:
· restringir-se ao mínimo necessário, proibindo-se os excessos/
· respeitar os direitos fundamentais, baseando-se em tipos que se formam de acordo com aquilo que for normal;
· limitar-se a uma tributação pela média dos valores, vedando-se que o método se transforme em instrumento de política fiscal, de redistribuição de renda ou de benefícios e isenções tributárias;
· estabelecer critérios uniformes que não podem variar de repartição para repartição;
· fixar pautas de valores, somatórios ou presunções que devem obrigar a própria Administração, a qual, por imperativo do Estado de Direito, não pode deles se afastar;
· dar ampla publicidade aos padrões, esquemas e pautas de valores, os quais não podem constar de orientações internas secretas.
Finalmente, cumpre registrar que existe tendência acentuada em transformar os padrões, somatórios e pautas de valores em presunções juris tantum que admitem a prova em contrário para os casos “atípicos”.
É útil registrar que Isensee nega competência ao Poder Judiciário para usar esse método que redunda em uma execução simplificadora da lei, mas reconhece essa faculdade ao Poder Executivo. Para ele, o estado de necessidade somente se apresenta para a Administração, pois o Poder Judiciário é comprometido institucionalmente, com a proteção judiciária individual, estando obrigado a esgotar a potencialidade da norma legal que aplica. (DERZI, 2008, p.340/341)
Ao oferecer sua própria contribuição para o problema, Misabel Derzi entende que a praticidade deve ser atendida sob a égide dos seguintes princípios:
· legalização do modo de raciocinar padronizante, transferindo-se para a lei a fixação das presunções, dos somatórios e pautas de valores que se destinam a preparar a execução para uma aplicação da lei em massa;
· por razoes técnicas, não sendo aconselhável a legalidade rígida do modo de raciocinar administrativo que simplifica a execução por meio de presunções, esquemas e padrões, a declaração de vontade do contribuinte, caso a caso, deve substituir a vontade da lei;
· mas a vontade do contribuinte pode e deve ser direcionada por orientações, limites e valores administrativamente estabelecidos que obstem as evasões ilícitas. (DERZI, 2008, p.357/358)
4. EMPREGOS MAIS FREQUENTES DA PRATICIDADE NA SEARA TRIBUTÁRIA
O emprego da praticidade na esfera tributária, mais comumente se apresenta pelo modo de pensar tipificante. Conforme obra fundamental de Misabel Derzi sobre o tema, o tipo é um esquema padrão que reúne características comuns ou médias de um fenômeno erigido a modelo do que normalmente se passa. Na metodologia científica, o tipo é um esquema abstrato e fluido. Diversamente, o modo de pensar (impropriamente) chamado de tipificante, parte da extração de características comumente verificadas, ou da adoção de um caso padrão para, a partir de tais elementos, formar um modelo fechado, rígido, que se assemelha mais à noção de conceito do que à noção metodológica de tipo. A adoção de tal clichê viabiliza, pois, a aplicação da norma tributária, desconsiderando-se as peculiaridades do caso concreto. É o que se passa com a adoção de presunções, pautas fiscais e na substituição tributária progressiva, exemplos recorrentes do emprego da praticidade.
O modo de pensar, impropriamente chamado tipificante, é uma técnica (ou uma das técnicas) a serviço da praticabilidade. Como já registramos, destina-se a viabilizar ou simplificar a execução das normas jurídicas.
Essencialmente, tipificar significa criar tipos. Esse modo de pensar é dito tipificante, porque, em um trabalho precedente do aplicador da lei, são extraídas as características comuns à maior parte de uma multiplicidade de fenômenos, em tese passíveis de enquadramento na norma e é formado o tipo (abstração-tipo), esquema ou padrão. Muitas vezes, a Administração (ou a jurisprudência) é dirigida pelo primeiro caso - Leitfall - que passa a figurar como cliché, na pressuposição de que representa o caso normal, comum ou padrão. (V.J. Isensee, op. cit. p. 59).
O “tipo”, esquema ou padrão - quer resulte das características comuns, médias ou freqüentes de uma multiplicidade de fenômenos, quer de um caso isolado erigido como modelo do normal - nesse processo, altera o programa da norma e substitui os fatos isolados por uma presunção. Daí resultou a expressão, atribuída pela doutrina estrangeira, de modo de pensar “tipificante”, que serve para designar essa técnica de simplificar a execução da lei.
A designação aludida, no entanto, não leva à formação de verdadeiros tipos, no sentido técnico que lhe atribuiu a Metodologia. No tema em tela, tipo pode haver, no plano pré-jurídico.
Entretanto, desse modo de pensar não resultam verdadeiros tipos jurídicos, como ordens abertas, graduáveis, transitivas, de características renunciáveis. Nesse processo, ao contrário, são produzidos rígidos padrões, esquemas fixos, em regra numericamente definidos, não raro funcionando como presunções iure et de iure. (DERZI, 2008, p.335/336)
ABREU (2004, p. 73/74) pontua que o modo de pensar por tipos, ou clichês leva às seguintes técnicas de praticidade, muito comuns: lançamento de impostos por estimativa, substituição tributária progressiva, regimes especiais pelos quais os Estados criam pautas de valores em substituição aos preços reais. Em comum, tais técnicas partem de uma presunção, seja da média das operações, como base para a cobrança do tributo, ou do preço pelo qual – presume-se – ocorrerá a operação.
Outros expedientes denotativos da praticidade, todavia, não decorrem do modo de pensar por tipos, a exemplo da monofasia nos tributos sobre o consumo e do lançamento por homologação.
Passa-se, pois, à análise de algumas dessas técnicas.
1. Presunções e ficções.
Ao discorrermos sobre as variadas técnicas a serviço da praticidade, importa começar pelas presunções, haja vista que é por meio delas que tomam corpo as demais técnicas, a exemplo das pautas fiscais e da substituição tributária para a frente. Importante, pois, distinguir presunções de ficções.
Ao defender a necessidade e validade das técnicas de praticidade, Eduardo Maneira sintetiza com brilhantismo os institutos, razão que justifica a seguinte transcrição de seu pensamento:
“Quando nós falamos em praticidade, em normas de simplificação, nós estamos trabalhando prioritariamente com presunções jurídicas.(...)
A presunção e a ficção são coisas que não se confundem. A ficção jurídica torna realidade jurídica algo que não precisa ser realidade no mundo fenomênico. Por ficção jurídica, nós podemos considerar a remessa de bens para a Zona Franca de Manaus como se fosse uma operação de exportação. Nós todos sabemos que o Estado do Amazonas não é outro país, mas, por ficção jurídica, nós podemos considerar tal remessa como se exportação fosse. Já as presunções trabalham com a probabilidade; é o desfecho lógico de um caso pela observação de casos semelhantes. O fato ainda não ocorreu, mas, se ocorrer, provavelmente ocorrerá daquele modo.
As presunções podem ser absolutas ou ser relativas. As presunções absolutas são aquelas que dispensam a prova em contrário; a prova em contrário, nas presunções absolutas, é irrelevante. No regime imposto de renda sobre o lucro presumido, feita a opção pelo contribuinte pelo lucro presumido, é irrelevante se o lucro real é maior ou menor do que o presumido. Já na presunção relativa não; a presunção relativa é absoluta até que se prove o contrário. E é aí que vamos fazer esse exercício de legitimação da praticidade tributária a partir da razoabilidade e da proporcionalidade. (...)
Nas pautas e plantas de valores há uma norma geral em nome da praticidade. Como calcular individualizadamente o valor venal de cada imóvel para se cobrar o IPTU? Não é possível, eu me valho de uma norma de simplificação, de generalização, que é a planta de valores.
(...)
Trazer a norma geral para o caso individual é aplicar a razoabilidade; se não se permitir a adoção da razoabilidade para as presunções, as presunções podem se tornar um mecanismo injusto; as simplificações e a praticidade passam a ser um instrumento de injustiça. A razoabilidade, que é essa harmonização da norma geral para o caso individual, tem que ser aplicada como teste de validade da praticidade.” (MANEIRA, 2008, p 381/382).
Ecoando o magistério de Maneira, Onofre Alves Batista Jr. também afirma, fazendo necessária ressalva que:
A ideia de praticidade esta muito mais próxima dessas generalizações, dessas presunções, dessa simplificação da execução e do entendimento da norma tributaria que possa facilitar o seu cumprimento, como exemplo a própria substituição tributária. Mais uma vez eu marco: a ideia de praticidade não pode se apartar da legalidade tributária, nem servir para ofuscar qualquer segurança ou garantia dos contribuintes.” (Batista Jr., 2008, p. 168)
A praticidade, mesmo para a doutrina que a admite e prestigia, é objetivo que não se pode sobrepor aos princípios constitucionais tributários da legalidade, do não-confisco, e da isonomia, que, no Direito Brasileiro, constituem direitos fundamentais do contribuinte e cláusulas pétreas. Assim, no campo doutrinário observa-se um geral repúdio à adoção de presunções absolutas – ou em outras palavras – à impossibilidade de o contribuinte comprovar que a presunção não se realizou do modo como prevista e que, consequentemente, a tributação não poderá obedecer ao esquema previsto antecipadamente.
Por todos, toma-se o ensinamento de ABREU:
Por esta esteira, a administração tributária pode e deve direcionar a vontade do contribuinte mediante técnicas e expedientes que denotem praticidade. Esta, a regra geral, que prevalece até que o contribuinte produza prova suficiente de que a sua hipótese fática não se enquadra a ela, por imperativos da aplicação individualizada da lei e da justiça no caso concreto.
A administração tributária tem o dever de possibilitar ao contribuinte instaurar procedimento em contraditório, nos termos em que formulado no item 6.3 do primeiro capítulo, para que este possa produzir prova competente de que o seu caso particular não encontra subsunção no ato normativo a que está submetido, por ferir a sua capacidade contributiva subjetiva, por exemplo. (ABREU, 2004, p. 65)
2. Substituição tributária
O estudo das presunções em favor da praticidade da tributação naturalmente conduz ao tema da substituição tributária progressiva.
Por meio do instituto da substituição tributária, uma terceira pessoa – juridicamente vinculada ao fato gerador – é apontada pela legislação como responsável pelo cumprimento da obrigação tributária cujo fato gerador realizado por outrem. Portanto, transfere-se a uma pessoa diversa daquela que realiza o fato gerador a obrigação de recolhimento do tributo. A vantagem que esse instituto representa para a tributação é limitar a fiscalização a um universo mais reduzido e facilmente identificável de contribuintes, com inequívoca redução dos custos de fiscalização e de arrecadação e redução da sonegação fiscal.
A doutrina distingue duas espécies de substituição tributária no ICMS. A “para trás”, de maior aceitação pela doutrina, e a “para frente”, que embora tenha sua constitucionalidade reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, é ainda alvo de inúmeras críticas.
Na substituição para trás, o substituto paga o tributo por fato gerador já ocorrido no passado (a siderúrgica paga pelo carvão que lhe é vendido pelo produtor rural), ressarcindo-se em face do substituído pelo mecanismo de formação dos preços (ao vender o carvão, decota o produtor de seu preço o valor do imposto, que não lhe é exigido; ao dar saída a seus produtos, para cuja fabricação incorre o insumo, não tendo direito a créditos a ele relativos, acaba a siderúrgica por recolher o imposto que deixou de incidir na etapa anterior). Na substituição tributária para a frente, ao contrário, dá-se o acréscimo do imposto a ser antecipadamente recolhido pelo alienante (calculado a partir de uma base de cálculo presumida, eis que o fato gerador ainda não aconteceu) ao preço das mercadorias vendidas ao adquirente. É dizer: o substituto, antes de proceder ao recolhimento do ICMS/ST, exige do substituído o montante do imposto que pagará em seu prol. (PAULSEN, p. 896/897)
É bom recordar – e nessa hora presto homenagem a Gilberto de Ulhôa Canto – que a doutrina tributária brasileira, ao permitir a substituição tributária, primus, a restringiu às hipóteses em que o fato gerador do substituído já havia ocorrido? Caso dos frigoríficos, das cooperativas de leite, que ao comprarem a carne o leite imputavam aos fazendeiros e aos produtores de leite o imposto que lhes cabia, decotando-o no preço; secundus, exigiu que o substituto estivesse jurídica e economicamente ligado ao fato gerador. (COÊLHO, 2008, p. 111)
A substituição tributária, notadamente a para frente, não é de irrestrita aceitação doutrinária. Ao contrário, as críticas ao instituto – inequivocamente inspirado pelo ideal de praticidade – foram e são muitas, o que motivou, em 1993, a constitucionalização do expediente por meio da Emenda Constitucional nº 3, a qual inseriu o § 7º ao art. 150 da Constituição:
“§ 7º A lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido.”
Posteriormente em 2001, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 1851-4/AL o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade do instituto da substituição tributária progressiva e, em decisão ainda mais lamentável, entendeu que a base de cálculo presumida seria definitiva. Consequentemente, caso o fato gerador futuramente realizado pelo substituto tributário ocorresse em valor inferior ao presumido, não teria ele direito à restituição do tributo pago a maior.
A decisão foi orientada pelo emprego da praticidade na cobrança do ICMS e também por uma interpretação literal da parte final do art. 150, § 7º da Constituição.
Ao tecer severa crítica ao julgamento, Sacha Calmon Navarro Coêlho pontificou em palestra realizada em Belo Horizonte no ano de 2008 e posteriormente publicada na Revista Internacional de Direito Tributário:
Foi a melhor solução, pelo princípio da praticidade? – porque não se trata de outra coisa, na modulação dos efeitos constitucionais. Não, não foi. O Supremo cassou o princípio constitucional do acesso à jurisdição, e confiscou o direito de repetir o indébito por parte de todos aqueles que cordatamente pagaram um credito morto pela prescrição, que extingue o credito tributário no sistema do Código. Logo, este excesso de pagamento só pode ter o efeito de confisco, porque sem causa. O princípio do não-confisco restou violado – ele, que deveria limitar o princípio da praticidade. (...)
No caso que nos interessa, que é o da substituição tributária para frente em nome do pragmático, devo dizer que se sacrificou o princípio da legalidade tributária – pagamento antes de ocorrer o fato gerador. (...)
E o pior não foi a Emenda – o pior veio depois, por conta do STF, ao validar a tese da definitividade na base de calculo presumida. Com isso, ele violou escancaradamente o princípio da proibição do excesso. Não foi a melhor solução; prejudicou o direito de propriedade dos contribuintes, contrapartida do enriquecimento sem causa do Estado; desprezou o princípio constitucional o não –confisco – com efeito, tudo aquilo que entra além do preço real praticado pelo substituído, entra nas burras estatais com o cariz, a marca e o carimbo de confisco. Tudo em nome da praticidade! (COÊLHO, 2008, p. 110/111)
Dessa lição não destoou Flávio Couto Bernardes, o qual apontou, ainda, ofensa ao princípio da razoabilidade ao se reconhecer a definitividade da base de cálculo presumida.
O Supremo, numa decisão conhecida de todos – ADI 1.851 -, em regra, reconheceu que a base de calculo é definitiva. Chega-se então a um absurdo, porque quando se tributa, se tributa por uma presunção, mas o Direito Tributário e a formatação dos impostos (e do ICMS em especial) têm que seguir como parâmetro constitucional a capacidade contributiva. Quando a base real, a operação futura, se concretiza, nada mais natural, lógico, razoável, proporcional com bom senso e pratico que reconhecer o direito do cidadão de ter essa diferença, ou reconhecer o direito do Estado de cobrar a diferença – a lógica não serve para um lado apenas. Naquela situação em que a base real é maior do que a base presumida, o Estado não está cobrando que deveria, e ao não cobrar o que deveria não esta pagando de acordo com sua capacidade contributiva. A lógica, portanto, é a razoabilidade e a praticidade nos dois vieses. O Supremo aplica o mesmo princípio, afirmando que se a base é definitiva, é definitiva para todo mundo, senão se daria muito trabalho para o Estado, e se tornariam a máquina fiscal e a evasão fiscal impossíveis de serem controladas.(...)
Essa decisão é tão pouco razoável que a matéria está sendo rediscutida na ADI 2777, cuja votação está de 5 a 5... (BERNARDES, 2008, P. 368)
Em síntese, mesmo para a doutrina que, a bem da praticidade na tributação, admite a substituição tributária progressiva e a cobrança da exação por fato gerador sequer realizado, como Eduardo Maneira, a definitividade da base de cálculo presumida é inaceitável. No seu entendimento, o art. 150, § 7º da Constituição apenas permite antecipar a obrigação de um fato gerador futuro, que presumivelmente acontecerá, mas a adoção de presunções no direito tributário jamais poderia resultar na criação de fatos geradores por presunção, pois inequívoca a vedação imposta pelo princípio da legalidade.
As presunções, além de serem permitidas no que se refere às provas no direito tributário, podem ser utilizadas, em nome da praticidade, para criar técnicas simplificadoras de tributação. É importante deixar claro que não se presumem aspectos materiais das hipóteses de incidência ou, por outras palavras, não se criam fatos geradores por presunção. (MANEIRA, 2002, p. 90)
Por essa razão não se pode admitir a interpretação literal que o Supremo Tribunal Federal deu à parte final do art. 150, § 7º, a fim de apenas admitir a restituição do imposto pago antecipadamente caso não realizado, em absoluto, o fato gerador, mas recusando tal possibilidade quando o fato gerador presumido se realizasse por valor inferior ao presumido. Tal interpretação restritiva representa, em realidade, na adoção de nova hipótese de incidência do ICMS, ao arrepio da autorização constitucional, que incide não sobre o valor da operação – um fato, um fenômeno real – mas sobre um valor presumido. A necessidade de obediência a princípios de maior envergadura, como a legalidade estrita em matéria tributária – que e direito fundamental do contribuinte contra o Estado, não autorizaria tal exegese.
Ademais, a definitividade da base de cálculo presumida, retira do ICMS a neutralidade com que lhe dotou a Constituição, pois se recolhido o imposto sobre preços superiores ao acontecidos, além do aumento do tributo, onera-se o contribuinte comerciante, que não conseguira repassar o custo do imposto a maior ao consumidor. Deforma-se o imposto, desalinhando-o do mercado, onerando a produção e deformando preços e competitividade. (DERZI, 2008, p. 360).
3. Pautas fiscais
Pautas fiscais são valores previamente fixados pela Administração tributária para as operações sobre as quais incidirá algum tributo. Novamente, trata-se mecanismo que visa a facilitar a aplicação da lei tributária que pretende evitar a necessidade de apurar o real fato gerador ocorrido – e consequentemente da precisa base de cálculo – de modo que a alíquota aplicável incida diretamente em tal tabela de valores pelos quais, presume-se, ocorreu o fato gerador.
As pautas fiscais são alvo de incontáveis críticas doutrinárias e a jurisprudência reiterada do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiçam não as admite para situações em que o valor base de cálculo seja facilmente verificável. (MANEIRA, 2002, p. 184).
O enunciado 431 da súmula da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça reza ser ilegal a cobrança de ICMS com base no valor da mercadoria submetido ao regime de pauta fiscal.
André Mendes Moreira[1], em palestra de 2011 disponível na rede mundial de computadores, pontua que, desde a época do ICM, o Supremo Tribunal Federal entende que o arbitramento da base de cálculo deve ser medida excepcionalíssima, somente admissível quando existentes os pressupostos do art. 148 do CTN, dolo ou fraude. Quando a escrituração do contribuinte for regular, o valor da operação é aquele registrado na documentação fiscal. Diante dessa jurisprudência, até hoje não modificada, tem-se a seguinte situação: a base de cálculo presumida é admissível, mas as pautas fiscais são inconstitucionais. A diferença tem sido apontada por diversos tribunais de justiça no seguinte sentido: quando verificada constante e considerável diferença entre o preço praticado e a base de cálculo presumida, esta se transmuda em pauta fiscal e se torna indevida.
Diante de tais esclarecimentos compreende-se melhor as reservas doutrinárias acercado mau uso da base de cálculo presumida na substituição tributária para a frente. Anota-se, outrossim, que a chancela propiciada pelo STF na ADI à definitividade da base de cálculo presumida na ADI 1851-4/AL encorajou ainda outra forma de abuso por parte dos Estados membros sob o mando da praticidade: a adoção de verdadeiras pautas fiscais disfarçadas de substituição tributária. Cuida-se da tentativa de se antecipar o recolhimento do tributo por um fato gerador ainda não realizado, não do substituto tributário mas do próprio contribuinte. O alerta, novamente, é dado por Eduardo Maneira:
Por outro lado, a substituição tributária não se confunde com pauta fiscal. Planta de valores também não se confunde com pauta fiscal. A partir do momento em eu o STF declarou constitucional a substituição tributária, vários Estados estão adotando pauta fiscal com nome de substituição tributária. E porque eu digo que eles estão adotando pauta fiscal? Porque eles estão cobrando antecipadamente o tributo por um valor presumido, mas sem a figura do substituto e do substituído – só há o contribuinte.(MANEIRA, 2008, p.385)
4. Tributos lançados por homologação
Possivelmente o emprego mais frequente de uma técnica a serviço da praticidade seja o lançamento por homologação. A despeito de sua aplicação hoje quase generalizada, é preciso estar atento às pertinentes críticas que lhe são dirigidas, sendo que, no escopo do presente trabalho, são de maior relevo as críticas a respeito do excessivo custo imposto ao contribuinte.
É muito grave a nossa percepção de praticidade, a nossa aceitação a certas tomadas de atitude da Administração pública sobre praticidade, porque não necessariamente são favoráveis ao cumprimento da legalidade e do devido processo legal. Um deles foi esse rompimento com a natureza jurídica do ato de lançamento tributário. Nós vimos, nos últimos dez anos, quase que uma transferência integral do sistema tributário para a prática do lançamento por homologação, e para um sistema de compensação tributária. E achávamos que isso era bom, razoável, prático. Qual a surpresa que nos últimos tempos isso tem se voltado contra o contribuinte, contra os direitos fundamentais, contra a legalidade. Para discutir um débito em lançamento por homologação, eu não tenho acesso ao processo administrativo; tributos sujeitos a lançamento por homologação quase que tolhem o acesso do contribuinte à discussão do processo administrativo, salvo se houver um auto de infração. E, quanto à compensação, a Administração não tem nenhum pudor de, em varias hipóteses, considerar a compensação não declarada, autuar o contribuinte, impor-lhe multas geralmente de 150%, mas a multa de 75%.
Essa tem sido m a prática corrente, é dizer, a boa-fé do contribuinte não é levada em conta, porque muitas vezes o contribuinte usa da compensação fundada em coisa julgada e a autoridade administrativa se sente na liberdade de interpretar a coisa julgada e dar a ela o sentido que lhe parece mais conveniente, para autuar o contribuinte em várias situações, de tal forma eu é preocupante estado de coisas que leva a praticidade.
A praticidade seria esta da declaração que o contribuinte faz de boa-fé. Mas depois, este contribuinte, que de boa-fé se declara perante o Fisco, diz que deve efetivamente e qual é o débito tributário, não é notificado pela administração tributaria sobre um eventual indébito, sobre o não pagamento do tributo devido: esta o lança diretamente na inscrição da dívida ativa, contrariando todo o CTN, que exige efetivamente, antes de qualquer procedimento, o lançamento de ofício. (TORRES, 2008, p. 128)
Por outro lado, dentre as diversas técnicas a serviço da praticidade, o lançamento por homologação traz a vantagem de permitir a iniciativa do contribuinte na indicação do fato gerador e base de cálculo declaradamente ocorridos.
O lançamento por declaração e por homologação são uma alternativa para a aplicação das leis em massa, à qual tem recorrido o legislador no imposto sobre a renda, circulação e a produção.
São diversas as vantagens dessas espécies de lançamento, uma vez que a vontade do contribuinte supre e dispensa a exaustiva investigação do fato concreto por parte da Fazenda Pública, a qual só em casos especiais (omissão, falsidade, dolo, fraude, má-fé..) procede ao levantamento das peculiaridades do caso individual. (DERZI, 2008, p.358).
5. LIMITES À APLICAÇÃO DA PRATICIDADE
Para determinados segmentos da doutrina a praticidade seria mero atributo da legalidade, e não um verdadeiro princípio (MANEIRA, 2002, COELHO, 2008, ABREU, 2004). Mas mesmo aqueles que a entendem como princípio ressalvam que se cuida de um princípio meramente instrumental e que, nesta condição, não pode se sobrepor aos princípios axiológicos.
Nessa linha de raciocínio, caso a adoção de técnicas de praticidade entre em conflito com algum dos princípios tributários que concretizam valores, como a isonomia, a legalidade, o não-confisco, a capacidade contributiva, aquelas deverão ceder.
Tem-se, portanto, um primeiro limite ao emprego da praticidade: a não violação de princípios axiológicos. Oportuno registrar que, no ordenamento jurídico brasileiro, tais princípios estão constitucionalizados e gozam de status de cláusulas pétreas, pois consubstanciam verdadeiros direitos fundamentais dos contribuintes.
Pensamos, como Tipke, que a praticidade deve inspirar a elaboração das normas jurídicas, sendo um princípio implícito e difuso na Constituição, mas sem qualquer primazia sobre os princípios éticos que norteiam o sistema, como justiça , capacidade contributiva e igualdade. Por isso, os dispositivos constitucionais ditados em nome da praticidade, como o art. 150, § 7º, devem ser interpretados com essas limitações (DERZI, 1998, p. 13, apud ABREU, 2004, p.63)
Quero dizer que um princípio jurídico, sem maiores delongas ou complicações, é um preceito pragmático ou axiológico que orienta a feitura das leis e sua aplicação de ofício ou contenciosamente. (...)
Eu diria até mesmo que os princípios, se fossem blocos de mármore, formariam uma formidável muralha contra o poder de tributar, e eu daria a esta muralha o nome de ‘proibição do excesso’. Qual excesso? O excesso legislativo, o excesso administrativo e o excesso jurisdicional.(...)
Mas, prosseguindo, digo, com Tipke (que é um grande autor e Direito Tributário alemão e acaba de receber uma péssima tradução para o português, infelizmente, em todo caso de um grande livro), o qual com carradas de razão afirmou: ‘A proibição de excesso ou a regra da proporcionalidade é constitucionalmente fundada no Estado democrático de direito, aduzindo que se aplica ao legislativo, ao executivo e ao judiciário.’ Significa, noutras palavras, que qualquer ato estatal deve ser praticado de modo a incomodar o mínimo possível, ou atender ao máximo possível, a dignidade, a comodidade, a liberdade e a propriedade das pessoas, relativamente ao fim almejado pelo ato estatal.(...)
A proibição de excesso [e uma relação razoável entre meios e fins o princípio da praticidade, muito usado pelo legislador, diz respeito ao pragmático, não diz respeito o axiológico ou à teoria dos valores, não é um princípio como isonomia, justiça – visa a tornar fácil a relação jurídico tributária. Com ela (a praticidade) na mão – porque quem dela tem feito uso [e mais o Estado -, poder[íamos exigir do governo rol um imenso de facilitações em prol dos sujeitos passivos. (COELHO, 2008, p. 107/110)
Embora reconheça a necessidade e utilidade da praticidade na elaboração e aplicação da lei tributária, Eduardo Maneira sugere ainda outra possibilidade para conduzir a praticidade a limites juridicamente aceitáveis: recurso à proporcionalidade e à razoabilidade.
Trazer a norma geral para o caso individual é aplicar a razoabilidade; se não se permitir a adoção da razoabilidade para as presunções, as presunções podem se tornar um mecanismo injusto; as simplificações e a praticidade passam a ser um instrumento de injustiça. (...)
Na proporcionalidade como adequação, a pergunta a ser feita é: o meio promove o fim? Na proporcionalidade como necessidade, indaga-se: dentre os meios disponíveis e igualmente adequados para promover o fim, não há outro meio menos restritivo dos direitos fundamentais afetados? E na proporcionalidade como proporcionalidade em sentido estrito: as vantagens trazidas pela promoção do fim correspondem às desvantagens provocadas pela adoção do meio? A resposta a essas perguntas é que vai dar legitimidade às técnicas de praticidade. (...)
Para nós sabermos se há proporcionalidade, nós temos que verificar se a calibragem da base de cálculo presumida está boa ou não, porque se essa base de cálculo presumida atender a razoabilidade como equivalência, o meio eleito para se alcançar o fim é adequado, atende à necessidade e à proporcionalidade. O que não se pode fazer é o que o Supremo está fazendo: fechar as portas para estes testes de legitimação das técnicas de simplificação. (...)
Para encerrar: planta de valores, técnicas de simplificação, substituição tributária são meios legítimos de praticidade tributária. Mas para que essas técnicas estejam harmonizadas e possam ser inseridas no sistema tributário nacional, elas necessariamente precisam passar pelo teste da razoabilidade – razoabilidade no sentido de equidade e de equivalência -, e passar pelo teste da proporcionalidade, para saber-se se os meios adotados não afrontam os direitos e garantias fundamentais do cidadão contribuinte. No caso da base de calculo definitiva na substituição tributária, quando ela é sistematicamente presumida por um valor maior do que o real, não há dúvida, que ela não passaria pelo teste da proporcionalidade, porque se o fato gerador ocorre por um valor e a base de cálculo presumida é sempre maior, certamente o princípio da capacidade contributiva e o princípio do não-confisco estariam sendo afrontados.(MANEIRA, 2008, p. 383/385)
Em suma, é inequívoca a necessidade de uma execução eficiente e econômica da lei tributária e que permita seja ela aplicada a todo o universo de contribuintes que realizem o fato gerador. Para este mister, revela-se indispensável o recurso a técnicas de praticidade que, quando bem empregadas, realizam os ideais de isonomia – aplicação da lei a todos - e eficiência. Para muitos, o estado de necessidade administrativo justificaria as técnicas de praticidade. Porém, doutrina expressiva pondera que as normas que denotam a praticidade são de hierarquia inferior aos princípios axiológicos, não podendo a eles se sobreporem.
Sem olvidar que a praticidade se contrapõe à justiça individual, Misabel Derzi conclui que não se pode negar ao legislador criar presunções jurídicas, porém, elas nunca devem ser absolutas. O legislador precisa ser fiel à Constituição, aos seus valores e princípios e sua discricionariedade está justamente limitada pelas normas superiores do texto constitucional, e a praticidade não tem primazia sobre a justiça do caso, que é sempre individual (DERZI, 2008, p. 362).
6. CONCLUSÃO
O princípio da isonomia pressupõe que a lei tributária seja aplicada a todos aqueles que realizem o fato gerador previsto em lei. A necessidade de que as receitas do Estado sejam adequadamente auferidas e de modo eficiente igualmente aponta para a necessidade de a tributação atingir a todos. A fim de realizar tais desideratos, diversas técnicas e expedientes reunidas sob o signo da praticidade tornam-se necessárias, sobretudo no complexo sistema tributário atual. Lado outro, a praticidade é um ideal que não pode subjugar os valores fundamentais que norteiam o sistema tributário, sendo necessário o estabelecimento de limites para tais técnicas. Serão justamente os princípios constitucionais que fixarão os limites para o legítimo emprego da praticidade, a qual somente se justifica na medida em que permite a aplicação da lei a todos e de maneira eficiente, mas não como forma de criar novas hipóteses de tributação ou menosprezar a realidade econômica.
ABREU, Murilo Silvio de. A Teoria da Praticidade no Direito Tributário. 2004. 96 f. Dissertação (Mestrado em Direito Tributário) – Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2004.
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[1] MOREIRA, André Mendes. Belo Horizonte: 2011. Disponível em <http://sachacalmon.com.br/ano-artigo/2011/>. Acesso em 18 mai. 2012.
Graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pós-Graduada em Direito pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Procuradora Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOLLERO, Barbara Tuyama. A praticidade e o Direito Tributário Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 out 2014, 05:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41288/a-praticidade-e-o-direito-tributario. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
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