RESUMO: Abordagem da tendência de objetivação das teorias administrativas, especificamente da teoria do desvio de finalidade (ou de poder) dos atos administrativos, por meio da qual é possível a convalidação de ato administrativo que supervenientemente atende ao interesse público.
A finalidade consiste em pressuposto do ato administrativo concernente à inafastabilidade do objetivo ligado ao interesse público. Como aponta Hely Lopes Meirelles, a finalidade é um elemento vinculado de todo ato administrativo, mesmo que este seja discricionário.
A clássica concepção do pressuposto da finalidade afirma que o administrador não pode escolher fim público diferente daquele que a norma administrativa prevê. Como se verá adiante, tal postulado vem passando por uma objetivação.
Nesse aspecto, é pertinente apontar a crítica veemente de Marçal Justen Filho[1], que considera inadequado mencionar finalidade no singular, pois um ato administrativo pode apresentar inúmeras manifestações do interesse público. Referido jurista, após criticar a abstração da doutrina administrativista sobre o tema, discrimina critérios para verificar “as finalidades” de cada ato administrativo:
Quando exercita uma função estatal, o agente promove a concretização do ordenamento jurídico em seu conjunto. Logo, existem inúmeras finalidades a serem realizadas. É indispensável identificar essas finalidades contempladas de modo teórico no ordenamento jurídico. Depois, cabe produzir uma conjugação entre as diversas finalidades, tendo em vista o princípio da proporcionalidade. É dever do administrador público expor à vista da comunidade a concepção que adota como finalidade dos atos administrativos que pratica.
Esses são os pilares que elucidam a teoria do desvio de poder ou do desvio de finalidade, segundo a qual a realização de finalidade estranha à prevista pelo ordenamento jurídico para o ato administrativo resulta na invalidade do ato.
Para José dos Santos Carvalho Filho, é pressuposto do desvio de poder o animus do agente administrativo, consistente na intenção deliberada de ofender o objetivo do interesse público.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro apresenta alguns exemplos sobre o vício: “tanto ocorre esse vício quando a Administração remove o funcionário a título de punição, como no caso em que ela desapropria um imóvel para perseguir o seu proprietário, inimigo político”.
Como sinaliza Marçal Justen Filho, a tendência para a qual caminha o Direito Administrativo é relativizar a concepção de que a escolha de atendimento ao interesse público para determinado ato é única, notadamente nas hipóteses em que é possível a preservação da legitimidade do ato se, inicialmente desviado de sua finalidade, supervenientemente atende ele ao interesse público.
Essa doutrina vem ao encontro da teoria da objetivação de alguns postulados do Direito Administrativo. Com efeito, não basta o elemento subjetivo para configurar o desvio de poder, ou seja, a comprovação, mediante indícios, de que o administrador teve em vista interesse alheio ao público. É necessário também que haja efetivo atendimento de finalidade estranha ao interesse público, o que ilustra a objetivação do conceito da teoria ora em análise.
Segundo o exemplo de Maria Sylvia Zanella Di Pietro acima citado, se a desapropriação, que pelo elemento volitivo visava atender interesse particular do administrador, converte-se na utilização do bem para um fim público (a construção de uma escola, por exemplo), não haveria, em tese, o desvio de finalidade, por lhe faltar o elemento objetivo.
Veja-se que, para a concepção clássica, haveria o desvio de poder independentemente da superveniência do atendimento ao interesse público, pois bastaria a configuração do elemento subjetivo.
Tal entendimento vem sendo acolhido pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, como se pode verificar em julgado da Segunda Turma que entendeu não haver o desvio de finalidade no caso concreto, “uma vez que, muito embora não efetivada a criação de Parque Ecológico, conforme constante do decreto expropriatório, a área desapropriada foi utilizada para o atingimento de outra finalidade pública”, razão por que “não há vício algum que enseje ao particular ação de retrocessão ou, sequer, o direito a perdas e danos”[2].
Essa mitigação da teoria clássica, contudo, há de ser considerada com cautela, pois não pode ser utilizada como forma de convalidação deturpada de atos desviados. Desse modo, deve-se averiguar, em cada hipótese, se o interesse público foi efetivamente atingido, à luz do princípio da proporcionalidade, à previsão original, em detrimento de eventuais interesses de camuflar a ilegalidade praticada inicialmente.
Infere-se da concepção acima traçada que pouco importa se o ato é discricionário para que o controle judicial seja realizado, pois a margem flexível de atuação do agente administrativo também decorre do princípio da legalidade.
A compreensão do caráter discricionário dos atos administrativos é facilitada pela sua observação conjunta com o pressuposto da finalidade. Se a lei aponta para várias ações administrativas possíveis de atendimento do interesse público, sem dúvida estamos diante de um caso de discricionariedade administrativa. Nessa hipótese, o agente público tem mais de uma opção legítima de atuação.
Por outro lado, o administrador extravasará o limite de discricionariedade se atender finalidade diversa do interesse público. É o que se constata das razões do seguinte julgado do Superior Tribunal de Justiça, em que, embora a Administração tenha se valido de seu poder discricionário para remoção do servidor, constatou-se o desvio de finalidade do ato administrativo[3]:
(...)
4. Ademais, a fundamentação apresentada nas informações evidencia desvio de finalidade pela incongruência entre o motivo e o objetivo do ato de remoção, cuja justificativa está marcada por generalismos e subjetivismos que identificam a presença de interesse público a partir de ilações sobre prejuízos que futuramente poderiam advir do serviço policial. Data venia, não pode a Administração Pública aferir aprioristicamente se as ações policiais serão ou não prejudicadas pelas diferenças profissionais entre o Delegado impetrante e seu coordenador. Ou se comprova concretamente a efetiva existência de prejuízo ao serviço público, ou não passam de um juízo de mero subjetivismo que não se compatibiliza com o princípio constitucional da impessoalidade considerações sobre transtornos futuros, eventuais e incertos - que poderão ocorrer ou não.
O que caracteriza invasão judicial indevida do mérito administrativo, entretanto, é o fato de o Poder Judiciário entender que a adoção pelo administrador de uma das finalidades legalmente possíveis caracterize desvio de poder. Nessa hipótese, não é dado ao magistrado a possibilidade de controlar uma ação legítima do administrador, sob pena de violação do princípio constitucional da separação de poderes.
Enfim, sobressai desse estudo a constatação da evolução doutrinária e jurisprudencial da concepção da teoria do desvio de finalidade, sobressaindo a tendência de sua objetivação. Isso demanda, sobremaneira, o desenvolvimento de critérios para a convalidação do ato administrativo inicialmente viciado pelo desvio de finalidade, do que se sobressai, desde já, a aplicação do princípio da proporcionalidade entre o objetivo público legal e o que efetivamente foi praticado.
Em conceituação genérica, todavia, é possível dizer que o desvio de finalidade, ou de poder, é a realização de ato administrativo por autoridade competente desassociada de um dos objetivos atendentes do interesse público previstos na lei.
Outras questões emergem da objetivação da teoria do desvio de finalidade e merecem maior aprofundamento, entre as quais a repercussão jurídica no campo sancionador (penal, disciplinar e de improbidade) dos atos inicialmente ilegais, por desatenderem o interesse público, mas que são convalidados por observarem supervenientemente o pressuposto da finalidade.
rEFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Embargos de Declaração em Embargos de Declaração em Recurso Especial nº 841.399, proferido pela Segunda Turma. Relator: Ministro Mauro Campbell Marques. Brasília, 14 set. 2010. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/>. Acesso em: 20 jul. 2014.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 37.327, proferido pela Segunda Turma. Relator: Ministro Herman Benjamin. Brasília, 12 set. 2013. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/>. Acesso em: 18 ago. 2014.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 21ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
CRUZ, José Raimundo Gomes da. O controle jurisdicional do processo disciplinar. São Paulo: Malheiros, 1996.
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MAZZA, Alexandre. Relação Jurídica de Administração Pública. São Paulo: Saraiva, 2012.
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MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 28ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011.
PESTANA, Márcio. Direito administrativo brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.
[1] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 7ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2011, p. 372.
[2] EDcl nos EDcl no REsp 841.399/SP, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 14/09/2010, DJe 06/10/2010
[3] RMS 37.327/SE, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 20/08/2013, DJe 12/09/2013
Procurador Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MEZZOMO, Renato Ismael Ferreira. Objetivação da teoria do desvio de finalidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 out 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41299/objetivacao-da-teoria-do-desvio-de-finalidade. Acesso em: 23 dez 2024.
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