Sumário: Introdução; 1. Algumas linhas introdutórias sobre as ações possessórias; 2. Defesa jurídica da posse e cabimento das diversas espécies de ações possessórias; 3. Fungibilidade das ações possessórias; 4. Natureza dúplice das ações possessórias; 5. Confronto entre Ações Possessórias e Petitórias; 6. A exceção do domínio e a Súmula 487 do STF; Considerações finais; Referências bibliográficas.
Introdução
O presente artigo tem por objetivo expor alguns pontos importantes acerca das ações possessórias, importante instrumento de defesa da posse previsto no CPC.
No desenvolvimento serão abordados temas como as diversas hipóteses de cabimento e respectivas espécies, a fungibilidade que caracteriza tais ações, sua natureza dúplice, a essencial distinção entre ações possessórias e petitórias, bem como a demonstração do fim da exceção de domínio e superação do enunciado de súmula 487 do STF.
Com isto, espera-se fornecer elementos que ajudem a esclarecer a essência das ações possessórias, facilitando seu uso e compreensão por parte dos mais diversos operadores do direito.
1. Algumas linhas introdutórias sobre as ações possessórias
As ações possessórias, cuja previsão legal está contida nos artigos 920 a 933 do Código de Processo Civil, são conhecidas como interditos possessórios. São ações onde é reclamada a posse somente com fundamento em seu exercício, ou seja, a posse com base nela mesma. Isto é, trata-se de uma ação que veicula o direito a uma proteção possessória ao possuidor que sofre violência, cujo pedido e causa de pedir são a posse.
No ponto, válido distinguir posse de propriedade:
Propriedade (art. 1.228, CC): é um direito, um título que permite ao seu titular o direito de uso, gozo, disposição e reivindicação da coisa.
Posse (art. 1.196 a 1.224, CC): é um fato (não é direito!) e independe de título. Segundo o art. 1.196, do CC, possuidor é quem exerce um dos atributos da propriedade.
O Código Civil adotou a teoria objetiva, proposta por Rudolf von Ihering, para justificar a posse como categoria jurídica. Para a constituição da posse basta apenas o elemento corpus (disposição física da coisa ou a mera possibilidade de fazê-lo), independentemente do elemento subjetivo animus domini, que consiste na intenção do possuidor de ter a coisa para si.
Em outra esteira encontrava-se a teoria subjetiva, proposta por Friedrich Karl von Savigny, segundo a qual a posse se caracteriza quando presente tanto o elemento corpus quanto o elemento subjetivo animus domini. Com essa classificação distinguia-se posse de detenção, pois se ausente a intenção de ter a coisa para si (animus domini), entendia estar caracterizada a detenção, porém se houvesse o respectivo animus, teríamos, então, a posse.
2. Defesa jurídica da posse e cabimento das diversas espécies de ações possessórias
A posse pode ser defendida de dois modos: ação de direito material (art. 1.210, § 1º, CC – desforço imediato da posse, espécie de autotutela) e ações possessórias.
Como visto, ação possessória é aquela que visa a proteger a posse daquele que a exerce e sofre violência. Se o pedido tiver outro fundamento, não se trata de ação possessória.
Pois bem. Esse ato de violência pode ser uma de três espécies: a) a turbação (“chateação/incômodo/perturbação” da posse); b) o esbulho (privação/perda da posse – Art. 1.224, CC); e c) a ameaça (iminente e real da posse).
E para cada espécie de violência, há, no direito brasileiro, uma espécie de ação tipicamente possessória:
a) Quando se quer proteger da turbação, tem-se a ação de manutenção de posse;
b) Quando se quer proteger do esbulho, tem-se a ação de reintegração de posse; e
c) Quando se quer proteger da ameaça, tem-se o interdito proibitório.
Interessante constatar que, em uma ação possessória, o autor tem de provar a posse mais o ato de violência. Só que hoje em dia muita gente defende que na possessória deve-se provar um terceiro elemento (seria uma exigência constitucional), qual seja: a função social da posse, pois só uma posse exercida de acordo com a função social é uma posse digna de proteção (a função social da propriedade exige uma função social da posse).
3. Fungibilidade das ações possessórias
Conforme visto, há três tipos de ações possessórias, as quais variam de acordo com a violência sofrida (são substancialmente idênticas, pois todas visam à proteção possessória). E além de substancialmente idênticas, toda a doutrina aponta que há zonas cinzentas em que é difícil identificar a espécie de agressão à posse, existindo a possibilidade, ainda, de que a agressão inicial venha a alterar-se no curso da demanda.
Nesse contexto, caso, por exemplo, haja a propositura de uma ação de manutenção de posse, devido à ocorrência de turbação, havendo no curso da demanda a efetiva perda da posse (esbulho), o provimento liminar ou a sentença deverá conceder a reintegração e não a manutenção da posse, eis que esta agora está perdida.
Não há maiores questionamentos acerca de tal fungibilidade, eis que o CPC a prevê expressamente, porquanto o art. 920, do CPC estabelece que o ajuizamento de uma ação possessória em vez de outra não obstará que o juiz conheça do pedido e conceda a medida mais adequada ao caso concreto.
4. Natureza dúplice das ações possessórias
A ação possessória é uma ação dúplice, consoante entendimento do STJ:
CIVIL E PROCESSUAL. RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO RECEBIDOS COMO AGRAVO REGIMENTAL. ARRENDAMENTO MERCANTIL. REINTEGRAÇÃO DE POSSE. CARÁTER DÚPLICE. CONTESTAÇÃO. PEÇA ESSENCIAL. AUSÊNCIA. RESOLUÇÃO DO CONTRATO. VRG. DEVOLUÇÃO OU COMPENSAÇÃO. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. IMPROVIMENTO.
I. Em virtude do caráter dúplice característico das ações possessórias, é lícito ao réu pleitear a revisão do contrato, mediante pedido feito em contestação.
II. Ausente tal peça nos autos do agravo de instrumento, impossível verificar a existência de julgamento extra petita reclamada pelo recorrente.
III. Com a resolução do contrato e a reintegração do bem na posse da arrendadora, possível a devolução dos valores pagos a título de VRG à arrendatária ou sua compensação com o débito remanescente. Precedentes.
IV. Embargos de declaração recebidos como agravo regimental, improvido este. (AgRg no Ag 1236127/SC, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, QUARTA TURMA, julgado em 16/11/2010, DJe 01/12/2010)
Todavia, alguns autores dizem que as ações possessórias não teriam uma verdadeira natureza dúplice, porquanto demandariam pedido da parte ré (pedido contraposto).
De acordo com o CPC, o réu, na sua contestação, pode pedir duas coisas, independentemente de reconvenção: a) proteção possessória (tutela possessória); e b) indenização (tutela ressarcitória).
Daí pode surgir a dúvida se seria cabível a reconvenção em possessória. E a resposta é afirmativa, desde que se peça algo distinto da proteção possessória e da indenização, porque isso pode ser pedido em contestação, independente da reconvenção. Caberia reconvenção, por exemplo, para formular pedido de resolução do contrato ou retenção por benfeitorias.
Válido destacar que defesa da ação possessória é possível a alegação de usucapião, consoante enunciado de Súmula 237 do STF “O usucapião pode ser argüido em defesa”. No mesmo sentido: NTJ/SP, APL 3494865720098260100.
Considera-se ação possessória aquela que visa a tutelar o direito de posse (jus possessionis), posse com fundamento tão somente no seu exercício (discute-se posse com base na própria posse) com fulcro na posse anterior ou atual que foi turbada ou esbulhada, ou está ameaçada de o ser. Dispensa-se prova ou discussão acerca do domínio ou qualquer situação jurídica de vantagem, ainda que não decorra do domínio (tal como um contrato de locação, de comodato). Basta se provar a posse esbulhada ou turbada.
Segundo Gajardoni, direito de posse como decorrência do direito de preservar a situação fática da posse.
Já na ação petitória os litigantes alegam o domínio ou alguma situação jurídica de vantagem. A causa de pedir é o direito à posse (jus possidendi), a qual não se tem nem se teve.
Nas palavras de Gajardoni: direito de possuir pela invocação do título dominial.
Por exemplo, um cidadão adquire um imóvel, constando estar o mesmo ocupado por quem não tem direito, situação em que não caberá demanda possessória, e sim petitória (ação reivindicatória), eis que o proprietário nunca teve posse anterior. Nessa hipótese, cumpre esclarecer que as ações petitórias seguem o rito ordinário, isto é, não gozam do rito especial destinado às possessórias.
6. A exceção do domínio e a Súmula 487 do STF
Não raras vezes, o possuidor, além de ter o direito à proteção possessória, ele também tem o domínio (direito de possuir a coisa). Normalmente, quem entra com ação possessória também alega que é dono. Este fato, entretanto, é irrelevante para a possessória.
Ocorre que, excepcionalmente, podia a questão do domínio ser versada no juízo possessório, tendo em vista as partes finais do art. 505[1] do CC/1916 e do art. 923[2], CPC (redações originais), determinavam ao juiz que não deferisse a posse a quem evidentemente não pertencesse a propriedade e que a deferisse àquele a quem pertencesse evidentemente o domínio, respectivamente.
Assim, a jurisprudência vinha limitando a duas hipóteses a permissão para exame, pelo juiz e dentro da esfera possessória, da questão da propriedade: a) quando ambos os litigantes disputavam a posse com fundamento em prova de domínio; b) quando o exame da prova não tinha sido capaz de dissipar a dúvida no que respeita ao verdadeiro possuidor.
E havia julgados do STF no sentido admitirem uma das duas hipóteses ou as duas e a Súmula 487 (STF) dispunha: "será deferida a posse a quem, evidentemente, tiver o domínio; se com base neste ela for disputada".
Entretanto, a fim de conciliar a contradição existente entre a impossibilidade de se discutir domínio no seio da ação possessória e as duas partes das referidas disposições legais, veio a Lei 6.820/80 (primeiro momento), a qual suprimiu a segunda parte do artigo 923 do CPC, razão pela qual parte da jurisprudência já havia começado a se posicionar no sentido da revogação do art. 505, CC/16 e da superação da Súmula 487 STF, a fim de extinguir a exceção de domínio em nosso ordenamento.
Dito entendimento foi ratificado pelo art. 1210, § 2º do CC 2002 (segundo momento), que repetiu o teor do Art. 505 do CC/16, sem a parte final que permitia a discussão do domínio na possessória (quadro comparativo das alterações legislativas no material de apoio).
Portanto, enquanto estiver tramitando a ação possessória, nem o autor nem o réu podem ajuizar, paralelamente, a ação petitória para obter a declaração de seu direito à posse, agora sem qualquer exceção, estando atualmente revogada/superada a Súmula 487 do STF pelo art. 1210, § 2º do CC/02.
Os Enunciados 78 e 79 da I Jornada de Direito Civil corroboram a conclusão acima, senão vejamos:
CONCLUSÃO 78 DA I JORNADA DE DIREITO CIVIL (CJF): Art. 1210: Tendo em vista a não recepção, pelo novo Código Civil, da exceptio proprietatis (art. 1210, § 2º) em caso de ausência de prova suficiente para embasar decisão liminar ou sentença final ancorada exclusivamente ius possessionis, deverá o pedido ser indeferido e julgado improcedente, não obstante eventual alegação e demonstração de direito real sobre o bem litigioso.
CONCLUSÃO 79 DA I JORNADA DE DIREITO CIVIL (CJF): Art. 1210: a exceptio proprietatis, como defesa oponível às ações possessórias típicas, foi abolida pelo CC 2002, que estabeleceu a absoluta separação entre os juízos possessório e petitório.
Importa destacar, por fim, que tramitará normalmente a ação petitória, e esta tiver sido ajuizada anteriormente à possessória, consoante entendimento do STJ:
PROCESSUAL CIVIL. PROPOSITURA DA AÇÃO. CIRCUNSCRIÇÃO JUDICIÁRIA COM MAIS DE UMA VARA. DATA DA DISTRIBUIÇÃO DA INICIAL. ART. 263, CPC. PRECEDENTES. PREVENÇÃO. JUÍZES DE MESMA COMPETÊNCIA TERRITORIAL. ART. 106, CPC. CPC, ART. 923. INAPLICABILIDADE. RECURSO DESACOLHIDO.
I - Nas comarcas com mais de uma vara, considera-se proposta a ação na data em que distribuída a petição inicial (art. 263, CPC).
II - Se as ações conexas tramitam na mesma comarca, fica preventa a competência do juiz que despacha em primeiro lugar (art. 106, CPC), sendo inaplicável em tal hipótese o art. 219 do Código de Processo Civil, para os fins de prevenção. Na espécie, todavia, a questão não se põe em termos de competência, mas de fixação do ajuizamento, para fins de aplicação, ou não, do art. 923, CPC.
III - Não se há de cogitar da incidência ou não da regra do art. 923, CPC, se a ação petitória foi ajuizada antes da possessória.
(REsp 139916/DF, Rel. MIN. SALVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, QUARTA TURMA, julgado em 23/09/1998, DJ 01/02/1999, p. 201)
Portanto, atualmente, não há mais exceção do domínio, sendo certo que enquanto estiver tramitando a ação possessória, as partes litigantes não podem ajuizar ação petitória para obter a declaração de seu direito à posse, estando atualmente revogada/superada a Súmula 487 do STF.
7. Considerações finais
Procurou-se, neste breve artigo, expor alguns pontos importantes acerca das ações possessórias, importante instrumento de defesa da posse previsto no CPC, a exemplo das diversas hipóteses de cabimento e respectivas espécies, a fungibilidade que caracteriza tais ações, sua natureza dúplice, a essencial distinção entre ações possessórias e petitórias, bem como a demonstração do fim da exceção de domínio e superação do enunciado de súmula 487 do STF.
Com isto, espera-se ter fornecido elementos que ajudem a esclarecer a essência das ações possessórias, facilitando seu uso e compreensão por parte dos mais diversos operadores do direito.
Bibliografia
ARAÚJO, Fábio Caldas, GAJARDONI, Fernando da Fonseca e MEDINA, José Miguel Garcia. Curso de Processo Civil Moderno. V.4: Procedimentos Cautelares e Especiais - 4ª Ed – São Paulo: RT, 2013.
WAMBIER, Luiz Rodrigues, ALMEIDA, Flávio Renato Correia de e TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil. V. 3: Processo Cautelar e Procedimentos Especiais. 11ª Ed. – São Paulo: RT, 2011.
[1] Art. 505, CC: “Não obsta à manutenção, ou reintegração na posse, a alegação de domínio, ou de outro direito sobre a coisa. Não se deve, entretanto, julgar a posse em favor daquele a quem evidentemente não pertencer o domínio.”.
[2] Art. 923 CPC: “Na pendência do processo possessório é defeso assim ao autor como ao réu intentar a ação de reconhecimento do domínio. Não obsta, porém, à manutenção ou à reintegração na posse a alegação de domínio ou de outro direito sobre a coisa; caso em que a posse será julgada em favor daquele a quem evidentemente pertencer o domínio.” (Redação original).
Procurador Federal e Professor de Processo Civil da Universidade Estadual do Tocantins (UNITINS). Pós-graduado em Direito Público (UnB/AGU), em Direito da Economia e da Empresa (Fundação Getúlio Vargas - FGV) e em Relações Internacionais (Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRAGA, Bruno César Maciel. As ações possessórias e o fim da exceção do domínio Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 out 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41362/as-acoes-possessorias-e-o-fim-da-excecao-do-dominio. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: ELISA CARDOSO BATISTA
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