I. Considerações iniciais
O presente estudo é uma tentativa de sistematização dos requisitos legais atinentes à adoção da solução legal de reconhecimento de dívida pela Administração Pública, bem como breve análise do entendimento jurisprudencial do Tribunal de Contas da União sobre a matéria.
II – Do instituto do reconhecimento de dívida
Mister se faz consignar que há vedação expressa no tocante à assunção pela Estado Brasileiro de obrigação extracontratual, nos termos do art. 60, parágrafo único, da Lei n. 8.666/93, que dispõe:
“Os contratos e seus aditamentos serão lavrados nas repartições interessadas, as quais manterão arquivo cronológico dos seus autógrafos e registro sistemático do seu extrato, salvo os relativos a direitos reais sobre imóveis, que se formalizam por instrumento lavrado em cartório de notas, de tudo juntando-se cópia no processo que lhe deu origem.
Parágrafo único. É nulo e de nenhum efeito o contrato verbal com a Administração, salvo o de pequenas compras de pronto pagamento, assim entendidas aquelas de valor não superior a 5% (cinco por cento) do limite estabelecido no art. 23, inciso II, alínea "a" desta Lei, feitas em regime de adiantamento.”
No entanto, a Lei n. 8.666/93 prevê a possibilidade de pagamento pelos serviços decorrentes do contrato nulo, a título de indenização. Nesse sentido, o art. 59 da citada Lei fornece o regramento aplicável aos efeitos decorrentes dos contratos administrativos nulo, estabelecendo:
Art. 59. A declaração de nulidade do contrato administrativo opera retroativamente impedindo os efeitos jurídicos que ele, ordinariamente, deveria produzir, além de desconstituir os já produzidos.
Parágrafo único. A nulidade não exonera a Administração do dever de indenizar o contratado pelo que este houver executado até a data em que ela for declarada e por outros prejuízos regularmente comprovados, contanto que não lhe seja imputável, promovendo-se a responsabilidade de quem lhe deu causa.
O ilustre Hely Lopes Meirelles, na obra Direito Administrativo Brasileiro (Ed. RT, 1992), no tocante à inexistência de contrato ou, mesmo, no caso de contrato nulo, observa com salutar propriedade:
"Todavia mesmo no caso de contrato nulo ou de inexistência de contrato pode tornar-se devido o pagamento dos trabalhos realizados para a Administração ou dos fornecimentos a ela feitos, não com fundamento em obrigação contratual, ausente na espécie, mas, sim, no dever moral de indenizar o benefício auferido pelo Estado, que não pode tirar proveito da atividade do particular sem o correspondente pagamento."
Entendimento uníssono também deflui de Marçal Justen Filho[1], que noticia a convergência de doutrina e jurisprudência no seguinte sentido:
“8) A vedação ao locupletamento indevido do Estado
O mesmo resultado atinge-se por outra via, relacionada com a vedação ao enriquecimento sem causa (Código Civil, arts. 884 a 886). Se não fosse prestado ao particular o montante correspondente ao que lhe fora originalmente assegurado, ter-se-ia de reconhecer um enriquecimento correspondente e sem causa em prol do Estado.
Ao se vedar o confisco de bens por parte do Estado, torna-se juridicamente descabida a possibilidade de apropriação de bens e direitos privados sem uma contrapartida.
A eventual invalidade do ato jurídico que conduziu o particular a realizar prestação em benefício do Estado não legitima o enriquecimento sem causa. Caberá a restituição do equivalente ao que o particular executou em prol do Estado. Se tal se verificar como impossível, a solução será a indenização pelo correspondente.
Bem por isso, a solução já fora consagrada no Direito francês, no qual se admite que a teoria do enriquecimento sem causa “permite assegurar indenizações, que a equidade recomenda, nos casos especialmente em que as obras foram executadas ou as prestações fornecidas com base em um contrato que, finalmente, não foi concluído, que foi entranhado de nulidade, que atingiu a seu termo ou em que nenhum instrumento foi preparado ou ainda à margem de um contrato”.
9) A solução legislativa brasileira específica
Esses são os princípios gerais que disciplinam o relacionamento entre a Administração e o particular. Mas existe solução específica no Direito brasileiro para o caso de contratações defeituosas. O legislador brasileiro efetivou opção clara pelas soluções compatíveis com um Estado Democrático de Direito. Além de todas as determinações atinentes à responsabilização civil do Estado, consagrou-se a disciplina específica do parágrafo único do art. 59 para a contratação administrativa inválida. Daí se segue que a invalidação, por nulidade absoluta, de qualquer ajuste de vontades entre Administração e particular gerará efeitos retroativos mas isso não significará o puro e simples desfazimento de atos. Será imperioso produzir a compensação patrimonial para o particular, sendo-lhe garantido o direito de haver tudo aquilo que pelo ajuste lhe fora assegurado e, ainda mais, a indenização por todos os prejuízos que houver sofrido.
Seguindo a linha de orientação, a jurisprudência judicial e administrativa é pacífica:
Jurisprudência do STJ
“PROCESSUAL CIVIL – AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL – OBJETO DA LICITAÇÃO DIVERGENTE DO EDITAL – DEVOLUÇÃO – UTILIZAÇÃO PELA AGRAVANTE POR CERTO PERÍODO – INDENIZAÇÃO PELO PRAZO UTILIZADO – CONSEQUÊNCIA – O EFEITO DO ART. 59, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI N.8.666/93 É CONSEQUÊNCIA DA ANULAÇÃO DO CERTAME – DESNECESSÁRIA A RECONVENÇÃO – IMPOSSIBILIDADE DE ENRIQUECIMENTO ILÍCITO.
1. In casu, o agravado forneceu o objeto da licitação em desconformidade com o que previa o edital. Discute-se se deve ser deduzido do valor a ser devolvido à agravante o valor referente à indenização pelo período que utilizou a máquina, sem que tenha havido pedido ou reconvenção nesse sentido.
2. O art. 59, parágrafo primeiro, da Lei n. 8.666/93 deve ser aplicado como consequência lógica da devolução, abatendo-se do montante a ser ressarcido à Universidade o valor referente ao uso efetivo da máquina e a sua depreciação.
3. Mesmo não sendo norma de ordem pública, deve o art. 59, parágrafo único da Lei n. 8.666/93 ser aplicado por questão de lógica jurídica ao se devolver a máquina após o uso, e para evitar o indesejado enriquecimento sem causa da agravante. Precedente.
Agravo regimental improvido.
(AgRg no REsp 1159120/MG, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/12/2009, DJe 19/02/2010)
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE COBRANÇA. CONTRATO ADMINISTRATIVO SEM PRÉVIA LICITAÇÃO. EFETIVA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO CONSTATADA PELO TRIBUNAL A QUO. INDENIZAÇÃO CABÍVEL. SÚMULA 7/STJ. HONORÁRIOS REDUÇÃO. SÚMULA 7/STJ.
1. Segundo jurisprudência pacífica desta Corte, ainda que o contrato realizado com a Administração Pública seja nulo, por ausência de prévia licitação, o ente público não poderá deixar de efetuar o pagamento pelos serviços prestados ou pelos prejuízos decorrentes da administração, desde que comprovados, ressalvada a hipótese de má-fé ou de ter o contratado concorrido para a nulidade.
2. Não há como alterar as conclusões obtidas pelo Tribunal de origem que, com base nas provas dos autos, entendeu ter havido a efetiva prestação do serviço por parte da autora. Incidência da Súmula 7/STJ.
3. Não sendo o caso de valor exorbitante, ante o arbitramento dos honorários em 10% (dez por cento) do valor da causa, não cabe a esta Corte modificar o decisório sem incursionar no substrato fático-probatório dos autos. Súmula 7/STJ.
4. Agravo regimental não-provido.
(AgRg no Ag 1056922/RS, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 10/02/2009, DJe 11/03/2009)
(...)Da moldura fática que se obtém do acórdão recorrido, os pontos mais importantes são:
a) A recorrida providenciou a compra, montagem e adaptação das ambulâncias objeto do certame antes da decisão da administração de anular o certame, o que evidencia um prejuízo obtido com a anulação da licitação.
b) A recorrida não concorreu para as causas da nulidade. É licitante de boa-fé.
Em tais situações, ainda que não se possa obrigar a administração a comprar esses veículos, pois não se aplica às licitações o princípio da contratação compulsória, deve-se indenizar os terceiros de boa-fé que foram atingidos pelo ato da administração.
A responsabilidade do estado nestas situações não decorre da quebra contratual, tendo em vista que esta ocorreu em face da constatação de irregularidades insanáveis. Trata-se de responsabilidade extracontratual, em que o dever de indenizar aflora em razão da ocorrência do dano ocasionado ao licitante de boa-fé. (...)
(Dec. Monocrática, REsp n. 895.352/DF, rel. Min. Humberto Martins, DJe de 07.08.2009)
O ordenamento jurídico pátrio veda o enriquecimento sem causa em face de contrato administrativo declarado nulo porque inconcebível que a Administração incorpore ao seu patrimônio prestação recebida do particular sem observar a contrapartida, qual seja, o pagamento correspondente ao benefício.
(REsp 753039/PR, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 21/06/2007, DJ 03/09/2007, p. 122)
(...)
Jurisprudência do TCU
“não há sentido em se proceder à anulação uma vez que os contratos já foram cumpridos a contento. Não se pode olvidar que a Administração é obrigada a realizar a contrapartida financeira em relação aos serviços devidamente prestados, sob pena de incorrer em enriquecimento sem causa” (Acórdão n. 1.029/2006, Plenário, rel. Min. Benjamin Zymler)
“Embora o Acórdão embargado tenha determinado a anulação da licitação e do contrato decorrente, permanece a obrigação de Administração em indenizar a empresa contratada pelos serviços executados até a sustação do contrato, consoante o disposto no parágrafo único do art. 59 da Lei 8.666/93. (Acórdão n. 2.240/2006, Plenário, rel. Min. Valmir Campelo)” (sem destaque no original)
Há de se asseverar que o procedimento de indenização de despesas deve ser utilizado somente em caráter excepcional, o que conduz à necessidade de apuração da responsabilidade administrativa daquele que causou a nulidade, consoante art. 59, parágrafo único, da Lei n. 8.666/93.
Nesse sentido, citamos a Orientação Normativa AGU n. 04, de 1º de abril de 2009: “ A despesa sem cobertura contratual deverá ser objeto de reconhecimento da obrigação de indenizar nos termos do art. 59, parágrafo único, da Lei n. 8.666/1993, sem prejuízo da apuração da responsabilidade de quem lhe der causa”.
Portanto, mesmo que seja juridicamente possível reconhecer dívida sem a necessária cobertura contratual e realizar seu pagamento, a Administração não está autorizada a utilizar este expediente de forma usual.
Contudo, eventual autorização para pagamento de despesas sem amparo contratual deverá ser conferida em processo de reconhecimento de dívida, o qual dever ser instruído com os seguintes documentos:
a) identificação do credor/favorecido;
b) descrição do objeto;
c) data de vencimento do compromisso;
d) importância exata a ser paga;
e) documentos fiscais comprobatórios;
f) ateste de cumprimento do objeto;
g) comprovação de pagamento de todos os encargos trabalhistas devidos aos prestadores de serviços;
Ademais, deverá constar no processo administrativo respectivo a existência de dotação orçamentária e financeira suficiente para efetuar o pagamento, bem como a comprovação da regularidade fiscal e trabalhista da beneficiária.
Registra-se, por oportuno, que o pagamento depende da comprovação da execução do serviço pelo interessado (art. 59, parágrafo único, da Lei n.º 8.666/93), do respectivo ateste, total ou parcial, do serviço e da necessária liquidação pela Administração, com os respectivos documentos comprobatórios, sob pena de indeferimento.
O ordenador de despesa observar o disposto no art. 62 e 63, da Lei n.º 4.320/64, in verbis: “Art. 62. O pagamento da despesa só será efetuado quando ordenado após sua regular liquidação. Art. 63. A liquidação da despesa consiste na verificação do direito adquirido pelo credor tendo por base os títulos e documentos comprobatórios do respectivo crédito. § 1° Essa verificação tem por fim apurar: I - a origem e o objeto do que se deve pagar; II - a importância exata a pagar; III - a quem se deve pagar a importância, para extinguir a obrigação. § 2º A liquidação da despesa por fornecimentos feitos ou serviços prestados terá por base: I - o contrato, ajuste ou acordo respectivo; II - a nota de empenho; III - os comprovantes da entrega de material ou da prestação efetiva do serviço.”
Deverá ser realizada pesquisa de mercado correspondente ao período objeto de cobrança administrativa, uma vez que a contratação direta sem licitação não dispensa a justificativa do preço (art. 26, inc. III, da Lei n. 8.666/93). Assim, deve a Administração certifica-se de que o preço a ser pago encontra-se em consonância com o valor de mercado, (a saber, com os demais valores pagos pela Administração Pública ou empresas provadas em contratações similares, com o mesmo e com outros fornecedores), devendo o gestor público negociar, se for o caso, a redução do valor cobrado de forma que o mesmo corresponda ao mais vantajoso (art. 3º, da Lei nº 8.666/93).
Por último, eventual pagamento administrativo deve ser acompanhado do respectivo termo de quitação integral pelos serviços, com eficácia administrativa e judicial, comprometendo-se a não efetuar qualquer cobrança ao Ente Público.
III – Considerações finais
Pelo exposto, no plano estritamente jurídico, cremos que a observância dos parâmetros apresentados possam revestir o ato administrativo de reconhecimento de dívida de razoável segurança jurídica, garantido o atingimento do interesse público e a correta atuação dos gestores.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FURTADO, Lucas Rocha. Curso de Licitações e Contratos Administrativos – 4ª ed. atual. Belo Horizonte: Fórum, 2012.
MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo – 30ª. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2013.
NIEBUHR, Joel de Menezes. Dispensa e Inexigibilidade de Licitação Pública – 3ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2011.
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 15ª ed. São Paulo: Dialética, 2012.
[1] Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Ed. Dialética, 15ª edição, 2012, pp. 852-855.
Procurador Federal. Especialista em Direito do Estado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRENTANO, Alexandre. Parâmetros de adoção do instituto de reconhecimento de dívida pela Administração Pública Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 out 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41388/parametros-de-adocao-do-instituto-de-reconhecimento-de-divida-pela-administracao-publica. Acesso em: 23 dez 2024.
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