Resumo: Este artigo pretende investigar o ordenamento jurídico no que tange à concreção da justiça contratual como princípio basilar do contrato enquanto relação jurídica. Os fundamentos normativos desse princípio encontram sólido alicerce na Constituição Federal, em seu princípio maior da dignidade da pessoa humana e até mesmo nas bases da ordem econômica e do direito privado, como a proibição do enriquecimento sem causa, função social do contrato, reciprocidade. Além disso, busca-se por meio deste analisar a composição do conteúdo jurídico e econômico das relações obrigacionais interpessoais com o objetivo de esclarecer a importância do princípio da justiça contratual, com base na proporcionalidade de interesses distintos e na convergência de elementos contratuais de diferentes dimensões.
Sumário:Introdução; 1. Aspectos gerais e históricos do contrato; 2. O Princípio da Justiça Contratual;2.1 Evolução histórica do princípio da justiça contratual, 2.2 Natureza jurídica e fundamentação do princípio da justiça contratual; 3. A Justiça Contratual no Código de Defesa do Consumidor; Conclusão; Bibliografia.
Palavras-chave: Contratos; Princípios Contratuais; Princípio da Justiça Contratual.
Introdução
Este artigo tem por objetivo analisar o princípio da justiça contratual, bem como discutir seu conceito, fundamentos legais e aplicação. Pretende-se, também, colocar em pauta as principais controvérsias acerca do referido princípio, ainda pouco discutido na doutrina nacional.
Com o advento das discussões globalizadas no mundo jurídico, o preceito da justiça contratual ganhou força com o reposicionamento dos direitos humanos frente à onipotência da mercantilização do direito privado, com o intuito de garantir que o contrato seja justo tanto em relação às partes contratantes quanto à sociedade em geral.
Ao lado da autonomia privada e da boa-fé objetiva, o princípio da justiça contratual condiciona o ordenamento jurídico e os operadores do sistema numa ótica mais personalista do direito obrigacional, compondo o que se propõe como ordem pública interna do contrato, sem o abandono do ideal particular do instituto.
A pesquisa realizada neste trabalho é de natureza bibliográfica e teórica, com levantamento documental, com o intuito de realizar uma análise de doutrinas e jurisprudências.
1. Aspectos gerais e históricos do contrato
Contrato é o acordo de duas ou mais vontades, na conformidade da ordem jurídica, destinado a estabelecer uma regulamentação de interesses entre as partes, com o escopo de adquirir, modificar ou extinguir relações jurídicas de natureza patrimonial (DINIZ, 2008).
O termo contrato tem origem no latim contractu, que quer dizer “tratar com”. Assim, denota-se que o contrato é um acordo entre duas ou mais pessoas acerca do mesmo objeto, que cria direitos e obrigações.
Nos ensinamentos de Orlando Gomes, contrato é, assim, o negócio jurídico bilateral, ou plurilateral, que sujeita as partes à observância de conduta idônea à satisfação dos interesses que regularam (GOMES, 2007).
Portanto, contrato é um “negócio jurídico bilateral, ou plurilateral, que sujeita as partes à observância de conduta idônea à satisfação dos interesses que regularam” (DINIZ, 2008).
Na concepção moderna contrato é negócio jurídico bilateral que gera obrigações para ambas as partes, que convencionam, por consentimento recíproco, a dar, fazer ou não fazer alguma coisa, verificando, assim, a constituição, modificação ou extinção do vínculo patrimonial.
A respeito da validade do contrato jurídico, Miranda ensina que a validade do contrato exige acordo de vontades, agente capaz, objeto lícito, possível, determinado ou determinável e forma prescrita ou não defesa em lei (MIRANDA, 2002). Porém, é necessária a observância de três preceitos fundamentais: a manifestação voluntária de vontade das partes, a supremacia da ordem pública e a obrigatoriedade de cumprimento, pois o contrato faz lei entre os contratantes.
Em relação aos aspectos históricos dos contratos, este tem sua origem vinculada com a intenção de preservar e tornar pacífica a convivência humana.
O contrato surgiu como garantia para o cumprimento de uma obrigação. Os romanos já discutiam acerca desse tema, porém de forma diferente do que conhecemos atualmente. Para os romanos, o contrato era uma verdadeira fonte de obrigação.
Passando pelo período medieval, os juristas afirmavam que os contratos perseguiam uma finalidade: a justiça. Daí o surgimento do princípio da justiça contratual, bem como da boa-fé. Só que nesta visão da Idade Média, não era a vontade das partes vista como natureza e fonte das obrigações, mas o próprio contrato. A justiça era o objetivo fim do contrato.
Esta visão só foi mudar com os jusnaturalistas, que realocaram a fonte da obrigação contratual do contrato para a vontade das partes. Hugo Grócio, em seu livro Direito da Paz e da Guerra, datado de 1625, relata sobre as condições de fonte do Direito. “Por direito natural e das gentes aqueles pactos que não tem sinalagma não induzem a obrigação alguma”.
Após, com o Código Civil Napoleônico, datado de 1804, há predominância dos aspectos da liberdade contratual e autonomia da vontade entre as partes. Atualmente, porém, estes princípios são limitados pelo interesse social do contrato.
No âmbito nacional, há um resgate ao princípio da justiça contratual, conforme passaremos a analisar no tópico seguinte.
2. O Princípio da Justiça Contratual
O princípio da justiça contratual (que engloba o equilíbrio econômico dos contratos, equivalência contratual) surge como um dos pilares da renovada concepção contratual, ao lado da boa-fé objetiva e da função social do contrato, possuindo enorme importância na ordem jurídica atual, partindo do pressuposto da igualdade material (de fato, substancial) nas relações jurídicas contratuais. Passamos a analisar a construção histórica de tal princípio.
2.1 Evolução histórica do princípio da justiça contratual
Conforme expõe Fernando Martins, o princípio da justiça contratual há muito se faz presente na aplicação do direito dos contratos, conforme se pode verificar desde a aplicação nos variados períodos históricos a seguir:
a) Na Grécia Antiga (na justiça comutativa e justiça distributiva formulada por Aristóteles);
b) No digesto do direito romano;
c) No pensamento tomista (São Tomás de Aquino) e o combate à usura e a consequente exigência pelo preço justo;
d) Na iniciativa dos glosadores, no que tange à permanência dos contratos ante a qualquer fato superveniente.
Durante Estado Gendarme, caracterizado pela racionalidade formal e pela liberalidade econômica, o princípio da justiça contratual foi reduzido aos vícios de consentimento e oposição à intervenção estatal nas relações particulares (mesmo em negócios jurídicos desequilibrados). Partia-se do pressuposto que as partes contratantes eram inerentemente justos, e o contrato era tratado como um instituto preventivo.
Na Idade Moderna, com o advento dos chamados Estados sociais, embebidos do racionalismo material dominante à época, o princípio da justiça contratual ressurgiu com toda a força: era primordial que houvesse uma dependência recíproca nas obrigações entre os contratantes. Havia uma preocupação com a equidade no caso concreto, no que tange às características subjetivas das partes contratantes. Busca-se evitar a onerosidade excessiva para a parte contratante, pois o contrato não deve existir no mundo jurídico se resulta no empobrecimento injustificado de uma das partes.
Atualmente, em tempos de racionalidade reflexiva, pode-se observar na legislação pátria, principalmente no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor, que o princípio da justiça contratual existe de forma implícita: não há enunciado normativo que contenha a expressão “justiça”.
2.2 Natureza jurídica e fundamentação do princípio da justiça contratual
De acordo com Renata Mandelbaum, "a justiça contratual é vista como uma modalidade da justiça comutativa, pressupondo a equivalência entre prestação e contraprestação." (MANDELBAUM, 1996, p. 106).
O princípio em questão revela-se na dualidade estabelecida entre os contratantes, objetivando a efetivação da igualdade material. Dessa forma, representa-se a noção de equilíbrio entre as prestações extraídas de uma relação contratual, tendo por fundamento o princípio da justiça contratual, conforme disposto no art. 170 da Constituição Federal de 1988.
Nesse ínterim, André Luiz Menezes Azevedo Sette afirma:
A justiça contratual consiste, pois, numa justa distribuição de ônus e riscos entre as partes do contrato, exercendo além da função de controle da equivalência das prestações (ou seja, que a contraprestação seja adequada à prestação), outra integrativa das questões que as partes deixaram de regulamentar no contrato, bem como, ainda, uma função de interpretação das normas contratuais em busca do bem comum e da igualdade material.[1]
A justiça contratual defende a necessidade da existência do equilíbrio contratual desde o nascimento da relação contratual até sua resolução, tendo em vista que o objetivo é garantir prestação e contraprestação equivalentes no contrato. Nesse sentido, expõe Rosenvald:
É cediço que o equilíbrio contratual prestigia o sinalagma negocial, seja em seu momento genético (evitando a lesão - art. 157, CC), seja em sua fase funcional (onerosidade excessiva - art. 478, CC), em prol daqueles que nas relações privadas são considerados como "menos iguais", seja ao tempo do ingresso no vínculo, seja, por fim, ao longo de sua trajetória.[2]
Rosenvald aponta, ainda, que a justiça contratual é capaz de trazer a igualdade substancial para os contratos, e não somente a igualdade formal. Diz ele:
O fato da igualdade substancial já se presta, por si só e em uma acepção mais restrita, a conceder relevância e suporte ao princípio da justiça contratual - como forma de equalização de vantagens e riscos do negócio jurídico -, merece consideração amplificada em sua especial relação com o princípio da solidariedade. O contrato prossegue na busca pela utilidade econômica que lhe é peculiar, mas passa a instrumentalizar as exigências de afirmação de uma substancial igualdade entre os seus partícipes.[3]
Esta assertiva expõe a compatibilidade da igualdade material nas relações jurídicas com o princípio da justiça contratual, com o intuito de garantir o equilíbrio tão almejado pelo ordenamento jurídico.
A justiça contratual tem seu fundamento em princípios constitucionais que orientam todo o sistema jurídico, além de expressarem normas de caráter fundamental. São eles:(i) a dignidade da pessoa humana; (ii) a liberdade; (iii) a igualdade; (iv) a segurança; (v) a informação; (vi) a defesa do consumidor; (vii) a ordem econômica. Destaca-se a igualdade, pois nas palavras de Hannah Arendt:
A igualdade, em contraste com tudo o que se relaciona com a mera existência, não nos é dada, mas resulta da organização humana, porquanto ela é orientada pelo princípio da justiça. (cf. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989).
Diferente do princípio do equilíbrio contratual, que se fundamenta somente na equivalência das prestações, o princípio da justiça contratual vai além, atinge o julgamento ético do contrato, tornando a relação jurídica fundamental justa.
Passamos a analisar a justiça contratual no Código de Defesa do Consumidor.
3.A Justiça Contratual no Código de Defesa do Consumidor
O princípio da justiça contratual é bastante evidente no Código de Defesa do Consumidor. A preocupação com a parte econômica mais frágil, o próprio consumidor hipossuficiente, exige proteção especial.
O referido princípio exerce papel fundamental para a manutenção do equilíbrio entre as partes. Os contratos devem ser realizados de tal forma que ambas as partes tenham resultados satisfatórios na sua execução.
Isto recai principalmente sobre os chamados contratos de adesão, muitas vezes elaborados de forma unilateral. Esses contratos de consumo contêm, em inúmeras situações, cláusulas consideradas abusivas pelo Direito, onerando, excessivamente, a parte hipossuficiente da relação A proteção através do princípio da justiça contratual dos interesses econômicos do consumidor recai sobre o controle de cláusulas abusivas, transcendendo a visão limitada da noção de equidade das partes no momento da confecção do contrato.
A justiça contratual é mais abrangente, pois se objetiva o equilíbrio total e amplo de toda relação contratual, inclusive de seu nível de tratamento leal e digno, única forma de manter e proteger as expectativas legítimas das partes, que são a base funcional que origina a troca econômica (MARQUES, 2009).
Nesse sentido:
O artigo 51, IV do Código de Defesa do Consumidor, em consonância com seu parágrafo 1.º, estabeleceu, fundado no princípio da boa-fé objetiva (artigo 4º, III CDC), uma cláusula geral proibitória da utilização de cláusulas abusivas nos contratos de consumo, que coíbe, amplamente, todas disposições relativas a abusos contratuais, com o objetivo de garantir a justiça contratual nas relações de consumo (MARQUES; BENJAMIN; MIRAGEM, 2006, p. 701).
Dessa forma, as interpretações nos contratos de consumo, normalmente firmados por meio de contratos de adesão, devem ser mais favoráveis ao consumidor, que se encontra em posição de inferior (devido à sua vulnerabilidade) perante o fornecedor, com o objetivo de garantir o equilíbrio contratual das partes e consagrar a justiça contratual, por meio da concretização da igualdade jurídica material nas relações contratuais de consumo.
Conclusão
Conclui-se, neste trabalho, que o conceito atribuído ao princípio da justiça contratual alterou-se com o advento da nova teoria contratual: antes, na teoria clássica, justiça contratual restringia-se à manutenção, por parte do intérprete do direito, da livre contratação e da identificação da igualdade formal entre os contratantes.
Atualmente, o paradigma da justiça contratual migra para o campo da igualdade material, não bastante mais a mera observação da igualdade formal entre as partes contratantes, no sentido de harmonizar o interesse das partes e promover o bem comum.
O princípio da justiça contratual é bastante evidente nas relações consumeristas, onde são comuns os chamados contratos de adesão. É sobre eles que, ao verificar a vulnerabilidade do consumidor, o citado princípio recai, com o intuito de nivelar o interesse e as prestações e contraprestações entre as partes contratantes.
Muitas vezes o princípio da justiça contratual não vem à tona com exatamente essa nomenclatura, porém atua na nossa sociedade através de cláusulas gerais que autorizam certa discricionariedade ao julgador, operando tanto pela norma infraconstitucional como pela norma constitucional. Em concreto, elenca a reciprocidade, equivalência material, proibição do enriquecimento sem causa, proporcionalidade, distribuição equitativa dos riscos e ônus, boa fé e a função social do contrato.
BIBLIOGRAFIA
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2008.
FIUZA, César. Para uma releitura da principiologia contratual. Disponível em: <http://www.fmd.pucminas.br/Virtuajus/ano2_2/Para%20uma%20releitura%20da%20principiologia%20contratual.pdf> Acesso em: 21 mai. 2011.
GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2007.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: contratos: teoria geral. São Paulo: Saraiva, 2006.
MANDELBAUM, Renata. Contratos de adesão e contratos de consumo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 199.
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 4. ed. Ver., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
MARTINS, Fernando R. A justiça contratual enquanto princípio de ordem pública, Carta Forense, 2010.
MIRANDA, Maria Bernadete. Teoria geral dos contratos. Revista Virtual Direito Brasil. 2008. Disponível em: http://www.direitobrasil.adv.br/artigos/cont.pdf. Acesso em 03 mar. 2012.
NERY JÚNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Anotado e Legislação Extravagante. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil: contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
ROSENVALD, Nelson. A função social do contrato, in: HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes; TARTUCE, Flávio (coord.). Direito Contratual: temas atuais. São Paulo: Método, 2007, p. 81-111.
SETTE, André Luiz Menezes Azevedo. Direito dos contratos: seus princípios fundamentais sob a ótica do Código Civil de 2002. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003.
WALD, Arnoldo. Obrigações e contratos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992.
[1] SETTE, André Luiz Menezes Azevedo. Direito dos contratos: seus princípios fundamentais sob a ótica do Código Civil de 2002. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, 147.
[2] ROSENVALD, Nelson. A função social do contrato, in: HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes; TARTUCE, Flávio (coord.). Direito Contratual: temas atuais. São Paulo: Método, 2007, p. 91.
[3] Ibid., p. 91.
Advogada (graduada na Faculdade Municipal de Direito de Franca e pós-graduanda em Contratos pelo INAGE - USP Ribeirão Preto/SP).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PAIM, Eline Luque Teixeira. O Princípio da Justiça Contratual Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 out 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41416/o-principio-da-justica-contratual. Acesso em: 23 dez 2024.
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