Introdução
A Constituição Federal de 1988 deu um salto no controle das omissões públicas, trazendo dois institutos específicos para tanto: o mandado de injunção e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão.
Sua pouca efetividade ao longo dos anos, no entanto, exigiu do STF um salto ainda maior na busca de meios para suprir algumas omissões que se estendiam (ou ainda se estendem) por décadas, colocando a Constituição no patamar da típica expressão consagrada por Ferdinand Lassale: uma simples folha de papel.[1]
Tais omissões persistiram justamente pela postura passiva da Corte, limitada às consequências pouco promissoras da declaração inconstitucionalidade do estado de omissão em que se encontra o respectivo órgão, simplesmente dando-lhe ciência dessa situação.
Normas constitucionais de eficácia limitada e normas programáticas
Para a correta compreensão do tema, é preciso partir de um conceito consagrado no Brasil a partir de classificação feita por José Afonso da Silva[2]: as chamadas normas de eficácia limitada.
Segundo o Autor, tais normas dependem da atuação do legislador para que produzam totalmente seus efeitos.[3] Distanciam-se das normas de eficácia plena (produzem eficácia desde sua vigência independentemente da atuação do legislador) ou das normas de eficácia contida (produzem efeitos desde a vigência, porém, podem ter seu alcance restringido pelo legislador).
Como se vê, os prejuízos pela omissão do legislador só são encontrados nas normas de eficácia limitada. As demais, já produzem efeitos por si só independentemente de lei que a regulamente.
As chamadas normas programáticas ocupam papel relevante nesse meio. O próprio José Afonso da Silva[4] as coloca como espécie de normas de eficácia limitada, hábil, em tese, a justificar omissão estatal passível de repressão pelo STF[5].
Seu conceito é nos dado por Canotilho em sua famosa tese de doutoramento: “o que deve (e pode) uma constituição ordenar aos órgãos legiferantes e o que deve (como e quando deve) fazer o legislador para cumprir, de forma regular, adequada e oportuna, as imposições constitucionais”.[6]
No entanto, há quem sustente que as normas programáticas não são causas do estado de inconstitucionalidade por omissão[7], já que fundadas num juízo de conveniência e oportunidade do legislador que, quando tratar do assunto, deve seguir as diretrizes programáticas lançadas pela constituição. Podem ser cumpridas, não aplicadas.[8] Não se submetem, pois, a um prazo para sua implementação.[9]
Assim, o silêncio do legislador diante de uma norma programática calcado em seu juízo de conveniência e oportunidade pode gerar, a princípio, comportamentos ainda constitucionais. A tendência, no entanto, é que tal omissão caminhe para um estado de inconstitucionalidade na medida em que passe a prejudicar a otimização de determinado direito fundamental, por exemplo.
Ao contrário, as chamadas normas definidoras de direitos – usando a classificação proposta por Luís Roberto Barroso[10] – impõem uma ordem direta e concreta ao legislador, cuja inobservância pode gerar a inconstitucionalidade de plano.
As palavras de Paulo Modesto são de grande valia para as duas situações: “numa Constituição compromissária, resultado de um complexo processo de concessões mútuas entre diversos grupos de interesse, a ocorrência de lacunas técnicas, lacunas de legislação, é não só fato frequente como inevitável. Pretender que essas lacunas técnicas, disseminadas por todo o texto constitucional, ensejem prontamente situações de inconstitucionalidade por omissão é um excesso, um equívoco que, por um lado, anula completamente o âmbito de ponderação política dos poderes do Estado sobre a conveniência e a oportunidade na edição da norma faltante e, por outro lado, declara ‘normal’ ou aceitável um estado patológico para o sistema: a inconstitucionalidade”.[11]
Nossa Constituição Federal está recheada de exemplos das normas de eficácia limitada e das normas programáticas.
Para as primeiras, cite-se o art. 5º, incisos VI (é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias) e XXVI (a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento).
Já como exemplo das normas programáticas, cite-se o art. 226 da CF (A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado) e art. 21, XI (Compete à União: [..] elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social).
Omissões parciais e omissões totais
Uma vez conhecidas as normas capazes de gerar a inconstitucionalidade por omissão, mister analisar a tipologia das omissões estatais propriamente ditas, substanciadas em atos político-administrativos, jurisdicionais e normativos.
Tradicionalmente, duas são as principais espécies tradas pela doutrina, com importância prática no seu controle judicial: omissão total e omissão parcial.
Será total a omissão que aniquila inteiramente determinado direito pela inércia absoluta do legislador, que ignora ordem direta e concreta da constituição. O mais clássico dos exemplos nesse caso é omissão providencial do legislador brasileiro diante da lei complementar exigida pelo hoje revogado art. 192, § 3º, da Constituição de 1988, que fixava o limite de 12% da taxa real de juros.
A omissão parcial, ao contrário, conta com manifestação deficiente ou incompleta do legislador que prejudica a efetivação de determinado comando constitucional. Importante classificação foi proposta por Luís Roberto Barroso: (a) omissão parcial propriamente dita, onde a norma existe, mas não satisfaz o ordenamento constitucional; e (b) omissão relativa, quando um ato normativo outorgar a alguma categoria de pessoas determinado benefício, com exclusão de outra ou outras categorias que deveriam ter sido contempladas, em violação ao princípio da isonomia.[12]
No Supremo Tribunal Federal, por exemplo, já se atestou a omissão parcial do Estado ao fixar valor insuficiente do salário mínimo como forma de atender ao disposto pelo art. 7º, IV, da Constituição de 1988. Segundo reconheceu, “a insuficiência do valor correspondente ao salário mínimo, definido em importância que se revele incapaz de atender as necessidades vitais básicas do trabalhador e dos membros de sua família, configura um claro descumprimento, ainda que parcial, da Constituição da República, pois o legislador, em tal hipótese, longe de atuar como o sujeito concretizante do postulado constitucional que garante à classe trabalhadora um piso geral de remuneração (CF, art. 7º, IV), estará realizando, de modo imperfeito, o programa social assumido pelo Estado na ordem jurídica”.[13]
Em outra oportunidade, o Min. Celso de Mello expos com acuidade o fenômeno das omissões inconstitucionais: “O Poder Público - quando se abstém de cumprir, total ou parcialmente, o dever de legislar, imposto em cláusula constitucional, de caráter mandatório - infringe, com esse comportamento negativo, a própria integridade da Lei Fundamental, estimulando, no âmbito do Estado, o preocupante fenômeno da erosão da consciência constitucional. A inércia estatal em adimplir as imposições constitucionais traduz inaceitável gesto de desprezo pela autoridade da Constituição e configura, por isso mesmo, comportamento que deve ser evitado. É que nada se revela mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição, sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou, então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem ajustados à conveniência e aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos”.[14]
Papel do Supremo Tribunal Federal
Como dito, por muito tempo o Supremo Tribunal Federal desempenhou papel de simples figurante no embate entre um comando constitucional e as frequentes omissões legislativas. Sua grande barreira que impedia de declarar o estado de inconstitucionalidade de determinado órgão legislativo, por exemplo, e avançar na prática do ato faltante, estaria na separação de poderes. Afinal, nesse caso, o STF usurparia as funções do outro poder.[15]
Com base nessa ideia, frequentemente assentava que “a procedência da ação direta de inconstitucionalidade por omissão, importando em reconhecimento judicial do estado de inércia do Poder Público, confere ao STF, unicamente, o poder de cientificar o legislador inadimplente, para que este adote as medidas necessárias à concretização do texto constitucional. Não assiste ao STF, contudo, em face dos próprios limites fixados pela Carta Política em tema de inconstitucionalidade por omissão (CF, art. 103, § 2º), a prerrogativa de expedir provimentos normativos com o objetivo de suprir a inatividade do próprio órgão legislativo inadimplente”.[16] Ou ainda: “o reconhecimento dessa possibilidade implicaria transformar o STF, no plano do controle concentrado de constitucionalidade, em legislador positivo, condição que ele próprio se tem recusado a exercer”.[17]
Ocorre que em algumas situações o descaso com a Constituição pelo Poder Legislativo era tamanho que o STF, cansado de tentar “estimular” a prática do ato, viu-se obrigado a enxergar novas vias, ainda que colocassem em cheque a relação harmônica entre os poderes.
Dois deles, por tratarem de casos emblemáticos, merecem ser citados.
No primeiro, tratou da regulamentação do direito de greve no serviço público cuja inércia legislativa, a despeito da expressa ordem contida no art. 37, VII, da CF/1988, durou aproximadamente dezenove anos. Em seu voto no MI nº 670, asseverou o Min. Celso de Mello: “o desprestígio da Constituição - por inércia de órgãos meramente constituídos - representa um dos mais graves aspectos da patologia constitucional, pois reflete inaceitável desprezo, por parte das instituições governamentais, da autoridade suprema da Lei Fundamental do Estado”.
Com base nesse raciocínio, o STF deu nova roupagem ao mandado de injunção e viabilizou o direito de greve no serviço público estendendo a regulamentação dada à iniciativa privada.[18]
Em outra oportunidade e utilizando-se do mesmo raciocínio, o Supremo Tribunal Federal tratou do direito à aposentadoria especial também no serviço público. Com a inércia legislativa por prazo irrazoável, não havia outra alternativa senão a adoção dos critérios eleitos para o Regime Geral de Previdência Social como meio de viabilizar o acesso à mencionada aposentadoria.
A ementa do acórdão consignou o seguinte: “ordem injuncional fundada na inexistência de norma regulamentadora do art. 40, § 4º, III, da Carta da República, a impedir o exercício de direito constitucionalmente assegurado, qual seja, a aposentadoria especial do servidor público que exerce atividades sob condições prejudiciais à saúde ou à integridade física. Ao julgamento do MI 721-7/DF, o Plenário do STF fixou o entendimento de que, evidenciada a mora legislativa em disciplinar a aposentadoria especial do servidor público prevista no art. 40, § 4º, da Lei Maior, se impõe a adoção supletiva, via pronunciamento judicial, da disciplina própria do Regime Geral da Previdência Social, a teor do art. 57 da Lei 8.213/1991”.[19]
Nos dois casos, como se vê, o STF deu cabo à discussão utilizando parâmetros fixados pelo próprio legislativo em situações análogas (greve na iniciativa privada e aposentadoria especial do regime geral). Trata-se de medida conciliatória que não o colocou na atípica condição de legislador positivo: não se criou norma; apenas se valeu de normas equivalentes para situações excepcionais.
Barroso, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2004.
Barroso, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 7ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
Coutinho, Jacinto Nelson de Miranda (org.). Canotilho e a Constituição dirigente. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
Gomes Canotilho, José Joaquim. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra: Coimbra Editora, 1994.
Gomes Canotilho, José Joaquim. Rever ou romper com a Constituição dirigente? Defesa de um constitucionalismo moralmente reflexivo. Cadernos de direito constitucional e ciências política, n. 15, São Paulo: RT, 1996.
Hesse, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Antônio Fabris, 1991.
Lassale, Ferdinand. A essência da Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998.
Miranda, Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo II, 3ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1996.
Modesto, Paulo. Inconstitucionalidade por omissão: categoria jurídica e ação constitucional específica. Revista de Direito Público, n. 99, São Paulo: RT, 1991.
Reis, José Carlos Vasconcellos dos. As normas constitucionais programáticas e o controle do Estado. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
Silva, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 1999.
Tavares, André Ramos. Tribunal e jurisdição constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1998.
[1] Cf. Lassale, Ferdinand. A essência da Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998. E, para uma visão crítica à teoria de Lassale: Hesse, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Antônio Fabris, 1991, p. 24.
[2] Silva, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 1999, lançado em 1967. Há outro importante estudo também digno de nota: Barroso, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 7ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2003, com a primeira edição em 1986.
[3] Silva, José Afonso da. Op. cit., p. 83-4.
[4] Silva, José Afonso da. Op. cit., p. 138 e s.
[5] É o que defende, por exemplo, Jorge Miranda, ao sustentar que a inconstitucionalidade por omissão legislativa se dá diante das normas não exeqüíveis por si, incluídas as normas programáticas (Miranda, Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo II, 3ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 508).
[6] Gomes Canotilho, José Joaquim. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra: Coimbra Editora, 1994, p. 11. Conferir do mesmo Autor: Gomes Canotilho, José Joaquim. Rever ou romper com a Constituição dirigente? Defesa de um constitucionalismo moralmente reflexivo. Cadernos de direito constitucional e ciências política, n. 15, São Paulo: RT, 1996, p. 7-17; Coutinho, Jacinto Nelson de Miranda (org.). Canotilho e a Constituição dirigente. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
[7] Barroso, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 7ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 165.
[8] Gomes Canotilho, José Joaquim. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra: Coimbra Editora, 1994, p. 223-4.
[9] Reis, José Carlos Vasconcellos dos. As normas constitucionais programáticas e o controle do Estado. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 218.
[10] Barroso, Luís Roberto. Op. cit., p. 99 e s.
[11] Modesto, Paulo. Inconstitucionalidade por omissão: categoria jurídica e ação constitucional específica. Revista de Direito Público, n. 99, São Paulo: RT, 1991, p. 120.
[12] Barroso, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 198.
[13] STF, ADI nº 1458/DF MC, Rel. Min. Celso de Mello, Diário da Justiça, 20/9/1996.
[14] STF, ADI nº 1484/DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJU 28/08/2001
[15] Nesse sentido: Tavares, André Ramos. Tribunal e jurisdição constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1998, p. 98.
[16] STF, ADI nº 1458/DF, Rel. Min. Celso de Mello, Diário da Justiça, 20/9/1996.
[17] STF, ADI nº 267/DF MC, Rel. Min. Celso de Mello, Diário da Justiça, 19/5/1995.
[18] Três mandados de injunção trataram do tema no STF: MI 670, 708 e 712.
[19] STF, MI 1229 AgR, Rel. Min. Rosa Weber, DJe 27-05-2013.
Procurador Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VICTORINO, Fábio Rodrigo. Generalidades sobre o controle judicial das omissões públicas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 out 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41476/generalidades-sobre-o-controle-judicial-das-omissoes-publicas. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Medge Naeli Ribeiro Schonholzer
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