1. INTRODUÇÃO
A compreensão isolada das normas atinentes à capacidade civil previstas no Código Civil de 2002 poderiam conduzir à conclusão de que o reconhecimento de filhos por menores de idade exigiria ou a assistência, caso o menor genitor contasse entre 16 e 18 incompletos, ou a prática do ato pelo seu representante legal, caso contasse menos de 16 anos. O mesmo se daria nas demais hipóteses de incapacidade absoluta ou relativa.
Porém, a natureza do ato em questão, o reconhecimento de filhos, bem como o cotejo de outros dispositivos da lei civil recomenda solução diversa desta que seria inicialmente aventada, em uma análise mais apressada dos institutos. O presente estudo visa, pois, a destacar as peculiaridades deste ato.
2. DAS NORMAS GERAIS CONCERNENTES À CAPACIDADE CIVIL
Desde o advento do atual código civil, a capacidade plena é alcançada aos 18 anos de idade, e não mais aos 21 anos, como era na vigência da legislação anterior, salvo a ocorrência de causas conducentes à incapacidade (enfermidade ou doença mental que retire o necessário discernimento para a prática de atos da vida civil; incapacidade de exprimir a vontade, ainda que por causa transitória; vício em álcool ou tóxicos ou doença mental que reduzam o discernimento, prodigalidade e desenvolvimento mental incompleto de pessoas excepcionais).
Art. 5o A menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil.
Contudo, a cessação da menoridade aos 18 anos de idade não implica que somente a partir desta idade poderá ocorrer o reconhecimento de filhos independentemente de assistência.
3. DO RECONHECIMENTO DE FILHO PELO ABSOLUTAMENTE INCAPAZ
O Código Civil de 2002, em opção festejada pela doutrina, dedicou seus primeiros artigos (1o ao 11) aos direitos da personalidade, categoria de direitos intransmissíveis e irrenunciáveis decorrentes da simples condição humana de seus titulares.
Direitos da personalidade são direitos subjetivos que têm por objeto os bens e valores essenciais da pessoa, no seu aspecto físico, moral e intelectual.
Como direitos subjetivos, conferem ao seu titular o poder de agir na defesa dos bens ou valores essenciais da personalidade, que compreendem, no seu aspecto físico o direito à vida e ao próprio corpo, o aspecto intelectual o direito à liberdade de pensamento, direito de autor e de inventor, e no aspecto moral o direito à liberdade, à honra, ao recato, ao segredo, à imagem, à identidade, e ainda, o direito de exigir de terceiros o respeito a esses direitos (AMARAL, 1998).
No ensinamento de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, esta elevada categoria contempla direitos à integridade física e à vida, direitos à integridade psíquica e às criações intelectuais e direitos relativos à integridade moral. Esta última classificação sugerida pelos autores citados contempla o direito à imagem, à honra e à identidade pessoal e familiar, ponto que interessa a este estudo.
Neste diapasão, compreende-se que o direito à identidade familiar integra a categoria de direitos da personalidade, tanto para aquele que busca o seu reconhecimento como membro de um grupo familiar, como aquele que busca reconhecer alguém como seu descendente. O Superior Tribunal de Justiça já teve oportunidade de afirmar que o direito de reconhecer filho é ato personalíssimo.
RECURSO ESPECIAL. DIREITO DE FAMÍLIA. FILIAÇÃO. ÓBITO. SUPOSTO PAI. RECONHECIMENTO VOLUNTÁRIO. HERDEIROS. DESCABIMENTO. I - O direito de reconhecer voluntariamente a prole é personalíssimo e, portanto, intransmissível aos herdeiros, não existindo no direito positivo pátrio norma que atribua efeitos jurídicos ao ato pelo qual aqueles reconhecem a condição de irmão, se o pai não o fez em vida. II - Falecido o suposto genitor sem manifestação expressa acerca da existência de filho extra matrimonium, a pretensão de inclusão do seu nome no registro de nascimento poderá ser deduzida apenas na via judicial, por meio de ação investigatória de paternidade. Recurso não conhecido. (REsp 832330 / PR. Relator Ministro Catro Filho. Terceira Turma. DJ 02.04.2007, p. 270).
Além disso, o estado de filiação é um "direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercido sem qualquer restrição."(REsp 1115428 / SP. Relator Ministro Luis Felipe Salomão. Quarta Turma. DJe 27.09.2013)
O dano moral configurou-se ao ser privada a vítima, ao longo de sua infância, adolescência e início da vida adulta, do direito personalíssimo e indisponível ao reconhecimento do seu estado de filiação, conforme disposto no art. 27 do ECA, desrespeitando-se a necessidade psicológica que toda a pessoa tem de conhecer a sua verdade biológica. Consequentemente, foi despojada do pleno acesso à convivência familiar, o que lhe tolheu, em termos, o direito assegurado no art. 19 do ECA, vindo a lhe causar profunda lacuna psíquica a respeito de sua identidade materno-filial. (REsp 1134677 / PR RECURSO ESPECIAL 2009/0158264-0)”(REsp 2009/0102089-9. Relator Luis Felipe Salomão. Quarta Turma. DJe 27.09.2013).
O caráter personalíssimo do reconhecimento de um filho não implica apenas que tal reconhecimento seria intransmissível aos seus herdeiros (hipótese de, após o falecimento do genitor um de seus filhos, previamente reconhecido como tal, vir a reconhecer, em nome do falecido pai e na condição de seu herdeiro, a paternidade de um outro filho daquele, irmão deste), mas implica, ademais, que tal ato não poderá ser realizado por meio da representação, caso o genitor seja absolutamente incapaz.
E qual seria, então, a solução para o reconhecimento de um filho havido por pessoa absolutamente incapaz? O julgado acima referenciado já aponta a solução: a ação investigatória de paternidade.
Portanto, caso uma pessoa menor de 16 anos venha a gerar uma criança, o reconhecimento da filiação desta exigirá que se mova uma ação de investigação de paternidade, haja vista que, dado o caráter personalíssimo do reconhecimento de filhos, o representante legal deste menor não o poderia representar no ato de registro do nascimento.
Nesta mesma senda, o magistério de Luiz Guilherme Loureiro:
O reconhecimento de paternidade é ato pessoal, de forma que os genitores do pai não podem representá-lo legalmente neste ato de vontade. Ainda que os avós paternos compareçam em cartório e reconheçam que seu filho é o pai do registrando, o Oficial não poderá estabelecer a paternidade: é preciso reconhecimento expresso do pai, ainda que por escrito particular com fimra reconhecida ou por escritura pública. Havendo apresentação de tais instrumentos, ou ainda de procuração onde o mandante reconheça expressamente a paternidade, é possível fazer constar do registro o nome do pai e dos avós paternos.
Por isso mesmo, o adolescente que ainda não completou dezesseis anos não pode reconhecer a paternidade, ainda que representado por seus genitores ou representantes legais, uma vez que não tem plena capacidade e o ato é personalíssimo. Neste caso, a paternidade somente pode se estabelecida por ação judicial (investigatória de paternidade).”
4. DO RECONHECIMENTO DE FILHO PELO MENOR RELATIVAMENTE INCAPAZ.
Ainda sob o influxo da constatação de que o reconhecimento de filho é ato personalíssimo, cumpre investigar se o ato de reconhecimento de filho, por menor relativamente incapaz, ou seja, a pessoa com idade entre dezesseis e dezoito anos) também exigiria o ajuizamento da ação investigatória de paternidade.
Entendemos que uma interpretação sistemática do Código Civil aponta para uma resposta negativa a este questionamento.
Ao dispor sobre as regras aplicáveis à sucessão testamentária, o Código Civil preceitua ser o testamento ato igualmente personalíssimo, porém facultado ao maior de 16 anos. Paralelamente a isto, é também possível o reconhecimento de filhos no testamento:
Art. 1.858. O testamento é ato personalíssimo, podendo ser mudado a qualquer tempo.
Art. 1.860. Além dos incapazes, não podem testar os que, no ato de fazê-lo, não tiverem pleno discernimento.
Parágrafo único. Podem testar os maiores de dezesseis anos.
Art. 1.609. O reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento é irrevogável e será feito:
I - no registro do nascimento;
II - por escritura pública ou escrito particular, a ser arquivado em cartório;
III - por testamento, ainda que incidentalmente manifestado;
IV - por manifestação direta e expressa perante o juiz, ainda que o reconhecimento não haja sido o objeto único e principal do ato que o contém.
Parágrafo único. O reconhecimento pode preceder o nascimento do filho ou ser posterior ao seu falecimento, se ele deixar descendentes.
Art. 1.610. O reconhecimento não pode ser revogado, nem mesmo quando feito em testamento.
Nesse diapasão, oportuna a lição de CATEB:
A lei não distingue entre seco e cor; todas as pessoas com menos de 16 anos foram proibidas pelo legislador de testar. Por outro lado, os menores com 16 anos completos podem fazer seu testamento, sozinhos, sem sofrerem a influência dos pais ou tutores. Não há necessidade de assistência para o menor, muito ao contrário, a lei quer que sua ação seja unipessoal, livre, plena, mesmo que sua capacidade intelectual esteja em formação. Lembra Pontes de Miranda que a simples prova de ter o pai vedado o ato do filho, ou criado dificuldades à livre manifestação da vontade testamentária, constitui causa suficiente para as medidas do art. 1.637 ou 1.638, I e III do Código Civil, além da responsabilidade criminal respectiva, na salvaguarda penal da liberdade de testar.
Portanto, se a lei igualmente permite o reconhecimento de filhos por meio do testamento, e sendo o testamento ato jurídico permitido ao maior de dezesseis anos, consequentemente há que se reconhecer a possibilidade de o maior de dezesseis anos reconhecer o filho também por outra via, diretamente no Registro de Pessoas Naturais.
Com efeito, se por se tratar de ato personalíssimo o Direito não admite a intervenção do assistente na elaboração do testamento, cujo conteúdo poderá validamente versar o reconhecimento de filho, há que se concluir que ao menor relativamente capaz é possível reconhecer o filho sem a assistência. Demais disso, sendo possível pela via do testamento, não há razão para não se reconhecer esta possibilidade pela via do registro.
Esta conclusão é igualmente esposada por LOUREIRO:
O menor relativamente incapaz (entre dezesseis e dezoito anos) pode reconhecer a paternidade independentemente de assistência. Aliás, se o menor com 16 anos tem capacidade para testar e pode reconhecer filho no testamento, pela mesma razão pode reconhecer a paternidade no registro de nascimento.
5. CONCLUSÃO
O reconhecimento de filhos, por se enquadrar na categoria dos direitos personalíssimos, atrai a incidência de regras excepcionais quando envolve menores.
Aos absolutamente incapazes, dentre os quais se incluem os menores de 16 anos, que devem ser representados na prática de atos da vida civil, não é possível o reconhecimento de filhos diretamente no registro. Por se tratar de ato personalíssimo, não poderá seu representante legal substituí-lo na prática do ato. Assim, o reconhecimento do filho exigirá que seja movida a ação investigatória de paternidade.
Já aos menores relativamente incapazes, caso daqueles com idade entre 16 e 18 anos é permitida a prática de determinados atos, dentre os quais testar. O testamento é também categoria de ato personalíssimo, e quando praticado pelo maior de 16 anos, deverá sê-lo sem a assistência. Assim, permitindo o Direito o reconhecimento de filhos por meio do testamento, e sendo o maior de 16 anos apto a testar, poderá também, consequentemente, reconhecer filho no Registro Civil sem a necessidade de concurso de seu assistente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CATEB, Salomão de Araújo. Direito das Sucessões. 5a ed. São Paulo: Atlas, 2008.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA, Rodolfo Filho. Novo curso de direito civil - Parte Geral. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004. v1.
LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos: Teoria e Prática. 3ª. ed. São Paulo: Método, 2012.
Graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pós-Graduada em Direito pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Procuradora Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOLLERO, Barbara Tuyama. O reconhecimento de filhos por menores Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 out 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41479/o-reconhecimento-de-filhos-por-menores. Acesso em: 23 dez 2024.
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