RESUMO: Análise dos direitos e interesses colidentes que envolvem o acesso aos autos de sindicância preparatória ou investigativa sob enfoque dos princípios constitucionais.
Palavras-chaves: Direito de vista. Sindicância preparatória ou investigativa. Acesso à informação. Contraditório e ampla defesa. Segurança. Interesse público. Princípio da unidade. Princípio da concordância prática.
O direito de acesso à informação é, sem dúvida, um dos pilares do Estado Democrático de Direito, mas tal regra não só pode como deve ser excepcionada quando colidente com outros valores e princípios que justifiquem a sua mitigação ou diferimento.
É o que ocorre com relação ao direito de vista de autos de sindicância investigativa, como veremos a seguir.
A sindicância investigativa, preparatória ou inquisitorialconstitui um “procedimento preliminar sumário, instaurada com o fim de investigação de irregularidades funcionais, que precede ao processo administrativo disciplinar”[1].
Tal modalidade de procedimento investigativo difere-se daquele previsto na Lei nº 8.112/90 (arts. 143 e 145), conhecido como sindicância contraditória ou punitiva, bem como daquele previsto na Lei nº 9.784/99, especialmente porque não se presta para a aplicação de qualquer penalidade.
Por este motivo, muito se questiona se a sindicância investigativa prescinde ou não da observância aocontraditório e à ampla defesa, e, consequentemente, da publicidade dos atos.
A solução desafia o estudo do chamado aparente conflito de normas, incidindo na hipótese o princípio da concordância prática ou da harmonização, consectário lógico do princípio da unidade constitucional. De acordo com esses princípios, os direitos fundamentais em conflito que não devem ser visualizados isoladamente, mas em consonância com o conjunto, do qual são parte inseparável, devendo ser harmonizados por meio de um juízo de ponderação que preserve e otimize ao máximo os direitos e bens protegidos, buscando-se o melhor equilíbrio possível entre eles.
Os direitos e garantias fundamentais não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna[2], de modo que o direito ao devido processo legal e ao acesso à informação devem ser sopesados no caso concreto à luz dos demais interesses e direitos colocados em jogo, quais sejam a eficácia da investigação, a segurança da sociedade e o interesse público.
Ana Paula de Barcellos esclarece que “o propósito da ponderação é solucionar esses conflitos normativos da maneira menos traumática para o sistema como um todo, de modo que as normas em oposição continuem a conviver, sem a negação de qualquer delas, ainda que em determinado caso concreto elas possam ser aplicadas em intensidades diferentes”[3].
Klaus Stern, ao se referir ao princípio da unidade da Constituição, em julgado da Corte Constitucional Federal Alemã, asseverou que “uma disposição constitucional não pode ser considerada de forma isolada nem pode ser interpretada exclusivamente a partir de si mesma. Ela está em uma conexão de sentido com os demais preceitos da Constituição, a qual representa uma unidade interna.”[4]
Na hipótese em apreço, a postergação do contraditório, da ampla defesa e da publicidade para o momento da instauração do processo administrativo (se for instaurado), assegura tanto os direitos fundamentais do investigado, uma vez que durante a sindicância preparatória não há acusados nem aplicação de penalidades, quanto o interesse público.
Por outro lado, a publicidade dos atos da sindicância coloca em risco todo o sucesso da investigação, ao priorizar um valor (acesso à informação) ao custo total de outros (segurança/interesse público), afastando, sem necessidade, os princípios da unidade da Constituição e da concordância prática.
Sobre o tema, Hely Lopes Meirelles leciona que a sindicância preparatória “dispensa defesa do sindicado e publicidade no seu procedimento, por se tratar de simples expediente de apuração ou verificação de irregularidade, e não de base para punição equiparável ao inquérito policial em relação à ação penal”[5].
Com efeito, “nessa espécie de sindicância, impõe-se o sigilo com vistas a preservar a dignidade do serviço público. Bem como para tornar mais eficientes os trabalhos investigatórios.[6]
Esse entendimento encontra respaldo na Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011), que admite o sigilo como exceção à regra da publicidade, notadamente quando a divulgação indiscriminada possa trazer riscos à sociedade ou ao Estado (art. 3, inc. I, c/c art. 4, inc. II), como no caso.
Os precedentes abaixo demonstram que a sindicância preparatóriaé inquisitiva e não se coaduna com a oferta do devido processo legal:
A estrita reverência aos princípios do contraditório e da ampla defesa só é exigida, como requisito essencial de validez, assim no processo administrativo disciplinar, como na sindicância especial que lhe faz as vezes como procedimento ordenado à aplicação daquelas duas penas mais brandas, que são a advertência e a suspensão por prazo não superior a trinta dias. Nunca, na sindicância que funcione apenas como investigação preliminar tendente a coligir, de maneira inquisitorial, elementos bastantes à imputação de falta ao servidor, em processo disciplinar subsequente.
(MS 22791, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 13/11/2003, DJ 19-12-2003 PP-00050 EMENT VOL-02137-02 PP-00308)
Voto: “(...) No caso concreto, (...) teve-se a sindicância, que chamei de “procedimento unilateral inquisitivo”.
(...) o art. 143, ao prever a sindicância, fala em ampla defesa.
Mas, a meu ver, o sistema - se é que se pode chamar de sistema esse aglomerado de dispositivos da Lei 8.112 - leva-nos a interpretar cum grano salis essa alusão à ampla defesa. Ela frequentemente não pode ser facultada desde o início, porque a sindicância pode ter por objeto buscar, já não digo a prova, mas indícios, elementos informativos sobre a existência da irregularidade de que se teve vaga notícia e de quem possa ser o seu autor, para que, aí sim, resultar, se a falta é grave, na instauração do processo, com a imprescindível notificação inicial para que o acusado acompanhe toda a instrução, esta, iniludivelmente contraditória. Nesse caso, não faria efetivamente sentido - que a essa sindicância - que se destina unicamente a concretizar uma imputação, a ser objeto de uma instrução contraditória futura - que já se exigisse fosse ela contraditória. (...)”
(STF, MS 22888, Relator(a): Min. NELSON JOBIM, Tribunal Pleno, julgado em 18/02/1998, DJ 20-02-2004 PP-00016 EMENT VOL-02140-02 PP-00252)
ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. VÍCIOS FORMAIS. INEXISTÊNCIA. APLICAÇÃO DA PENA DE DEMISSÃO. DESPROPORCIONALIDADE VERIFICADA NA ESPÉCIE. SEGURANÇA CONCEDIDA.
1. A sindicância que vise apurar a ocorrência de infrações administrativa, sem estar dirigida, desde logo, à aplicação de sanção, prescinde da observância dos princípios do contraditório e da ampla defesa, por se tratar de procedimento inquisitorial, prévio à acusação e anterior ao processo administrativo disciplinar. (...)
(STJ, MS 7983/DF, Rel. Ministro HÉLIO QUAGLIA BARBOSA, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 23/02/2005, DJ 30/03/2005, p. 131) Idem: STJ, Mandados de Segurança nº 10.827, 10.828 e 12.880
É possível inferir da própria literalidade do art. 5º, LV, da CF, que assegura o contraditório e a ampla defesa para litigantes em processos judicial ou administrativo e para acusados em geral, que tal garantia não se aplica à sindicância preparatória, em que há apenas meros investigados.
Destaca-se, ainda, que a Súmula Vinculante nº 14[7] do Supremo Tribunal Federal também não se aplica aos procedimentos administrativos, conforme já decidiu a própria excelsa Corte:
Súmula Vinculante 14 e inaplicabilidade para procedimentos de natureza cível ou administrativa
"O agravante não trouxe novos elementos aptos a infirmar ou elidir a decisão agravada. Como já demonstrado, a Súmula Vinculante n. 14 é aplicada apenas a procedimentos administrativos de natureza penal, sendo incorreta sua observância naqueles de natureza cível." Rcl 8.458 AgR (DJe 19.9.2013) - Relator Ministro Gilmar Mendes - Tribunal Pleno.
"O Verbete 14 da Súmula Vinculante do STF (É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa) não alcança sindicância que objetiva elucidação de fatos sob o ângulo do cometimento de infração administrativa. Com base nessa orientação, a 1ª Turma negou provimento a agravo regimental em que se reiterava alegação de ofensa ao referido enunciado, ante a negativa de acesso a sindicância." Rcl 10.771 (Informativo 734) - Relator Ministro Marco Aurélio - Primeira Turma.
Portanto, tão necessário para a elucidação efetiva dos fatos quanto justificável, o sigilo émedida que se impõe nas sindicâncias investigativas ou preparatórias em prol da segurança e do interesse público.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARCELLOS, Ana Paula. Alguns Parâmetros Normativos para a Ponderação Constitucional, in: LuísRoberto Barroso (Org.), A Nova Interpretação Constitucional. Ponderação, Direitos Fundamentais eRelações Privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 5ª ed. São Paulo: Ed. Saraiva,2003.
COSTA, José Armando da. Teoria e Prática do Processo Administrativo Disciplinar, 6ª ed., Brasília: Brasília jurídica, 2011.
Manual de Procedimento Administrativo Disciplinar da Controladoria Geral da União. Disponível em http://www.cgu.gov.br/publicacoes/guiapad/Arquivos/Manual_de_PAD.pdf, acesso em 13/05/14.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 37ª ed, São Paulo: Malheiros, 2011.
MORAIS, Alexandre de. Curso de Direito Constitucional. 14 ed. São Paulo: Atlas, 2003.
STERN, Klaus. Derechodel Estado de la Republica Federal alemana, in Luís Roberto Barroso. Interpretação e Aplicação da Constituição. 5ª ed. São Paulo: Ed. Saraiva,2003.
[1] Manual de Procedimento Administrativo Disciplinar da Controladoria Geral da União. Disponível em http://www.cgu.gov.br/publicacoes/guiapad/Arquivos/Manual_de_PAD.pdf, acesso em 13/05/14.
[2] MORAIS, Alexandre de. Curso de Direito Constitucional. 14 ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 61.
[3] Alguns Parâmetros Normativos para a Ponderação Constitucional, in: LuísRoberto Barroso (Org.), A Nova Interpretação Constitucional. Ponderação, Direitos Fundamentais eRelações Privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.57.
[4]Derechodel Estado de la Republica Federal alemana, in Luís Roberto Barroso. Interpretação e Aplicação da Constituição. 5ª ed. São Paulo: Ed. Saraiva,2003, p. 197.
[5] Direito Administrativo Brasileiro, 37ª ed, São Paulo: Malheiros, 2011, p. 705.
[6]COSTA, José Armando da. Teoria e Prática do Processo Administrativo Disciplinar, 6ª ed., Brasília: Brasília jurídica, 2011, p. 322.
[7]Súmula Vinculante 14 - É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.
Procuradora Federal, especialista em Direito Processual Civil, Graduada em Direito pelo Centro Universitário de Brasília e autora do livro "As ações coletivas como meio de redução de demanda e harmonização dos julgados: entraves processuais e soluções".
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: TAVEIROS, Nicole Romeiro. O direito de vista de autos de sindicância preparatória à luz dos princípios constitucionais da unidade e da concordância prática Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 nov 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41525/o-direito-de-vista-de-autos-de-sindicancia-preparatoria-a-luz-dos-principios-constitucionais-da-unidade-e-da-concordancia-pratica. Acesso em: 23 dez 2024.
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