INTRODUÇÃO
O tratamento jurídico conferido aos indígenas sob a égide do revogado Código Civil de 1916 (Lei n.º 3.071/1916) e do Estatuto do Índio (Lei n.º 6.001/1973) revelava a política integracionista do Estado Brasileiro em relação a essa população, sobretudo pela previsão do instituto da tutela da pessoa do índio, atribuída ao extinto Serviço de Proteção aos Índios – SPI.
Muito embora a Constituição Federal de 1988 tenha alterado substancialmente esse panorama ao reconhecer a capacidade civil dos indígenas, não se desconhece que ainda grassam na doutrina e na jurisprudência controvérsias sobre a responsabilidade do Estado, por meio do órgão de proteção e promoção dos direitos dos povos indígenas – a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) -, pelos atos praticados pelos índios.
Deveras, são frequentes as demandas judiciais que visam à condenação da FUNAI ao ressarcimento civil de danos morais e materiais oriundos de condutas realizadas pessoalmente por indígenas, havendo inúmeros precedentes desfavoráveis à Fundação, fundamentados na premissa de que, competindo à entidade a tutela dos povos indígenas, deve ela responder civilmente pelos atos por eles praticados.
Nesse contexto, o presente trabalho tem por objetivo examinar a questão da responsabilidade civil da FUNAI pelos atos praticados por indígenas, sob a ótica dos princípios e normas extraídos da Constituição Federal de 1988, os quais devem permear a interpretação da legislação infraconstitucional pertinente ao assunto.
DESENVOLVIMENTO
Segundo a legislação anterior ao texto constitucional ora vigente, de caráter eminentemente integracionista, os indígenas eram considerados relativamente incapazes e estavam sujeitos ao chamado regime tutelar, exercido, de início, pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), e, posteriormente, pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI). O regime de tutela cessava à medida em que os índios se adaptassem à sociedade nacional, sendo facultado ao indígena requerer ao juiz competente a sua liberação do referido regime, quando só então estaria revestido da capacidade civil plena.
Daí porque, inclusive, o Estatuto do Índio (Lei n.º 6.001/1973), em seu art. 4º, classificava os indígenas em isolados, em vias de integração e integrados, de acordo com o seu nível de integração à comunhão nacional, estabelecendo que apenas os indígenas não integrados estavam sujeitos à tutela do órgão federal de assistência.
Ao regime tutelar dos indígenas aplicava-se, no quanto cabível, as normas da tutela do direito comum, destinada aos filhos menores, de modo que competia ao órgão tutor, no caso, a FUNAI, nos moldes do art. 422 do Código Civil de 1916 (Lei n.º 3.071/1916), reger a pessoa do índio, velar por ele e administrar-lhe os bens.
Nesse sentido, impende trazer à baila os seguintes dispositivos do antigo Código Civil e do Estatuto do Índio, in verbis:
Art. 6o São incapazes, relativamente a certos atos (art. 147, I), ou à maneira de os exercer: (Redação dada pela Lei nº 4.121, de 27.8.1962)
I - os maiores de 16 (dezesseis) e os menores de 21 (vinte e um) anos (arts. 154 a 156); (Redação dada pela Lei nº 4.121, de 27.8.1962)
II - os pródigos; (Redação dada pela Lei nº 4.121, de 27.8.1962)
III - os silvícolas. (Redação dada pela Lei nº 4.121, de 27.8.1962)
Parágrafo único. Os silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar, estabelecido em leis e regulamentos especiais, o qual cessará à medida que se forem adaptando à civilização do País. (Redação dada pela Lei nº 4.121, de 27.8.1962)
Art. 7º Os índios e as comunidades indígenas ainda não integrados à comunhão nacional ficam sujeito ao regime tutelar estabelecido nesta Lei.
§ 1º Ao regime tutelar estabelecido nesta Lei aplicam-se no que couber, os princípios e normas da tutela de direito comum, independendo, todavia, o exercício da tutela da especialização de bens imóveis em hipoteca legal, bem como da prestação de caução real ou fidejussória.
§ 2º Incumbe a tutela à União, que a exercerá através do competente órgão federal de assistência aos silvícolas.
Art. 8º São nulos os atos praticados entre o índio não integrado e qualquer pessoa estranha à comunidade indígena quando não tenha havido assistência do órgão tutelar competente.
Parágrafo único. Não se aplica a regra deste artigo no caso em que o índio revele consciência e conhecimento do ato praticado, desde que não lhe seja prejudicial, e da extensão dos seus efeitos.
Art. 9º Qualquer índio poderá requerer ao Juiz competente a sua liberação do regime tutelar previsto nesta Lei, investindo-se na plenitude da capacidade civil, desde que preencha os requisitos seguintes:
I - idade mínima de 21 anos;
II - conhecimento da língua portuguesa;
III - habilitação para o exercício de atividade útil, na comunhão nacional;
IV - razoável compreensão dos usos e costumes da comunhão nacional.
Parágrafo único. O Juiz decidirá após instrução sumária, ouvidos o órgão de assistência ao índio e o Ministério Público, transcrita a sentença concessiva no registro civil.
Art. 10. Satisfeitos os requisitos do artigo anterior e a pedido escrito do interessado, o órgão de assistência poderá reconhecer ao índio, mediante declaração formal, a condição de integrado, cessando toda restrição à capacidade, desde que, homologado judicialmente o ato, seja inscrito no registro civil.
Competindo, pois, à FUNAI a tutela dos índios, eis que relativamente incapazes para exercer os atos da vida civil, e considerando-se, na forma da legislação acima citada (art. 8º do Estatuto do Índio), que os atos por ele praticados em face de não indígenas deveriam ter por base a necessária e indispensável assistência da FUNAI para que tivessem validade, é de se concluir que, caso tais atos dos indígenas viessem a causar prejuízo a terceiros, a FUNAI, enquanto sua tutora, deveria responsabilizar-se pelos danos correlatos.
No entanto, com o advento da Constituição Federal de 1988, tal panorama alterou-se de maneira radical e substancial.
Deveras, o texto constitucional de 1988 rompeu com a política integracionista dos indígenas, reconhecendo, ao revés, as especificidades dessas populações e a sua diversidade étnico-cultural, considerando a comunidade indígena enquanto elemento humano componente da sociedade brasileira.
Por força disso, a Constituição, procurando valorizar a pluralidade étnica e cultural marcante na formação da população brasileira, conferiu proteção aos usos e costumes indígenas (línguas, crenças, tradições, organização social, manifestações culturais, terras tradicionalmente ocupadas), numa forma de preservar essas comunidades, e não de simplesmente extirpar seus elementos culturais e integrá-las à dita comunhão nacional. Outra não é a direção do art. 231 da Constituição Federal, a seguir exposto:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
§ 3º - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
§ 4º - As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.
§ 5º - É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.
§ 6º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.
§ 7º - Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.
Há, pois, uma inegável mudança de paradigmas com relação ao tratamento conferido pelo constituinte de 1988 aos índios e suas comunidades.
E é justamente como forma de assegurar aos indígenas a efetiva proteção ao seu patrimônio material e intelectual e do seu modo de vida que a Constituição Federal, de maneira inovadora, reconheceu aos índios, suas comunidades e organizações a capacidade processual, é dizer, a possibilidade de ingressar pessoalmente em juízo para defender seus direitos e interesses, nos moldes do que dispõe o art. 232 da Carta de 1988, in verbis:
Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.
A capacidade processual, segundo as lições de Fredie Didier Jr. (in Direito processual Civil: Teoria geral do processo e processo de conhecimento. 6 ed. Salvador: JusPODIVM, 2006, p. 212/213):
é a aptidão para praticar atos processuais independentemente de assistência e representação (pais, tutor, curador etc.), pessoalmente, ou por pessoas indicadas pela lei, tais como o síndico, administrador de condomínio, inventariante etc. (art. 12 do CPC). A capacidade processual ou de estar em juízo diz respeito à prática e a recepção eficazes de atos processuais, a começa pela petição e a citação, isto é, ao pedir e ser citado. (grifo nosso)
Nesse sentido, inclusive, encontra-se o quanto disposto no art. 7.º do Código de Processo Civil, consoante o qual “Toda pessoa que se acha no exercício dos seus direitos tem capacidade para estar em juízo”.
Evidente, pois, como leciona Fredie Didier Jr. (in Direito processual Civil: Teoria geral do processo e processo de conhecimento. 6 ed. Salvador: JusPODIVM, 2006, p. 213), que se verifica “uma estreita relação entre a capacidade processual e capacidade material (capacidade de exercício)”, nos termos do referido dispositivo, razão pela qual aquele que não possui capacidade de exercer, plenamente, os atos da vida civil não pode dispor de capacidade de estar em juízo. Contrario sensu, portanto, é de se concluir que a capacidade processual pressupõe a aptidão para exercer, pessoalmente, independentemente de representação ou assistência, os atos da vida civil.
Assim sendo, havendo a Constituição Federal de 1988 reconhecido aos índios a capacidade processual, reconheceu-lhes, também, ipso facto, a capacidade civil plena.
Outro não é o entendimento de Luiz Fernando Villares (in Direito e povos indígenas. Curitiba: Juruá, 2009. p. 60.), tal como se infere do excerto abaixo transcrito:
Essa situação perdurou até a Constituição Federal de 1988, que, no art. 232, reconheceu expressamente aos índios, suas comunidades e organizações a capacidade processual, ou seja, a possibilidade de ser parte legítima para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses. De acordo com o art. 7º do Código de Processo Civil, ‘toda pessoa que se acha no exercício dos seus direitos tem capacidade para estar em juízo’. Conforme os ensinamentos de Humberto Theodoro Júnior, ‘em regra geral, a capacidade que se exige da parte para o processo é a mesma que se reclama para os atos da vida civil, isto é, para a prática dos atos jurídicos de direito material (CC, arts. 9.º e 13)’ e ‘não tem capacidade processual quem não dispõe de aptidão civil para praticar atos jurídicos materiais, como os menores e os alienados mentais. Da mesma forma que se passa com a incapacidade civil, supre-se a incapacidade processual por meio da figura da representação’. Pois bem, se a Constituição Federal de 1988 reconheceu a capacidade processual, claro está que reconhece, de forma geral, a capacidade plena do índio, das comunidades indígenas e de suas organizações”. (grifo nosso)
Dessa forma, reconhecendo aos índios a capacidade processual e, consequentemente, a capacidade civil plena, a Constituição Federal de 1988 pôs fim, irremediavelmente, ao instituto da tutela sobre os povos indígenas, na forma como concebido pelo Estatuto do Índio, já que não mais se afigura juridicamente cabível que os índios, enquanto indivíduos civilmente capazes, dependam de um órgão público e de seus agentes para exercer seus direitos e administrar sua vida e seu patrimônio.
Outra não é a razão pela qual o texto constitucional de 1988 não contém qualquer previsão acerca da tutela da pessoa do índio pela União, havendo a Carta Magna, ao revés, conferido relevo à proteção dos costumes, organização social, crenças, tradições, línguas e território das populações indígenas. Com isso, a Constituição Federal, inegavelmente, alterou o enfoque do papel do Estado Brasileiro em relação aos índios, deixando claro que o dever da União não mais se refere à tutela de pessoas, mas, sim, à proteção de direitos.
Nesse sentido, tem-se o entendimento de Helder Girão Barreto (in Direitos Indígenas – Vetores Constitucionais. – Curitiba: Juruá, 2005, p. 42/43):
É necessário não continuar confundindo tutela enquanto ‘incapacidade’ e tutela enquanto ‘proteção’.
Pensamos que a ‘tutela-incapacidade’ não foi recepcionada, porquanto a CF/88 abandonou o ‘paradigma da integração’ (cujo pressuposto era exclusivamente a ‘incapacidade’), substituindo-o pelo ‘paradigma da interação’ (cujo fundamento é precisamente a ‘diferença’)(...)
Tentaremos explicar melhor nosso ponto de vista. A CF/88 – que reconhece o índio como ‘diferente, sem que essa ‘diferença’ possa ser confundida com ‘incapacidade’ e que reconhece a ‘capacidade’ do índio para ingressar em juízo na defesa de seus direitos, sem depender de intermediação[1] - alterou substancialmente a natureza do regime tutelar indígena: primeiro, esse regime passou a ter natureza exclusivamente ‘protetiva’; segundo, passou a ter estatura ‘constitucional’. (g.n.)
Trata-se, assim, de hipótese de não-recepção, pela Constituição Federal de 1988, dos dispositivos do Estatuto do Índio relativos à tutela de índios não integrados e à classificação dos indígenas de acordo com sua integração à comunhão nacional (VILLARES, Luiz Fernando. Direito e povos indígenas. Curitiba: Juruá, 2009. p. 60).
Destarte, em se considerando, sob a nova ordem constitucional, a capacidade civil plena dos índios e a constatação de que a tutela das populações indígenas transmudou-se de uma tutela de pessoas para uma tutela de direitos, não se pode mais admitir que o Estado se responsabilize objetivamente pelas ações e omissões dos índios.
Tal tratamento não condiz com o espírito arraigado na Constituição. A proteção dos direitos indígenas não importa a chancela da FUNAI a condutas ilegais que venham a ser praticada por índios. A Fundação, pelo só fato de ser a entidade responsável pela proteção e promoção dos direitos indígenas, não possui meios para obrigar qualquer indígena a fazer ou deixar de fazer algo. A FUNAI deve zelar pelo bem-estar dos índios, mas não possui poder decisório sobre as atitudes por eles tomadas, não podendo, pois, se responsabilizar por atos de quem possui capacidade civil plena.
Nesse sentido, cumpre registrar que o novel Estatuto da FUNAI, aprovado pelo Decreto nº 7.778, de 27 de julho de 2012, estabelece expressamente as atribuições e finalidades da entidade, deixando claro o papel da Fundação quanto à proteção e promoção dos direitos dos povos indígenas, sem qualquer tipo de previsão relativa à tutela da pessoa do índio ou ao suprimento de sua suposta “incapacidade”. Confira-se, pois, o disposto no art. 2º do Estatuto da FUNAI, in verbis:
Art. 2o A FUNAI tem por finalidade:
I – proteger e promover os direitos dos povos indígenas, em nome da União;
II - formular, coordenar, articular, monitorar e garantir o cumprimento da política indigenista do Estado brasileiro, baseada nos seguintes princípios:
a) reconhecimento da organização social, costumes, línguas, crenças e tradições dos povos indígenas;
b) respeito ao cidadão indígena, suas comunidades e organizações;
c) garantia ao direito originário, à inalienabilidade e à indisponibilidade das terras que tradicionalmente ocupam e ao usufruto exclusivo das riquezas nelas existentes;
d) garantia aos povos indígenas isolados do exercício de sua liberdade e de suas atividades tradicionais sem a obrigatoriedade de contatá-los;
e) garantia da proteção e conservação do meio ambiente nas terras indígenas;
f) garantia de promoção de direitos sociais, econômicos e culturais aos povos indígenas; e
g) garantia de participação dos povos indígenas e suas organizações em instâncias do Estado que definam políticas públicas que lhes digam respeito;
III - administrar os bens do patrimônio indígena, exceto aqueles cuja gestão tenha sido atribuída aos indígenas ou às suas comunidades, conforme o disposto no art. 29, podendo também administrá-los por expressa delegação dos interessados;
IV - promover e apoiar levantamentos, censos, análises, estudos e pesquisas científicas sobre os povos indígenas visando à valorização e à divulgação de suas culturas;
V - monitorar as ações e serviços de atenção à saúde dos povos indígenas;
VI - monitorar as ações e serviços de educação diferenciada para os povos indígenas;
VII - promover e apoiar o desenvolvimento sustentável nas terras indígenas, conforme a realidade de cada povo indígena;
VIII - despertar, por meio de instrumentos de divulgação, o interesse coletivo para a causa indígena; e
IX - exercer o poder de polícia em defesa e proteção dos povos indígenas. (grifo nosso)
Tornar-se-ia inviável o desempenho de suas funções se a FUNAI fosse responsável por todas as condutas, legais ou ilegais, praticadas pelos índios. Com efeito, se se começar a imputar tais condutas à FUNAI, inclusive com suas consequências pecuniárias, ficarão prejudicadas as suas atividades fins, ameaçando-se a continuidade do serviço público; e com a insuficiência de verbas, a pretexto de se estar aplicando a tutela, estar-se-ia, na verdade, restringindo a atuação da FUNAI em prol da defesa dos direitos indígenas.
De fato, caso a FUNAI, por hipótese, fosse responsável por todos os atos dos indígenas, isso poderia conduzir a situações absurdas, como a responsabilização da Fundação por pagamentos de contas de água, luz, telefone (fixo e celular), da mercearia, cheques sem fundos, financiamento de automóveis e da casa própria, inclusive em favor de índios que possuam uma melhor condição econômico-financeira de vida[2]. Ainda poderia a Fundação ser responsabilizada caso o índio praticasse homicídio em face de alguém, cuja família, em sede de ação civil, acionasse a FUNAI para pagar a indenização eventualmente devida pelo autor do delito.
Além disso, deve-se destacar que inexiste previsão legal de responsabilidade subsidiária da FUNAI por danos decorrentes de atos praticados por indígenas.
Conforme previsão do art. 37, § 6º, da Constituição Federal, as pessoas jurídicas de direito público possuem responsabilidade objetiva pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causam a terceiros. O dever de indenizar independe, portanto, de culpa, desde que o dano tenha decorrido de ato praticado por seus agentes. Em outras palavras, a responsabilidade objetiva do Estado é condicionada ao dano decorrente, apenas, de sua atividade administrativa.
A expressão “agentes” tem sentido amplo, compreendendo os agentes políticos, os agentes administrativos (servidores públicos civis e militares, empregados públicos, servidores temporários) e os particulares em colaboração com o Estado (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 602).
Dessa forma, a noção de agente público contida no art. 37, § 6º, da Constituição alcança todos aqueles “que – em qualquer nível de escalão – tomam decisões ou realizam atividades da alçada do Estado, prepostas que estão ao desempenho de um mister público (jurídico ou material), isto é, havido pelo Estado como pertinente a si próprio” (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 22. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 972).
Ora, o conceito de indígena não se amolda nem se confunde com o de agente público, nem mesmo para os fins do art. 37, § 6º, da Constituição. O simples fato de ser indígena não confere aos atos praticados pelo indivíduo um caráter estatal, de atividade administrativa, de modo que não pode o Estado responder objetivamente por ato de terceiros, que não atuam em seu nome e nem em prol da res publica. E, nos termos do art. 927, parágrafo único, do Código Civil (Lei n.º 10.406/2002), a responsabilidade por danos atribuídos a terceiros requer expressa previsão em lei, a qual inexiste para a FUNAI nas hipóteses de danos decorrentes de atos praticados por indígenas.
Observe-se, neste ponto, que também não se aplica à FUNAI a responsabilidade indireta do tutor por negligência (culpa in vigilando) na guarda do tutelado, estabelecida no art. 932, inciso II, do Código Civil (“São também responsáveis pela reparação civil: II - o tutor e o curador, pelos pupilos e curatelados, que se acharem nas mesmas condições”). Isso porque o art. 7º da Lei 6.001/73, que impõe aos índios não integrados à comunhão nacional a submissão ao regime tutelar, exercido pela Fundação Nacional do Índio, como visto, não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988.
Corroborando o entendimento esposado no presente trabalho, impende colacionar os seguintes arestos, in verbis:
ADMINISTRATIVO E CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL DE INDÍGENA. RESPONSABILIDADE DA FUNAI. DANO MORAL INEXISTENTE.
1. Sendo pessoas maiores e, como tais, dotadas de capacidade para os atos da vida civil, se alguns dos índios integrantes de comunidade indígena causam danos a alguém, devem ser responsabilizados pessoalmente através de ação judicial própria à respectiva reparação, seja no âmbito civil, seja na esfera criminal, se for o caso, uma vez que o tema da incorporação à comunhão nacional é assunto superado e contradiz a legislação posto em 1988 e não corresponde à realidade dos próprios grupos indígenas.
2.Não demonstrada a existência de ilicitude ou mesmo os três elementos caracterizadores da responsabilidade objetiva, inexiste a responsabilização objetiva do Estado, no caso da FUNAI, nem o consequente dever de indenizar o particular.
(TRF-4 - AC: 1262 RS 2004.71.04.001262-0, Relator: FERNANDO QUADROS DA SILVA, Data de Julgamento: 05/04/2011, TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: D.E. 11/04/2011)
AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS E MATERIAIS DECORRENTES DE OCUPAÇÃO PERPETRADA POR ÍNDIOS EM IMÓVEIS SITUADOS EM ÁREA SUPOSTAMENTE INDÍGENA. INEXISTÊNCIA DE RESPONSABILIDADE DA FUNAI SOBRE OS FATOS OCORRIDOS. CAPACIDADE CIVIL E POSTULATÓRIA DOS SILVÍCOLAS RECONHECIDAS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
Ação indenizatória ajuizada contra a FUNAI pela proprietária de área de terras no município de Itaiópolis-SC, por ela utilizada para implantação de projetos de reflorestamento de vegetação exótica, com vistas ao recebimento de indenização pelos danos decorrentes da invasão dos imóveis de sua propriedade por indígenas, nos anos de 1998 e 2001.
Não prospera a preliminar de impossibilidade jurídica do pedido, porque o ordenamento jurídico brasileiro possibilita o manejo de ação indenizatória para se obter a reparação de danos morais e materiais causados por terceiros ou pela Administração Pública Direta ou Indireta.
Com o advento da Constituição de 1988, migrou-se de um regime de tutela dos povos indígenas para um regime de proteção. Não mais compete ao Estado, através da FUNAI, responder pelos atos das populações autóctones e administrar-lhes os bens, tal como ocorria enquanto vigente o regime tutelar previsto no Código Civil de 1916 e no Estatuto do Índio (Lei 6001/73). A partir do reconhecimento da capacidade civil e postulatória dos silvícolas, em 1988, remanesce ao Estado o dever de proteção das comunidades indígenas e de seus bens (à semelhança do que ocorre com os idosos que, a despeito de serem dotados de capacidade civil, gozam de proteção especial do Poder Público). Desde o reconhecimento constitucional da diversidade cultural (arts. 215, § 10 e 216) e da capacidade civil e postulatória dos índios e de suas comunidades (art. 232 c/c art. 7° do CPC) – o que lhes confere o direito ao acesso a todas garantias constitucionais de forma autônoma -, não mais subsiste o regime tutelar a que os silvícolas estavam submetidos perante à FUNAI por força do disposto no artigo 6°, III e Parágrafo Único do Código Civil de 1916 e no artigo 7° do Estatuto do Índio, tampouco a classificação dos indígenas em "isolados", "em vias de integração" e "integrados", prevista no artigo 4° do Estatuto do Índio, porque tais dispositivos não foram recepcionados pela atual Constituição. Sendo os silvícolas pessoas dotadas de capacidade para todos os atos da vida civil, segundo a ordem constitucional vigente, não há que se falar em culpa administrativa da FUNAI e da União sobre os fatos que ensejaram a presente ação reparatória.
Provimento do apelo da FUNAI, para o fim de reconhecer a ausência de responsabilidade do referido ente sobre os fatos que ensejaram a reparação material pretendida. (TRF 4ª Região, APELAÇÃO CÍVEL Nº 2001.72.01.004308-0/SC, Rel. Dês. Federal EDGARD ANTÔNIO LIPPMANN JÚNIOR, Publicado em 25/11/2008)
Portanto, tendo em vista a análise da legislação e do texto constitucional acima elaborada, bem como as lições doutrinárias e os precedentes invocados, é de se concluir pela impossibilidade de imputação à FUNAI da responsabilidade civil e da consequente reparação pecuniária de quaisquer danos eventualmente causados a terceiros por atos praticados pelos índios.
CONCLUSÃO
De toda a explanação feita, é possível perceber que o constituinte de 1988 conferiu, decerto, nova roupagem à disciplina jurídica dos direitos dos povos indígenas, e, para tanto, conferiu-lhes não apenas a capacidade processual textualmente prevista em seu art. 232, mas, sobretudo, a capacidade civil plena.
Justamente por isso, o instituto da tutela, nos moldes previstos no Estatuto do Índio, não deve subsistir, já que desprovido de fundamento de validade diante da norma constitucional, não sendo juridicamente cabível que os indígenas, enquanto indivíduos civilmente capazes, dependam do Estado, por meio da FUNAI, para exercer validamente seus direitos e administrar sua vida e seu patrimônio.
A FUNAI, na forma da própria legislação brasileira, é órgão de proteção e promoção dos direitos dos povos indígenas, inexistindo fundamentos jurídicos consentâneos à nova ordem constitucional que autorizem a responsabilização civil objetiva ou subjetiva da Fundação por atos praticados pelos índios, vez que, além de os indígenas figurarem como terceiros que não exercem atividade administrativa, a FUNAI não mais ostenta a condição de tutora do índio, não lhe podendo ser atribuída, pois, a culpa in vigilando na guarda da pessoa do indígena.
Dessa forma, resta claro que a atribuição à FUNAI de responsabilidade civil pela reparação de danos causados por indígenas a quem quer que seja não encontra respaldo na legislação pátria, além de afrontar o sentido e o alcance dos dispositivos da Carta Magna atinentes à matéria.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARRETO, Helder Girão. Direitos Indígenas – Vetores Constitucionais. Curitiba: Juruá, 2005.
DIDIER JR., Fredie. Direito processual Civil: Teoria geral do processo e processo de conhecimento. 6 ed. Salvador: JusPODIVM, 2006.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2007.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 22. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2007.
VILLARES, Luiz Fernando. Direito e povos indígenas. Curitiba: Juruá, 2009.
[1] Contudo, isso não retira da FUNAI as atribuições de defesa dos direitos individuais e coletivos dos índios, que ocorre de forma cumulativa. A assistência jurídica da FUNAI é um plus na defesa dos direitos indígenas.
[2] Existem índios reconhecidos que possuem tais condições, pois para a antropologia não há a clássica distinção entre índio isolado e integrado.
Procuradora Federal. Graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Direito do Estado pela Faculdade Baiana de Direito.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Caroline Marinho Boaventura. Da ausência de responsabilidade civil da FUNAI pelos atos praticados por indígenas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 nov 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41534/da-ausencia-de-responsabilidade-civil-da-funai-pelos-atos-praticados-por-indigenas. Acesso em: 22 nov 2024.
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