Introdução
O artigo tem como objetivo discorrer sobre os fundamentos jurídicos da política nacional de recursos hídricos, no sentido de proteção ao meio ambiente e especialmente à água.
Verifica-se que o tema é atual e de extrema relevância, eis que o Brasil está enfrentando uma crise de falta de água e seu uso deve ser regulamentado, para que não haja escassez desse recurso natural essencial, além de expor os princípios de planejamento e uso múltiplo das águas, apresentando noções introdutórias sobre a Política Nacional de Recursos Hídricos e os órgãos responsáveis pela implantação, desenvolvimento e fiscalização dessa política.
1. A definição de água
Para melhor compreensão do tema estudado, a explicitação de alguns conceitos torna-se necessária, tendo em vista sua importância no mundo atual e na questão abordada. É oportuno lembrar que os conceitos aqui apresentados apenas visam a dar uma direção ao leitor, não possuindo o escopo de discutir ou esgotar a matéria.
É notório que a água está a nossa volta, em praticamente todos os locais, porém isto não torna mais fácil a definição deste recurso tão valioso. Sob vários enfoques pode ser explicado o conceito de água, tanto no sentido técnico, científico, como jurídico, sendo que este último é o relevante para explicitar este estudo.
É mister, primeiramente, distinguir água de recurso hídrico. Para alguns doutrinadores, os termos se diferenciariam pelo fato de haver a proteção jurídica apenas para o recurso hídrico, enquanto a água seria utilizada como recurso sem fim econômico, apenas para a subsistência. Neste sentido manifesta-se Cid Pompeu: “(...) água é o elemento natural, descomprometido com qualquer uso ou utilização. É o Gênero. Recurso hídrico é a água como bem econômico, passível de utilização para tal fim.”[1]
Há um outro posicionamento defendido pela doutrinadora Maria Luiza Granziera[2] discordando do posicionamento supracitado. A autora embasa sua teoria ao enumerar vários dispositivos do Código de Águas (Decreto nº 24.643, de 10/07/1934) em que o vocábulo “água” é referido como termo econômico, não tendo o legislador feito uma clara distinção entre a expressão recurso hídrico e água.
A Lei nº 9433/97 também não estabeleceu considerável diferenciação entre ambos os termos, utilizando-se indiscriminadamente tanto um como o outro. Deste modo, conclui-se, pela grande similaridade no emprego de qualquer uma das expressões, que se refiram ao objeto de interesse de valor econômico e proteção jurídica pelo Direito Ambiental.
Dentro dessa primeira classificação, enumeram-se outras várias apontadas pela doutrina e que não possuem tamanha relevância.
2. A água como bem de uso comum do povo
A lei 9.433/97 tem em seu 1º artigo a declaração que a água é um bem de domínio publico, implicando diversos fatores a serem explicitados. A água é um elemento do meio ambiente, aplicando-se a ela o disposto no caput do artigo 225 da Constituição Federal: “Todos têm direito a um meio ambiente equilibrado, bem de uso comum do povo (...)”. Na classificação tradicional de bens, a água está encaixada como um bem corpóreo, ao contrário do meio ambiente que é considerado um bem incorpóreo.
A expressão “domínio público”, ressalta José Pimenta Bueno[3], significa que esses bens são nacionais e servem ao uso e gozo comum do povo. O Código civil de 2002 trata, em seu artigo 66, inciso II dos bens de uso comum do povo, tais como mares, rios, estradas e praças. O Código de Águas (Decreto nº 24.643 de 1934) também destaca a dominialidade pública das águas.
É importante frisar, conforme lição do professor Paulo Affonso Lemes Machado (2002), que o domínio público das águas não transforma o Poder Público em dono da água, mas apenas lhe concede poderes de gestão desse bem, visando sempre ao interesse de todos. Desse modo, inibe-se a apropriação da água por pessoa física ou jurídica, qualquer que seja, em detrimento de toda a coletividade. O Poder Público deve cuidar para que o uso da água não esgote o próprio bem utilizado, inibindo o uso indiscriminado e a poluição, possuindo, para isso, ferramentas como a concessão, a autorização e a outorga, que devem ser utilizadas e fundamentadas pelo gestor público.
Destaca-se a presença do Poder Público para promover um resultado satisfatório e eficiente na preservação e recuperação das águas. A própria lei 9.433/97 estabelece em seu artigo 11:
O regime de outorga de direito de uso de recursos hídricos tem como objetivos assegurar o controle quantitativo e qualitativo dos usos de água e o efetivo exercício dos direitos de acesso à água.
Traduz-se o dispositivo legal no sentido de que o Poder Público não pode favorecer uma minoria concedendo e autorizando o uso da água em detrimento do acesso quantitativo e qualitativo da maioria. Concluindo, ressalta-se a observância do legislador brasileiro que considerou todas as águas como de “domínio público”, nacionalizando-a como patrimônio coletivo.
De todo o exposto, verifica-se que, apesar do artigo 1º do decreto 24.643/34 afirmar que as águas podem ser de uso comum ou dominicais, através do advento da Carta Magna de 1988 e da lei 9.433/97, houve uma mudança, revogando-se a parte final do artigo do decreto. Assim, declara que as águas são apenas bens de uso comum do povo, não as integrando ao patrimônio privado do Poder Público.
Enfatiza José Ribeiro sobre a não existência de recursos hídricos particulares após o advento da Constituição Federal de 1988
Não se vê, por isso, necessidade de abrir matrículas dos “corpos de águas” a que se refere a Lei nº 9.433 e nelas fazer o registro de transferência do domínio, uma vez que tal transferência se concretizou não por convenção ou por título, mas pela própria Constituição, que se sobrepõe a todas as leis infraconstitucionais, incluída, portanto, a própria Lei de Registros Públicos.[4]
3. A água como bem de valor econômico
Com o passar dos anos, houve uma grande transformação no que diz respeito à relação ser humano e água. Houve um tempo em que no Brasil e no mundo, tinha-se a água como um bem inesgotável e renovável, sendo utilizada de forma indiscriminada pelas pessoas e, em um momento posterior, pelas indústrias. Porém, a consciência social está se alterando e já há, hoje em dia, um forte posicionamento no sentido de que a água deve ser mensurada dentro de valores econômicos. Isso não significa que quem puder pagar poderá usar a água de toda maneira, mas sim, que deve haver um maior controle por parte do Poder Público para a conservação, recuperação e melhor distribuição deste recurso. Nesse sentido, a concepção legal brasileira está voltada para a proteção dos recursos hídricos tanto para a saúde humana, quanto para manutenção do valor que esses recursos ostentam para o desenvolvimento econômico e social.
Portanto, o reconhecimento do valor econômico tem sido assumido desde a vigência do Código de Águas e ganhou nível constitucional desde a Carta de 1934. Este artigo é de extrema relevância, pois o valor econômico que a água assume faz com que o Poder Público crie mecanismos legais de controle e cobrança do uso dos recursos hídricos. Nesta questão, tão atual e pertinente, insere-se o tema da política nacional de recursos hídricos, dentro da qual a outorga é um dos principais dos instrumentos legais que possui o governo para reconhecer a água como um bem econômico e dar ao usuário uma indicação real do seu valor além de definir usos e prioridades de uso deste bem tão valioso tanto para o ser humano, considerado singularmente, como em suas relações econômico-financeiras.
4. A água e o desenvolvimento sustentável
A evolução da legislação sobre a água no Brasil leva à idéia de que esse recurso ambiental tão importante deve ser preservado, tanto para o presente como para gerações futuras. Assim, a água é inserida no contexto do desenvolvimento sustentável para que seja protegida pelos instrumentos jurídicos disponíveis para tanto.
Desde o ano de 1969, com o Tratado da Bacia do Prata, já se tinha a idéia da preservação dos recursos aqüíferos para as gerações futuras, utilizando-os de forma racional. A Constituição brasileira de 1988 possui disposição similar em seu artigo 225, no qual há a obrigação de se instaurar o desenvolvimento sustentável. A própria Lei 9.433/97 discorre sobre os princípios do desenvolvimento sustentável e sua aplicabilidade à água, ressaltando três principais aspectos: a disponibilidade de água, a utilização racional e a utilização integrada deste precioso bem ambiental.
A principal finalidade da aplicação do desenvolvimento sustentável à questão da água é a preservação para os que hoje dela se utilizam e para aqueles que, no futuro, virão a se utilizar. Isso só é possível por meio de uma utilização racional e integrada e da distribuição eqüitativa da água, ou seja, da facilitação do acesso de todos a este bem. Para tanto, destaca Paulo Affonso Lemes Machado que “Os institutos jurídicos hão de ser aplicados no sentido de evitar o monopólio das águas, seja por órgãos públicos, seja por particulares”.[5]
Nessa investigação pode-se, portanto, destacar a importância do tema da Política Nacional de Recursos Hídricos, pois a efetivação dessa política e das normas jurídicas que a viabilizam está intimamente ligada à racionalização do uso da água e também à ética da sustentabilidade. Destarte, o Poder Judiciário deverá ser invocado a realizar a prestação jurisdicional sempre que a outorga ou qualquer outro plano de ação inviabilizarem a disponibilidade hídrica para a atual ou futuras gerações.
5. Objetivos da Política Nacional de Recursos Hídricos
A Constituição Federal de 1988 constitui um marco muito importante no que diz respeito à proteção do meio ambiente no Brasil, alterando toda uma concepção sobre o uso dos recursos naturais e sua proteção legal. Dentre as várias inovações, há a proteção jurídica dos recursos hídricos, consubstanciada no fomento da Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH). Este novo instrumento se une à Política Nacional do Meio Ambiente, complementando-a e especificando-a. Estabeleceu-se, portanto, a Política Nacional de Recursos Hídricos através da Lei nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997.
Esse diploma legal estabelece os princípios basilares da PNRH enumerando-os em seu art. 1º, quais sejam:
a) a água é um bem de domínio público;
b) a água possui valor econômico, reconhecendo-se que é um bem limitado;
c) o uso prioritário é para consumo humano e animais;
d) os recursos hídricos devem ser geridos de forma descentralizada;
e) utiliza-se a bacia hidrográfica como unidade para a implementação da PNRH e atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos Hídricos;
f) o uso múltiplo das águas deve ser abrangido pela gestão dos recursos.
Destes princípios, infere-se que a legislação em vigor visa a afastar a antiga concepção de uso da água, apontando para um novo caminho de desenvolvimento sustentável. O uso privado e gratuito dos recursos hídricos está fadado a encerrar-se, já que a sociedade não mais suportará sozinha o ônus pelo uso da água na indústria e agricultura. Assim, a utilização deve ser recompensada monetariamente, ocorrendo, também, a recuperação e manutenção das boas condições dos recursos hídricos.
Os objetivos da PNRH são claros e direcionam-se no sentido de assegurar à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade e qualidade da água, equacionando-se uma utilização racional em conjunto com a prevenção e manutenção da boa qualidade do recurso de modo a promover-se o desenvolvimento sustentável.
Conclusão
Para tornar-se eficaz a implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos, dispõe o Poder Público de alguns instrumentos que o auxiliam nesta tarefa. Dentre os instrumentos, destacam-se os planos de recursos hídricos, a cobrança pelo uso dos recursos hídricos, a criação de sistemas de informação sobre a água no Brasil e a outorga de direitos de uso de recursos hídricos.
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BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.
BRASIL. Lei nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997. Institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, regulamenta o inciso XIX do art. 21 da constituição Federal, e altera o art. 1º da Lei nº 8.001, de 13 de março de 1900, que modificou a Lei nº 7.990, de 28 de dezembro de 1989. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 9 jan. 1997.
DROBENKO, Bernard. A água e a gestão descentralizada. Boletim Científico da Escola Superior do Ministério Público da União, Brasília, v. 3, n. 2, p. 161-172, abr./jun., 2004.
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SAITO. Carlos Hiroo. A política nacional de recursos hídricos e o sistema de gerenciamento de recursos hídricos. Brasília, DF, 2001
[1] Cid PompeutomanickapudGRANZIERA ,Direito das águas: disciplina jurídica das águas doces, 2003, p. 27.
[2] Cf. Maria Luiza Machado GRANZIERA, Direito das águas: disciplina jurídica das águas doces, 2003, p. 27.
[3] José Pimenta BuenoapudMACHADO, Recursos Hídricos: direito brasileiro e internacional, 2002, p. 24.
[4] José Ribeiroapud GRANZIERA, Direito das águas: disciplina jurídica das águas doces, 2003, p. 75.
[5] Paulo Affonso Leme MACHADO, Recursos Hídricos: direito brasileiro e internacional, 2002, p. 39.
Procurador Federal com exercício na Procuradoria Regional da 1ª Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BORGES, Edilson Barbugiani. Fundamentos Jurídicos da Política Nacional de Recursos Hídricos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 nov 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41584/fundamentos-juridicos-da-politica-nacional-de-recursos-hidricos. Acesso em: 23 dez 2024.
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