Tanto o direito de propriedade quanto a função social da propriedade compõem o rol dos direitos e garantias fundamentais (artigo 5º, incisos XXII e XXIII, da CF/88). Isso implica que ambos têm aplicação imediata, por força do disposto no parágrafo primeiro do citado artigo, que dispõe:
“As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.”
Todavia, o direito de propriedade traçado pela Carta Magna vigente não é absoluto. Está limitado pelo atendimento da função social da propriedade, conforme artigo 5º, XXIII.[1], bem como a ordem econômica está fundada nos princípios da propriedade do artigo 170, II e III, da CF/88.
A propriedade tem de atender sua função social. Mas o que significa exatamente função social da propriedade? A propriedade era concebida como o direito meramente individual do proprietário de usar, gozar e dispor de seu bem, conforme concepção emanada dos códigos do século XIX, dentre eles o nosso Código Civil de 1916[2]. O único limite era a não violação à lei. A Constituição de 1988 rompeu com o conceito clássico de propriedade, prevendo que ela deve, acima de tudo, cumprir sua função social.
Segundo Gustavo Tepedino,
A propriedade, portanto, não seria mais aquela atribuição de poder tendencialmente plena, cujos confins são definidos externamente, ou, de qualquer modo que, até uma certa demarcação, o proprietário teria espaço livre para suas atividades e para emanação de sua senhoria sobre o bem. A determinação do conteúdo da propriedade, ao contrário, dependerá de centros de interesses extraproprietários, os quais vão ser regulados no âmbito da relação jurídica de propriedade.
(...)
A despeito, portanto, da disputa em torno do significado da noção de função social, poder-se-ia assinalar, como patamar de relativo consenso, a capacidade do elemento funcional em alterar a estrutura de domínio, inserindo-se em seu “profilo interno” e atuando como critérios de valoração do exercício do direito, o qual deverá ser direcionado para um “massimo sociale.” [3]
O Código Civil de 2002[4], ao garantir ao proprietário a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, prescreveu que
O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sócias e de modo que sejam preservadas, de conformidade como o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. ( artigo 1228, parágrafo primeiro).
O direito civil atual consagra a função social da propriedade e determina ao proprietário que exerça seu direito em consonância com os princípios constitucionais. A propriedade, então, “transforma-se em instrumento para a realização do projeto constitucional” [5]. Pode-se dizer que a função social da propriedade é aquela estabelecida no programa constitucional.
A política de desenvolvimento urbano, ou seja, o programa constitucional traçado para a propriedade urbana, tem como objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes, conforme artigo 182 da CF/88 (as diretrizes gerais da execução da política urbana foram reguladas pela Lei 10.257, de 10 de julho de 2001, que instituiu o Estatuto da Cidade).[6]
Dessa maneira, o Estatuto da Cidade
“estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana pública em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental” (parágrafo único, do artigo 1, da Lei 10.257/01).
Assim, o objetivo da política urbana deve ser buscado com a observância das diretrizes gerais estabelecidas nos incisos I a XVI , artigo 2º, do Estatuto da Cidade.
Para Odete Medauar,
“O caput do art. 2 fixa como objetivo da política urbana o pleno desenvolvimento das funções sócias da cidade e da propriedade urbana. Nas funções sociais da cidade se entrevê a cidade como lócus não somente geográfico e de mera reunião de pessoas, mas como o espaço destinado a habitantes, ao trabalho, à circulação, ao lazer, à integração entre os seres humanos, ao crescimento educacional e cultural. Ao mencionar as funções sociais da propriedade urbana, com base certamente no art. 5 XXIII, da Constituição Federal, o dispositivo ressalta o direcionamento da propriedade urbana e a finalidade de interesse geral, com as quais há de se conformar ou conciliar o direito individual de propriedade, não mais dotado de caráter absoluto.” [7]
A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressa no plano diretor urbano, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no artigo 2º do Estatuto da Cidade (art. 182, parágrafo 3º, da Constituição de 1988, e respectiva regulamentação estabelecida no Estatuto da Cidade, em seu artigo 39).
Conclui-se que será cumprida a função social da propriedade urbana quando ocorrer sua funcionalização por meio do desenvolvimento de suas funções sociais (moradia, trabalho, circulação, lazer, integração entre os seres humanos, crescimento educacional e cultural, preservação do meio ambiente, etc.), observadas as diretrizes gerais do Estatuto da Cidade e as prioridades estabelecidas no Plano Diretor Urbano, aprovado pela Câmara Municipal. Este, que é obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana, de acordo com o art. 182, parágrafo 1º, da CF/1988, e artigo 40 do Estatuto da Cidade.
O direito de propriedade urbana poderá, portanto, sofrer limitações em prol do pleno desenvolvimento das funções sociais e do adequado aproveitamento do solo urbano. Segundo Paulo Afonso Leme Machado, a Ordem urbanística é o conjunto de normas de ordem pública e de interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança, do equilíbrio ambiental e do bem-estar dos cidadãos. A ordem urbanística deve significar a institucionalização do justo na cidade. Não é uma “ordem urbanística” como resultado da opressão ou da ação corruptora de latifundiários ou especuladores imobiliários, porque aí seria a desordem urbanística gerada pela injustiça.[8]
Referências
BRASIL. Código Civil de 1916: Lei n 3071, de 1 de janeiro de 1916.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.
BRASIL. Estatuto da Cidade (2001). Estatuto da cidade: Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001, que estabelece diretrizes gerais da política urbana.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2003.
GASPARINI, Diógenes. O estatuto da cidade. Rio de Janeiro:NDJ, 2002.
LEME, Paulo Affonso. Direito Ambiental brasileiro. 11. ed. São Paulo:Malheiros.2003.
MATTOS, Liana Portilho. Efetividade da Função Social da Propriedade Urbana à Luz do Estatuto da Cidade, 1ª ed. Rio de Janeiro, Ed. Temas e ideias, 2003.
MEDAUAR, Odete; Almeida, Fernando Dias Menezes de. Estatuto da Cidade, Lei 10.287/2001: comentários. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1996
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 13ª ed. São Paulo: Malheiros, 2001.
MORAES, Alexandre. Direito constitucional. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2002.
MORAES, José Diniz de, A Função social da propriedade e a Constituição Federal de 1988. 1ª ed. São Paul: Malheiros, 1999 .
SILVA, José Afonso da. O município na constituição de 1998. São Paulo: RT,1989.
SOUZA, Marcelo Lopes de. Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbanos. 3.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
1 O direito de propriedade está, portanto, plenamente garantido pela nossa Constituição, abrangendo os direitos de usar, gozar e dispor mas, como veremos no item seguinte, sempre condicionado aos limites da função social. É considerado um direito fundamental, primordial e, nos dizeres de José Afonso da Silva, inalienável, imprescritível e irrenunciável. Não se permite sequer à sociedade que esta abdique de tal garantia constitucional. (...) Muito mais que um regramento constitucional, mais do que ocorrerá em um Estado de Direito, na atual ordem suprema é a propriedade um comando derivado da vontade popular e dirigido aos representantes dos poderes estatais que devem zelar por sua preservação, com a função social que lhe é inerente. (...) O direito de propriedade pode, porém, sofrer limitações como a desapropriação, a requisição ou o confisco, esta última limitação somente cabível em nosso direito quando do uso da propriedade para fins ilícitos ( PEIXOTO, Marcelo Magalhães; CARDOSO, Lais Vieira. O princípio do não confisco e os limites do direito de propriedade. In:FISCHER, Octávio Campos ( Org.). Tributos e direitos fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004, p. 228-231).
[2] BRASIL. Código Civil de 1916: Lei n 3071, de 1 de janeiro de 1916
[3] TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 2. Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.p.280-282.
[4] BRASIL. Código Civil de 2002. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
[5] TEPEDINO, ibidem, p. 286.
[6] “Planejamento e gestão não são termos intercambiáveis, por possuírem referenciais temporais distintos e, por tabela, por se referirem a diferentes tipos de atividades. Até mesmo intuitivamente, planejar sempre remete ao futuro: planejar significa tentar prever a evolução de um fenômeno ou, para dizê-lo de modo menos comprometido com o pensamento convencional, tentar simular os desdobramentos de um processo, o objetivo de melhor precaver-se contra prováveis problemas ou, inversamente, com o fito de melhor tirar partido de prováveis benefícios. De sua parte, gestão remete ao presente:gerir significa administrar uma situação dentro dos marcos dos recursos presentemente disponíveis e tendo em vista necessidades imediatas. O planejamento é a preparação para a gestão futura, buscando-se evitar ou minimizar problemas e ampliar margens de manobra; e a gestão é a efetivação, ao menos em parte( pois o imprevisível e o indeterminado estão sempre presentes, o que torna a capacidade de improvisação e a flexibilidade sempre imprescindíveis), das condições que o planejamento feito no passado ajudou a construir. Longe de serem concorrentes ou intercambiáveis, planejamento e gestão são distintos e complementares.”( SOUZA, Marcelo Lopes de. Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbanos. 3.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.p.46).
[7] MEDAUAR, Odete; Almeida, Fernando Dias Menezes de. Estatuto da Cidade, Lei 10.287/2001: comentários. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.17.
[8] MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental brasileiro. 11.ed. São Paulo:Malheiros.2003.p,368-369.
PROCURADOR FEDERAL lotado na Procuradoria Federal em Minas Gerais, Especialista em Direito Público pela PUC/MG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: XAVIER, Bruno Di Fini. A função social da propriedade urbana Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 nov 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41629/a-funcao-social-da-propriedade-urbana. Acesso em: 23 dez 2024.
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