RESUMO: O presente artigo tem por objetivo tecer uma breveanálise acerca da jurisprudência do STJ sobre a caracterização do consumidor, à luz das teorias finalista e maximalista, focando nos mais recentes julgados da corte, em que a questão da vulnerabilidade parece ter deixado de ser decisiva este fim.
Palavras-chave:Consumidor; destinatário final; teoria finalista; teoria maximalista; vulnerabilidade;
De acordo com o Art. 2º do Código de Defesa do Consumir, Lei 8.078/90, “consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”. Sem embargo de não haver distinção nesse sentido no conceito legal,durante muito tempo o Superior Tribunal de Justiça resistiu em reconhecer a configuração de uma relação de consumo entre pessoas jurídicas.
Sobre o tema, sempre vigeu no Direito do Consumidor duas teorias que se propõem a definir destinatário final, nos termos do dispositivo citado.
Para teoria subjetiva, ou finalista, destinatário final é aquele que dá uma destinação fática e econômica ao produto, ou seja, consumidor seria apenas aquele que retira definitivamente o produto da circulação no mercado, não mais o utilizando, quer na sua produção, quer para revenda. É nesse sentido a lição de Cláudia Marques e Herman Benjamim:
“Destinatário final seria aquele destinatário fático e econômico do bem ou serviço, seja ele pessoa jurídica ou física. Logo, segundo esta interpretação teleológica, não basta ser destinatário fático do produto, retirá-lo da cadeia de produção, levá-lo para o escritório ou residência – é necessário ser destinatário final econômico do bem, não adquiri-lo para revenda, não adquiri-lo para uso profissional, pois o bem seria novamente um instrumento de produção cujo preço será incluído no preço final do profissional que o adquiriu. Neste caso, não haveria a exigida ‘destinação final’ do produto ou do serviço, ou, como afirma o STJ, haveria consumo intermediário, ainda dentro das cadeias de produção e de distribuição[1].”
Já para teoria objetiva, ou maximalista, não importa se a pessoa adquire ou utiliza o produto ou serviço para o uso privado ou para o uso profissional, com a finalidade de obter lucro: o que importa é apenas a retirada do produto do mercado. Vale conferir a lição dos citados professores, referindo-se à corrente maximalista:
“A definição do art. 2.° deve ser interpretada o mais extensamente possível, segundo esta corrente, para que as normas do CDC possam ser aplicadas a um número cada vez maior de relações no mercado. Consideram que a definição do art. 2.° é puramente objetiva, não importando se a pessoa física ou jurídica tem ou não fim de lucro quando adquire um produto ou utiliza um serviço. Destinatário final seria o destinatário fático do produto, aquele que o retira do mercado e o utiliza, consome, por exemplo, a fábrica de toalhas que compra algodão para reutilizar e a destrói. Segundo esta teoria maximalista, a pergunta da vulnerabilidade in concreto não seria importante. Defende que, diante de métodos contratuais massificados, como o uso de contratos de adesão, todo e qualquer co-contratante seria considerado vulnerável.[2]”
Ao que se observa, a teoria subjetiva parte de um conceito econômico de consumidor enquanto que a teoria objetiva pressupõe um conceito jurídico de consumidor, resultante de uma exegese mais aderente ao comando legal positivado no art. 2º do CDC, o qual considera consumidor o destinatário final de produto ou serviço. Ambas divergem, portanto, no que se refere ao aspecto econômico da aquisição como sendo decisivo (ou não) para enquadramento da relação jurídica como consumerista.
Para equilibrar as duas visões, exsurge a “teoria mista”, ou “finalismo mitigado”, permitindo o enquadramento do agente econômico no conceito de consumidor quando aquele, muito embora reutilize o produto em sua atividade comercial ou profissional, seja comprovadamente vulnerável:
“Em casos difíceis envolvendo pequenas empresas que utilizam insumos para a sua produção, mas não em sua área de expertise ou com uma utilização mista, principalmente na área dos serviços, provada a vulnerabilidade, concluiu-se pela destinação final de consumo prevalente. (...) O conceito-chave é o da vulnerabilidade.[3]”
Como se observa, para teoria mista, o cerne da questão consiste na averiguação da vulnerabilidade, marca distintiva do consumidor conforme reconhecido no Art. 4°, I do CDC[4]. Dita vulnerabilidade pode ser técnica, quando não se tem conhecimento preciso acerca do produto; jurídica, quando não se domina o conhecimento jurídico que envolve a contratação e econômica, quando não se pode negociar em pé de igualdade com o fornecedor.
Pois bem; a colenda corte superior de justiça inclinou-se inicialmente pelo sufrágio da teoria finalista pura e simples, como se observa do seguinte ementário publicado há cerca de uma década:
“COMPETÊNCIA. RELAÇÃO DE CONSUMO. UTILIZAÇÃO DE EQUIPAMENTO E DESERVIÇOS DE CRÉDITO PRESTADO POR EMPRESA ADMINISTRADORA DE CARTÃO DECRÉDITO. DESTINAÇÃO FINAL INEXISTENTE.
– A aquisição de bens ou a utilização de serviços, por pessoa natural o jurídica, com o escopo de implementar ou incrementar asua atividade negocial, não se reputa como relação de consumo e,sim, como uma atividade de consumo intermediária.Recurso especial conhecido e provido para reconhecer a incompetênciaabsoluta da Vara Especializada de Defesa do Consumidor, paradecretar a nulidade dos atos praticados e, por conseguinte, paradeterminar a remessa do feito a uma das Varas Cíveis da Comarca”[5].
Ao passar do tempo, verifica-se que a corte foi abrandando o seu entendimento, no sentido da teoria finalista mitigada, sendo este o posicionamento que prevalece até os dias atuais, como se observa do seguinte ementário lavrado já neste ano de 2014:
“ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. ENERGIA ELÉTRICA. AÇÃOREVISIONAL. RELAÇÃO DE CONSUMO. ACÓRDÃO FUNDAMENTADO EM RESOLUÇÃODAANEEL. ANÁLISE DE NORMAS CONTIDAS EM RESOLUÇÃO. INVIABILIDADE.
1. Preliminarmente, é de se destacar que os órgãos julgadores nãoestão obrigados a examinar, mesmo com fins de prequestionamento,todas as teses levantadas pelo jurisdicionado durante um processojudicial, bastando que as decisões proferidas estejam devida ecoerentemente fundamentadas, em obediência ao que determina o art.93, IX, da Lei Maior. Isso não caracteriza ofensa ao art. 535 doCPC.
2. Quanto à aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor, estaCorte já se pronunciou no sentido de que, para se enquadrar noconceito de consumidor, se aplica a Teoria Finalista, de forma mitigada, quando a parte contratante de serviço público é pessoajurídica de direito público e se demonstra a sua vulnerabilidade nocaso concreto. No caso dos autos, pretende-se revisar contratofirmado entre Município e concessionária de energia elétrica, sob ofundamento de haver excesso de cobrança de serviço fornecido atítulo de iluminação pública à cidade. Aqui, o Município não é,propriamente, o destinatário final do serviço. Entretanto, oAcórdãorecorrido não se manifestou a respeito de qualquer vulnerabilidadedo ente público, razão pela qual a análise referente a tal questãodemandaria o revolvimento do suporte fático-probatório dos autos, oque é vedado nesta seara recursal, ante o óbice da Súmula 7/STJ.
3. Descabida a pretensão de análise a dispositivos da Resolução daANEEL, na medida em que o recurso especial não se presta parauniformizar a interpretação de normas não contidas em leisfederais.
4. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, nãoprovido” (STJ - REsp 1297857 / SP. Relator: Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES., T2 - SEGUNDA TURMA, DJe 26/03/2014).
Como se observa, a questão da vulnerabilidade foi decisiva no julgado, a ponto de se negar conhecimento ao recurso especial sob a premissa de que a corte não poderia adentrar na questão fática pertinente à vulnerabilidade.
No entanto, nos mais recentes julgados da corte, registrados no Informativo n° 548, de 22 de outubro de 2014[6], chama atenção o fato de que, muito embora se tenha mencionado expressamente a adoção da teoria mitigada, a corte não mais se vale da questão da vulnerabilidade da pessoa jurídica para justificar sua condição de consumidora:
DIREITO DO CONSUMIDOR. CONFIGURAÇÃO DE RELAÇÃO DE CONSUMO ENTRE PESSOAS JURÍDICAS.Há relação de consumo entre a sociedade empresária vendedora de aviões e a sociedade empresária administradora de imóveis que tenha adquirido avião com o objetivo de facilitar o deslocamento de sócios e funcionários. O STJ, adotando o conceito de consumidor da teoria finalista mitigada, considera que a pessoa jurídica pode ser consumidora quando adquirir o produto ou serviço como destinatária final, utilizando-o para atender a uma necessidade sua, não de seus clientes. No caso, a aeronave foi adquirida para atender a uma necessidade da própria pessoa jurídica – o deslocamento de sócios e funcionários –, não para ser incorporada ao serviço de administração de imóveis. Precedentes citados: REsp 1.195.642-PR, Terceira Turma, DJe 21/11/2012; e REsp 733.560-RJ, Terceira Turma, DJe 2/5/2006. AgRg no REsp 1.321.083-PR, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 9/9/2014.n (destaque do expositor).
Ademais, no caso específico o contrato considerado de consumo diz respeito à compra e venda de uma aeronave para uso da empresa adquirente – o que já constitui forte indício, para dizer o mínimo, de inexistência de vulnerabilidade, dado os dispendiosos custos de uma aquisição deste porte.
De modo semelhante, no mesmo informativo[7], capta-se o seguinte ementário referente a outro julgado sobre o tema:
DIREITO DO CONSUMIDOR. APLICAÇÃO DO CDC A CONTRATO DE SEGURO EMPRESARIAL.
Há relação de consumo entre a seguradora e a concessionária de veículos que firmam seguro empresarial visando à proteção do patrimônio desta (destinação pessoal) – ainda que com o intuito de resguardar veículos utilizados em sua atividade comercial –, desde que o seguro não integre os produtos ou serviços oferecidos por esta. Cumpre destacar que consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza, como destinatário final, produto ou serviço oriundo de um fornecedor. Por sua vez, destinatário final, segundo a teoria subjetiva ou finalista, adotada pelo STJ, é aquele que ultima a atividade econômica, ou seja, que retira de circulação do mercado o bem ou o serviço para consumi-lo, suprindo uma necessidade ou satisfação própria, não havendo, portanto, a reutilização ou o reingresso dele no processo produtivo, seja na revenda, no uso profissional, na transformação do bem por meio de beneficiamento ou montagem, ou em outra forma indireta. Nessa medida, se a sociedade empresária firmar contrato de seguro visando proteger seu patrimônio (destinação pessoal), mesmo que seja para resguardar insumos utilizados em sua atividade comercial, mas sem integrar o seguro nos produtos ou serviços que oferece, haverá caracterização de relação de consumo, pois será aquela destinatária final dos serviços securitários. Situação diversa seria se o seguro empresarial fosse contratado para cobrir riscos dos clientes, ocasião em que faria parte dos serviços prestados pela pessoa jurídica, o que configuraria consumo intermediário, não protegido pelo CDC. Precedentes citados: REsp 733.560-RJ, Terceira Turma, DJ 2/5/2006; e REsp 814.060-RJ, Quarta Turma, DJe 13/4/2010. REsp 1.352.419-SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 19/8/2014.
Em comum com o julgado supra, também aqui se prescindiu da chamada vulnerabilidade na compreensão do destinatário final, bastando, para caracteriza-lo, que não haja o reingresso do produto em circulação econômica.Por outro lado, divergiu ao adotar de modo expresso a teoria finalista, e não a finalista mitigada.
Ao que parece, portanto, ainda que a sutilmente, a jurisprudência da corte pode estar alterando mais uma vez sua compreensão sobre o tema. Com efeito, independente do termo adotado, a vulnerabilidade parecer ter deixado de ser fator decisivo na compreensão de conceito de pessoa jurídica consumidora.
Se, por um lado, é fato que a literalidade do art. 2° do CDC não faz qualquer distinção nesse sentido, por outro não parece adequado estender em demasiado o universo de consumidores, sobretudo considerando as implicações materiais e processuais peculiares ao contrato de consumo, que partem da premissa histórica da desigualdade entre os contratantes nessa especial relação jurídica.
Porém, ainda parece cedo para apontar uma nova definição sobre o tema, restando aguardar os próximos passos a serem tomadas pelo Tribunal da Cidadania.
[1] MARQUES, Claudia Lima in BENJAMIN, Antônio Herman V. Manual de direito do consumidor. 2. ed. rev. atual. eampl., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 71.
[2] Idem, p. 71
[3] Ibidem, p. 73.
[4] Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: (Redação dada pela Lei nº 9.008, de 21.3.1995) I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;
[5] STJ - REsp 541867 / BA. Relator: Ministro ANTÔNIO DE PÁDUA RIBEIRO (280). Relator para o acórdão: Ministro BARROS MONTEIRO (1089), S2 - SEGUNDA SEÇÃO, Dj 10/11/2004
[6]Disponível em https://ww2.stj.jus.br/jurisprudencia/externo/informativo/. Acesso em 10.11.2014.
[7] Idem.
Procurador Federal, membro da Advocacia-Geral da Uniao. Pos-graduado em Direito Publico pela Anhanguera/UNIDERP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PAZ, Samuel Mota de Aquino. Novos julgados do STJ e a vulnerabilidade como fator decisivo na compreensão do conceito de pessoa jurídica consumidora Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 nov 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41632/novos-julgados-do-stj-e-a-vulnerabilidade-como-fator-decisivo-na-compreensao-do-conceito-de-pessoa-juridica-consumidora. Acesso em: 24 nov 2024.
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