Resumo: A boa-fé objetiva é cláusula geral insculpida em diversos dispositivos. Suas funções são várias: auxiliar a integração e a interpretação do direito (LINDB, art. 5º; CC, art. 113); criar deveres anexos de conduta para as partes, como lealdade, confiança, assistência, aviso, esclarecimento, informação e sigilo (CC, art. 422); delimitar parâmetros para se configurar o abuso de direito (CC, art. 187). Apesar de construída sob o pálio civista, a boa-fé objetiva perpassa todo o ordenamento jurídico.
Palavras-chave: cláusulas gerais, boa-fé, deveres anexos de conduta, abuso de direito.
Introdução
Miguel Reale, mentor do atual Código Civil brasileiro, lhe impôs uma concepção culturalista que nega a compartimentação absoluta do conhecimento e que valoriza a ideia de interação do homem com o mundo.
Por isso, um dos princípios vetores do atual Código Civil é a eticidade. O próprio Miguel Reale (2002) explica que se procurou superar o formalismo estritamente jurídico do código anterior, reconhecendo-se a participação de valores éticos no ordenamento. Sua marca é a utilização constante de princípios, cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados.
Valorizou-se a atividade interpretativa do juiz ao se inserirem cláusulas gerais, isto é, aberturas que a lei deixa a cargo do intérprete preencher: "o que se objetiva alcançar é o Direito em sua concreção, ou seja, em razão dos elementos de fato e de valor que devem ser sempre levados em conta na enunciação e na aplicação da norma" (REALE, 2002).
As cláusulas gerais são enunciados com abertura semântica redigidos em linguagem flexível, que permitem ao julgador adaptar a norma à realidade. A relevância do instituto é ressaltada por Daniel Boulos (2006, p. 75-77):
Em outras palavras, diante da inevitabilidade do progresso social, as cláusulas gerais servem de meio de fazer com que o Direito esteja em compasso com este progresso sem que, para tanto, seja necessária uma constante intervenção legislativa [...] Este é o principal sentido da cláusula geral: servir de meio de adaptação da lei às modificações verificadas no contexto social e, inclusive, no contexto político.
E também por Judith Martins-Costa (2002, p. 119):
Na verdade, por nada regulamentarem de modo completo e exaustivo, atuam tecnicamente como metanormas, cujo objetivo é remeter o juiz a critérios aplicativos determináveis ou em outros espaços do sistema ou mediante variáveis tipologias sociais, dos usos e costumes objetivamente vigorantes em determinada ambiência social.
O principal exemplo de cláusula geral é a boa-fé objetiva, tema do qual passa a se ocupar o presente artigo.
Boa-fé subjetiva e objetiva
A boa-fé é uma diretriz ética que ganhou força jurídica (GAGLIANO, 2005, p. 72). É “o atual paradigma da conduta na sociedade contemporânea” (NUNES, 2005, p. 12). Pode ser subjetiva – concepção psicológica - ou objetiva – concepção ética (GONÇALVES, 2006, p. 34).
A boa-fé subjetiva está presente em nosso ordenamento desde o Código Civil de 1916. Leva em conta a intenção do sujeito. Consiste em “uma situação psicológica, um estado de ânimo ou de espírito do agente que realiza determinado ato ou vivencia dada situação, sem ter ciência do vício que a inquina” (GAGLIANO, 2005, p. 73). Comenta Carlos Roberto Gonçalves (2006, p. 34) sobre a boa-fé subjetiva:
Diz respeito ao conhecimento ou à ignorância da pessoa relativamente a certos fatos, sendo levada em consideração pelo direito, para os fins específicos da situação regulada. Serve à proteção daquele que tem a consciência de estar agindo conforme o direito, apesar de ser outra a realidade.
Por sua vez, a boa-fé objetiva é norma jurídica fundada em princípio de direito que institui regra de conduta fundada na honestidade e lealdade entre as partes contratantes (GONÇALVES, 2006, p. 35-36).
Segundo Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2005, p. 78), identificam-se três funções da boa-fé objetiva: a interpretativa, a criação de deveres jurídicos anexos e a delimitação de abusos no exercício do direito.
Pela função interpretativa, a boa-fé objetiva serve de referencial seguro para que o aplicador do Direito extraia da norma o sentido moralmente mais recomendável e socialmente mais útil. Ainda, serve de parâmetro para integração de lacunas (colmatação). Sua base legal é o art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (“Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”) e o art. 113 do Código Civil (“Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”).
Outra função da boa-fé objetiva é a que Judith Martins-Costa (2002, p. 199) denomina “otimizadora do comportamento contratual”. Trata-se da criação de “deveres jurídicos anexos” ou “deveres instrumentais de conduta”, que são impostos aos sujeitos ativo e passivo. São “deveres invisíveis”, porque não precisam estar expressos no contrato. Alguns exemplos são os deveres de lealdade e confiança, assistência, aviso e esclarecimento, informação e sigilo.
A lealdade é “a fidelidade aos compromissos assumidos, com respeito aos princípios e regras que norteiam a honra e a probidade” (GAGLIANO, 2005, p. 80). Implica a transparência, o amor à verdade, e a correspondência entre a conduta praticada e a vontade manifestada.
A confiança é a crença na probidade de outrem, que se pressupõe nas sociedades ditas civilizadas.
O dever de assistência ou de cooperação significa que cabe aos contratantes colaborar para o adimplemento do contrato em toda sua extensão. Por exemplo, não dificultando o pagamento (GAGLIANO, 2005, p. 82).
O dever de informação (ou transparência – ASSIS, 2005, p. 80) trata-se da imposição aos contratantes de comunicar à outra parte todas as características e circunstâncias do negócio jurídico.
O dever de sigilo se dá, por exemplo, quando um contratante detém informações sensíveis sobre a outra parte e não as pode revelar, mesmo após o término do contrato (GAGLIANO, 2005, p. 86).
O dever de aviso e esclarecimento existe, por exemplo, para o empregador que deve comunicar ao empregado os riscos da atividade laboral, os acontecimentos e as circunstâncias que influenciem na relação de emprego (MEIRELES, 2004, p. 62).
A última função notável da boa-fé objetiva é a de delimitar abusos no exercício de direitos subjetivos (MEIRELES, 2004, p. 68), ponto em que entra a repressão ao abuso do direito, de que a boa-fé é um dos critérios para verificação, assim como a proibição de comportamento contraditório, a ser visto adiante.
Reza o art. 187 do CC que o ato abusivo que viola a boa-fé é ilícito. Mas o dispositivo que consagra efetivamente a boa-fé no Código Civil é o art. 422: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.
Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2005, p. 88) consideram que a redação do artigo poderia ter sido melhor se incluísse as fases pré e pós contratual. Asseveram os autores que, apesar da redação deficiente, a boa-fé objetiva deve ser observada também antes e depois do contrato, com base no princípio da dignidade da pessoa humana: “Pensar em sentido contrário seria defender, em última análise, que o sistema positivo brasileiro admitiria, em tais fases, a prática de condutas desleais, somente sancionando-as na fase contratual, o que nos parece um absurdo!”.
É o que a doutrina convencionou chamar de “pós-eficácia das obrigações” (GAGLIANO, 2005, p. 91).
Retornando ao ponto, tem-se que a boa-fé objetiva serve de parâmetro para o controle do abuso do direito. Assevera firmemente Anderson Schreiber (2005, p. 112):
E, de fato, não pode haver dúvida, ao menos à luz do ordenamento jurídico brasileiro, que a boa-fé funciona como um dos critérios axiológico-materiais para a verificação do abuso do direito. Em outras palavras, o exercício de um direito será considerado abusivo, e portanto vedado, quando se verificar ser contrário à boa-fé objetiva.
Ensina Rizzato Nunes (2005, p. 12) que o órgão julgador, na concretização da boa-fé objetiva, passa pela identificação do modelo (standard) de comportamento previsto para o caso em discussão e sua comparação com o comportamento efetivamente adotado, para então extrair a consequência jurídica adequada.
O princípio da boa-fé objetiva, insculpido no art. 422 do Código Civil, parâmetro para a caracterização do abuso do direito, é aplicável também ao direito do trabalho, e alcança as fases pré e pós-contratual (NASCIMENTO, 2004, p. 363). Por sinal, “o princípio [boa-fé objetiva] atua em todos os ‘ramos’ do Direito” (MARTINS-COSTA, 2002, p. 214).
A irradiação do princípio pelo ordenamento jurídico já é reconhecida pelos tribunais. Não apenas pelos ramos do direito privado, diga-se, mas também do direito público, material e processual, inclusive o direito processual penal, como exemplifica a seguinte ementa de julgado do Superior Tribunal de Justiça:
EXECUÇÃO PENAL. HABEAS CORPUS. (1) IMPETRAÇÃO SUBSTITUTIVA DE RECURSO ORDINÁRIO. IMPROPRIEDADE DA VIA ELEITA. (2) NÃO LOCALIZAÇÃO DO CONDENADO. DILIGÊNCIAS JUNTO À RECEITA FEDERAL E CARTÓRIO ELEITORAL. ENDEREÇO PRESENTE NOS AUTOS (BOLETIM DE OCORRÊNCIA). NÚMERO DA CASA. DIVERGÊNCIA EM UM DÍGITO. (3) INSTRUÇÃO DO WRIT. DEFICIÊNCIA. (4) PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA. DUTY TO MITIGATE THE LOSS. ORDEM NÃO CONHECIDA.
(...)
3. O princípio da boa-fé objetiva ecoa por todo o ordenamento jurídico, não se esgotando no campo do Direito Privado, no qual, originariamente, deita raízes. Dentre os seus subprincípios, destaca-se o duty to mitigate the loss. A bem do dever anexo de colaboração, que deve empolgar a lealdade entre as partes no processo, cumpriria ao paciente e sua Defesa informar ao juízo o endereço atualizado, para que a execução pudesse ter o andamento regular, não se perdendo em inúteis diligências para a sua localização.
4. Habeas corpus não conhecido.
(STJ, HC 137549 / RJ, 6ª Turma, Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, DJe 20/02/2013)
Conclusão
A cláusula geral da boa-fé objetiva institui regra de comportamento fundada na honestidade entre os contratantes em todas as fases da relação jurídica, inclusive a pré e a pós-contratual.
Uma de suas funções é a interpretativa, fundada no art. 5º da LINDB e no art. 113 do CC: servir de parâmetro para a integração das lacunas e de referencial para o jurista extrair da norma o sentido moralmente mais recomendável e socialmente mais útil. Outra função, respaldada no art. 422 do CC, é a de criar deveres de conduta para as partes, como a lealdade e confiança, assistência, aviso e esclarecimento, informação e sigilo. A última função significativa é a de, com base no art. 187 do CC, delimitar abusos no exercício de direitos subjetivos.
Apesar de consagrada normativamente em instrumentos civilistas, a boa-fé objetiva permeia todo o ordenamento jurídico: direito privado, direito público, direito material, direito processual.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ASSIS, Olney Queiroz. Princípio da autonomia da vontade x princípio da boa-fé (objetiva): uma investigação filosófica com repercussão na teoria dos contratos. In: Doutrina ADCOAS – informações jurídicas e empresariais. n. 4. 2ª quinzena. fev. 2005. ano VIII. [S.L.: s.n.], p. 75-80.
BOULOS, Daniel M. Abuso do direito no novo Código Civil. São Paulo: Método, 2006.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil. vol. IV, tomo I. São Paulo: Saraiva, 2005.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. vol. III. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
MARTINS-COSTA, Judith; BRANCO, Gerson. Diretrizes teóricas do novo Código Civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002.
MEIRELES, Edilton. Abuso do direito na relação de emprego. São Paulo: LTr, 2004.
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. 21ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
NUNES, Rizzato. A boa-fé objetiva como paradigma da conduta na sociedade contemporânea. In: Revista Jurídica n. 327. Ano 52. Jan. 2005. Porto Alegre: Editora Notadez, 2005, p. 9-12.
REALE, Miguel. Visão geral do novo Código Civil. In: Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 54, fev. 2002. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2718>. Acesso em: 20 out. 2006.
SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARTINS, Rodrigo Bezerra. Algumas linhas sobre a boa-fé objetiva Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 nov 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41634/algumas-linhas-sobre-a-boa-fe-objetiva. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Fernanda Amaral Occhiucci Gonçalves
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