Introdução
O artigo tem o escopo de apresentar noções jurídicas sobre o domínio e competência legislativa dos recursos hídricos da União, Estados e Municípios, com a finalidade de analisar os dispositivos constitucionais e legais, verificando a aplicabilidade e função na edição de normas com o objetivo de regular o uso e proteger o meio ambiente e, especialmente, os recursos hídricos nacionais.
1. Conceitos fundamentais
Os bens móveis e imóveis que constituem o domínio das coletividades públicas dividem-se em duas classes: os do domínio público e os do domínio privado. As classes de domínio público são “o conjunto de bens móveis e imóveis de que é detentora a Administração, afetando a seu próprio uso, quer ao uso direto ou indireto da coletividade, submetidos a regime de direito público derrogatório do direito comum”[1]. A renomada doutrinadora Odete Medauar[2] afirma que a locução domínio público engloba todos os tipos de bens públicos e deve ser utilizada constitucionalmente no mesmo sentido de patrimônio público, pois ambas são sinônimas.
Os bens públicos são de extrema importância em matéria ambiental, devido aos seus múltiplos usos e também representam uma riqueza pública, integrando o patrimônio da Administração, por serem meios dos quais esta dispõe para atender seus fins, influenciando de maneira fundamental os indivíduos e toda a coletividade. Assim, os recursos hídricos são considerados como elementos de suma importância na vida da sociedade, tanto para os fatores econômicos, como domésticos.
A União e Estados têm o domínio sobre os bens hídricos, decorrentes de expressa manifestação constitucional que reserva para eles a responsabilidade pela administração, preservação e edição de normas aplicáveis às águas. Essas questões são destacadas por Maria Machado Granziera em sua análise sobre a dominialidade dos recursos hídricos
O domínio dos recursos hídricos, dessa forma, está muito mais próximo do “dever de zelar” do que de “exercer poder” sobre algo. Esse “poder”, no sentido de propriedade, dá lugar à responsabilidade pela condução do gerenciamento das águas (GRANZIERA, 2003, p. 75).
Portanto, a Constituição Federal de 1988 não deixou margem para o outrora existente instituto das águas particulares, alterando, essencialmente, o domínio das águas.
2. A Carta Magna de 1988 e o domínio dos recursos hídricos
A antiga e tradicional maneira de administração do domínio das águas seguia a linha de pensamento de que somente o administrador possuía competência para administrar, formular planejamentos e indicar metas de acordo com sua oportunidade e conveniência. O principal problema ocorreria quando, muitas vezes, o administrador mostrava ser de maior importância a sua conveniência e oportunidade, suprimindo os interesses públicos.
Desse cenário de administração que visava, principalmente, ao crescimento econômico-financeiro a qualquer custo, em detrimento das ânsias sociais, é que vem se transformando a fórmula de administração dos recursos hídricos, limitando a atuação dos detentores de seu domínio e abrindo espaço e dando poder de decisão aos usuários dos serviços de água e à sociedade civil. Sem dúvida, um dos principais instrumentos, que está sendo incorporado para realizar essa nova participação administrativa, é a gestão participativa nas bacias hidrográficas.
3. Recursos hídricos de domínio da União
A Constituição Federal de 1988 possui disposição expressa sobre as águas como bens da União, em seu artigo 20, inciso III:
Art. 20 – São bens da União:
III - os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos do seu domínio ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais.
Este dispositivo tem ampla relevância na questão da outorga de direito de uso de recursos hídricos, sendo necessária aqui uma maior atenção ao assunto. Segundo a disposição supracitada, os rios que banham mais de um Estado podem pertencer a duas categorias:
a) eles constituem a própria divisa geográfica entre os dois entes federativos;
b) eles atravessam dois ou mais Estados brasileiros.
No primeiro caso, o rio serve de limite ou fronteira geográfica entre os Estados. Dessa forma e segundo a letra constitucional, o rio é considerado federal. Assim é de competência da União outorgar o direito de uso da água para ambos os Estados, de acordo com a lei nº 9433/97. O artigo 13 desta lei alude à questão da outorga estar vinculada às prioridades estabelecidas no plano da bacia hidrográfica, não havendo, portanto, conflito sobre a quantidade do recurso, nem sobre o ato administrativo da União:
Art. 13. Toda outorga estará condicionada às prioridades de uso estabelecidas nos Planos de Recursos Hídricos e deverá respeitar a classe em que o corpo de água estiver enquadrado e a manutenção de condições adequadas ao transporte aquaviário, quando for o caso.
Há, por conseguinte, a necessidade de ocorrer comunicação e interação entre os Estados, pois como ocorre no caso do controle da poluição, onde a competência administrativa para licenciar empreendimentos ambientais é estadual, pode acontecer de cada Estado conceder licença ambiental em seu próprio território, com despejo de efluentes nos corpos hídricos. A questão é que, isoladamente, não haveria impacto ambiental negativo, porém o despejo, em ambos os Estados, pode causar sérios danos ambientais, embora haja licenciamentos legais. Para essa questão assevera Maria Luiza Granziera:
Impõe-se, dessa forma, que os procedimentos administrativos relativos à obtenção da outorga e da licença ambiental considerem esse fator, e sejam organizados de forma que haja a colaboração entre os órgãos competentes (GRANZIERA, 2003, p. 77).
No caso de um rio atravessar mais de um Estado, apesar de cada Estado possuir jurisdição em matéria de proteção ambiental em seu território, é certo que os dejetos despejados em cada Estado influenciarão a qualidade da água no subseqüente. É, novamente, necessária a articulação entre os entes federativos por meio de órgãos e entidades componentes do Sistema de Gerenciamento de Recursos Hídricos e do Sistema de Meio Ambiente.
4. Domínio das águas pelos Estados
A Constituição de 1988, ao fixar as águas que pertencem aos Estados, adotou o critério da exclusão, ou seja, as águas estaduais seriam aquelas que não pertencem à União. De acordo com o artigo 26, inciso I, da Carta Magna, os Estados teriam domínio sobre as águas subterrâneas, superficiais, emergentes, fluentes e em depósito localizadas em seus territórios:
Art. 26. Incluem-se entre os bens dos Estados:
I - as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União
Porém, não existe disposição expressa, no mesmo diploma legal, sobre águas subterrâneas de domínio da União, suscitando, assim, uma divisão sobre o assunto na doutrina especializada.
Para uma primeira corrente, liderada por Cid Tomanik Pompeu, a Constituição é confusa ao tratar do assunto das águas subterrâneas. Caso ocorra a interpretação literal do artigo constitucional tem-se que cada Estado poderá utilizar e extrair as águas subterrâneas à vontade. Desta maneira, conclui sua tese argumentando que os depósitos de recursos hídricos subterrâneos deveriam integrar o patrimônio da União, para atender ao princípio federativo.[3]
A outra corrente doutrinária[4] acredita que apesar de não serem, ainda, objeto de regulamentação por lei federal, na Constituição não há nenhum dispositivo que leve à conclusão que as águas subterrâneas são bens da União. Logo não é possível utilizar-se da analogia ao caso das águas superficiais, ou seja, rios que dividem ou atravessam mais de um Estado. Neste mesmo sentido, e em lição esclarecedora, manifesta-se Maria Luiza Granziera:
De fato, não há base constitucional para o entendimento de que as águas subterrâneas, subjacentes a mais de um Estado, sejam do domínio da União. Todavia, tratando-se da matéria sob o enfoque da gestão, ficam minimizados os riscos da exaustão dos aqüíferos em razão do uso autorizado por parte de cada Estado, pois as decisões devem ocorrer em conjunto, já que as águas subterrâneas também constituem a bacia hidrográfica, adstrita, portanto, à gestão participativa e descentralizada (GRANZIERA, 2003, p. 80).
Ressalte-se que as águas de domínio do Distrito Federal são, portanto, todas as que não fazem partedo domínio da União e nem dos Estados, incluindo as águas de origemsubterrânea, situadas em seu território.
5. Competências Legislativas
O Brasil adotou o federalismo como forma de governo e neste sistema o compartilhamento de competências é uma tendência, evitando-se que uma entidade detenha o poder em determinada matéria. Há de se ressaltar que, além da divisão de poder, deve ocorrer uma integração, articulação e cooperação em todos os níveis de poder. Juntamente com a noção de divisão de competências, é mister ressaltar-se sua interdisciplinariedade com o poder de polícia, atribuição da pessoa de direito público interno dotada de competência legislativa sobre a matéria.
A competência legiferante está intimamente ligada à competência administrativa. Deste modo, é muito importante a definição de competências para saber quem será o responsável pela fiscalização, atuação e punição daqueles que descumprem os preceitos legais.
A legislação brasileira, em matéria ambiental, é bastante repartida pela Constituição entre a União, Estados e Municípios. Assim, fica clara a intenção de descentralizar a proteção ambiental, principalmente devido à extensão geográfica do Brasil e, também, por causa de peculiaridades regionais, que dificultam a unificação das leis. Contudo, atualmente, os gestores e legisladores estão caminhando para uma menor fragmentação ou particularização das leis ambientais, principalmente das águas, procurando, assim, uma maior uniformidade.
6. Competência da União
De acordo com as disposições contidas na Constituição Federal, à União compete a instituição do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, com a função de administrar as águas, além da definição de critérios de outorga de direitos de seu uso. Então, a edição de normas gerais sobre a utilização, preservação e cobrança sobre o uso dos recursos hídricos nacionais ficam a cargo da União, já que convém ao interesse público uniformidade nas regras e uma pertinência legal referente aos princípios constitucionais.
O artigo 22 da Carta Maior discorre sobre a competência privativa da União. O inciso IV assevera que as águas passam a integrar tal competência. Sendo privativa, essa competência exclui os Estados e Municípios na questão de legislar sobre os recursos hídricos. Contudo, como afirma Maria Luiza Granziera (2002, p. 78) uma “(...) lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas.” Todavia, o Congresso ainda não se movimentou nesse sentido e a competência permanece privativa da União.
Ao esclarecer sobre o significado da expressão legislar sobre águas, Paulo Affonso Lemes Machado ensina que
Legislar sobre águas significa instituir normas sobre qualidade e quantidade das águas e estabelecer regras de como as águas serão tratadas, partilhadas e utilizadas. Há uma ampla abrangência do poder normativo da União, que deve ser utilizado para que as legislações estaduais não criem normas discriminatórias ou que estimulem políticas diferentes e até antagônicas sobre o uso das águas (MACHADO, 2002, p. 19).
Já para Cid Tomanik Pompeu, a expressão legislar sobre águas significa o seguinte:
cabe à União estabelecer normas gerais, de aplicação nacional, incidentes sobre as águas federais e estaduais, com a finalidade de criar, alterar ou extinguir direitos sobre a água. Não se confundem esses direitos com as normas administrativas, mesmo sob a forma da lei (POMPEU, 2000, p. 618-9).
Há a necessidade de se diferenciar entre a competência privativa da União para legislar sobre águas e a capacidade dos entes políticos para legislar sobre bens públicos de seu domínio. Assim, deve-se esclarecer que a União não pode legislar em matéria administrativa sobre bens sobre os quais não tem domínio, não podendo haver a proibição aos Estados de fixar normas sobre seus bens.
Destarte, conclui-se que a competência para legislar, em sentido genérico, pertence à União e não se confunde com a capacidade de cada ente federativo brasileiro de estabelecer regras administrativas para os bens públicos de seu domínio.
7. Competência dos Estados
A Constituição Federal consagrou, em suas normas específicas, a divisão entre águas estaduais e federais, evitando que o monopólio legislativo e administrativo ficasse apenas a cargo da União, conforme a explicação de Paulo Affonso Lemes Machado:
Vejo a divisão do domínio das águas no Brasil sob a perspectiva de uma política pública que tenta evitar o absolutismo do poder central (MACHADO, 2002, p. 20).
A Carta Federal não se limitou apenas ao artigo 22 e definiu que os Estados podem administrar os recursos hídricos presentes em seus territórios, de acordo com o Sistema Nacional de Recursos Hídricos e com base nas normas básicas de administração das águas, contidas na Lei 9.433/97.
O artigo 24 do diploma constitucional trata da competência concorrente entre União, Estados e Distrito Federal, de forma que aos Estados é lícito estabelecerem normas suplementares à União. A esse respeito, enfatiza José Afonso da Silva que
a competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui (na verdade até pressupõe) a competência suplementar dos Estados (SILVA, 1995, p. 112) .
8. Competência dos Municípios
Os municípios possuem grande interesse na manutenção da qualidade dos rios, ribeirões, lagos e outras águas que existem em seus territórios, por isso não podem ser excluídos da tarefa de tomar medidas para evitar a poluição e degradação de seus recursos hídricos.
Desse modo, ressalta-se a análise de José Affonso Lemes Machado, para o qual “o Município pode suplementar, de forma mais restritiva, as normas federais e estaduais, desde que comprove o interesse local”[5].
Por conseguinte, a maior função municipal reside no registro, acompanhamento e fiscalização das outorgas de recursos hídricos em seus territórios, visto que tem o dever de fazer parte dos Comitês de Bacia Hidrográfica, nos quais ocorrerá a divisão dos usos das águas, estabelecendo-se as prioridades locais.
Conclusão
O artigo trouxe apontamentos jurídicos sobre o domínio e competência legislativa dos recursos hídricos da União, Estados e Municípios, delineando a matéria com as disposições constitucionais legais sobre os temas, no sentido de se verificar a titularidade dos recursos hídricos nacionais, bem como a competência legislativa de cada ente.
Discorreu sobre a importância da divisão de domínio e competência legislativa, mas também concluiu pela necessidade de elaboração de normas que interajam e se complementem com a finalidade de proteção do meio ambiente e das águas, tanto no âmbito federal, quanto estadual e municipal e que também propiciem o uso múltiplo sustentável dos recursos hídricos, já que este é um ponto extremamente importante para o desenvolvimento social e econômico.
A edição de leis é importante para que sejam traçados requisitos que permitam o uso múltiplo das águas sem que haja o esgotamento dos recursos ou danos ambientais sérios, sendo necessária a fiscalização do Poder Pública, razão pela qual a importância da definição do domínio das águas se das competências legislativas no tema aqui abordado.
Referências bibliográficas
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BOTELHO, Marcos César. Recursos hídricos. Jus Navigandi, Terezina, a. 6, n. 54, fev. 2002. Disponível em <http:// www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2614>. Acesso em: 26 abr. 2004.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.
BRASIL. Lei nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997. Institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, regulamenta o inciso XIX do art. 21 da constituição Federal, e altera o art. 1º da Lei nº 8.001, de 13 de março de 1900, que modificou a Lei nº 7.990, de 28 de dezembro de 1989. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 9 jan. 1997.
DI PIETRO. Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2004.
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GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Direito de águas. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2003.
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Recursos hídricos: direito brasileiro e internacional. São Paulo: Malheiros, 2002.
MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
MORAES, Luis Carlos Silva de. Curso de direito ambiental. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2004.
[1]GRANZIERA, Maria Luiza Machado, Direito das águas: disciplina jurídica das águas doces, 2003, p. 73-74.
[2]MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno, 2004, p. 77.
[3] Este princípio dispõe, basicamente, que as matérias que interessam a mais de um ente federativo, devem ficar a cargo da União, para evitar conflitos e regular de maneira expressa a situação.
[4] Doutrina pregada por Vladimir Passos de Freitas.
[5] MACHADO, Paulo Affonso Leme, Recursos Hídricos: direito brasileiro e internacional, 2002, p. 21.
Procurador Federal com exercício na Procuradoria Regional da 1ª Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BORGES, Edilson Barbugiani. Apontamentos jurídicos acerca do domínio e competência legislativa dos recursos hídricos da União, Estados e Municípios Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 nov 2014, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41666/apontamentos-juridicos-acerca-do-dominio-e-competencia-legislativa-dos-recursos-hidricos-da-uniao-estados-e-municipios. Acesso em: 23 dez 2024.
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