RESUMO: A reparação dos danos extrapatrimoniais, no que se refere a quantificação da indenização correspondente, é atualmente, um dos problemas mais delicados da prática forense, em face da dificuldade de fixação de critérios objetivos para o seu arbitramento. Assim, faz-se necessária a utilização do princípio da discricionariedade, que permite que o juiz exerça sua missão da melhor forma possível de acordo com as circunstâncias do caso concreto. Assim, o objetivo deste artigo é demonstrar a importância da subjetividade do julgador nas decisões judiciais em casos de difícil objetividade, sem afastar, contudo, a racionalidade jurídica.
Palavras-chave: discricionariedade; dano moral; racionalismo jurídico.
1. INTRODUÇÃO:
A promulgação da Constituição da República em 1988 trouxe, entre outras consequências, diversas transformações no Direito Civil brasileiro, culminando com a implantação do Novo Código Civil Brasileiro e com a chamada constitucionalização do Direito Civil.
No âmbito da responsabilidade civil, o princípio da proteção da pessoa humana alterou a sistemática da extensão da tutela à pessoa da vítima em dois aspectos principais: de um lado, no expressivo aumento das hipóteses de dano ressarcível; de outro, na perda de importância da função moralizadora, outrora tida como um dos aspectos nucleares do instituto[1].
As estatísticas dos tribunais demonstram o recrudescimento do número de ações pleiteando a indenização por danos morais nos últimos anos, principalmente nos Juizados Especiais. Isso se deve principalmente ao significativo incremento de hipóteses de dano extrapatrimonial previstas no Novo Código Civil, uma vez que se previu que, não obstante a liceidade da ação ou da atividade, a pessoa deve ser ressarcida, caso ocorra algum dano a ela.
Segundo o ministro Sanseverino[2], a reparação dos danos extrapatrimoniais, no que se refere à quantificação da indenização correspondente, é atualmente, um dos problemas mais delicados da prática forense, em face da dificuldade de fixação de critérios objetivos para o seu arbitramento.
Nesse diapasão, sobressai-se o princípio da discricionariedade, que segundo Nalini[3], permite que o juiz tenha, no mais amplo espectro do exercício de sua missão, o poder para “conceder ou não a medida liminar, para julgar no estado ou permitir a instrução, para fixar os pontos controvertidos da causa, para determinar, de ofício, a realização de mais provas”. Em suma, o magistrado tem liberdade para se convencer, em um sentido ou no seu antípoda, quanto ao pleito que lhe foi formulado.
Porém, alguns doutrinadores[4] não compreendem a discricionariedade como um poder atribuído em abstrato, mas um modo de disciplinar juridicamente a atividade em questão, ou seja, é o limiar de liberdade conferida pela lei ao juiz a “fim de que este cumpra o dever de integrar com sua vontade ou juízo a norma jurídica, diante do caso concreto, segundo critérios subjetivos próprios, a fim de dar satisfação aos objetivos consagrados no sistema legal”.
Diante do exposto, o objetivo deste artigo é discorrer, à luz da Teoria do Direito, sobre os aspectos da racionalidade jurídica e a importância da subjetividade do julgador nas decisões judiciais em casos de difícil objetividade, notadamente nos casos em que se pleiteia indenização por dano extrapatrimonial, instigando a reflexão sobre os aspectos que norteiam a produção da sentença.
2. RACIONALISMO JURÍDICO:
O direito como prestação jurisdicional tem muitas vezes em suas decisões judiciais a desqualificação do sentimento, intensificado pelo instrumento de trabalho dos magistrados, a lei - regra abstrata de conduta imposta à observância geral -, que pertence ao mundo da racionalidade, muito distanciado do da emoção.[5]
O insigne doutrinador Hans Kelsen representa a racionalidade positivista em sua obra intitulada “A Teoria Pura do Direito”, na qual alega que a sua intenção é escrever uma teoria do direito positivo em geral, e não de uma ordem jurídica especial, fornecendo, apara tanto, uma teoria da interpretação. Assim, sua proposta dirige-se unicamente ao direito, de forma a excluir tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como direito. Ademais, Kelsen, apesar de não negar a conexão existente entre os objetos da psicologia e da sociologia com o do Direito, impõe limites impostos pela natureza de seu objeto.
As ideias amplamente difundidas do clássico formalismo interpretativo, foram sintetizadas por Facchini Neto[6] da seguinte maneira: cada norma possui um significado intrínseco; a atividade do intérprete consiste em individuar e tornar explícito este significado; o juiz declara o Direito e não o cria; procede logicamente sem fazer escolhas de valor, aplicando dedutivamente a norma ao fato; se diversas interpretações do mesmo enunciado normativo se afiguram possíveis, isso se resolve individualizando o significado correto e descartando os outros que, consequentemente são errôneos; o método interpretativo por excelência é o lógico-dedutivo, que exclui escolhas discricionárias do intérprete.
Segundo Kelsen, um juízo, como função do conhecimento, tem de ser sempre objetivo, ou seja, deve ser formulado sem que haja interferência do desejo e da vontade do sujeito judicante. Desta forma, a avaliação de que uma conduta humana está de acordo ou não com um ordenamento normativo deve ser feita sem tomarmos emocionalmente posição em face dessa ordem normativa, aprovando-a ou desaprovando-a. Então, é objetivo este juízo de valor que o juiz exerce.
Sobre o controle da subjetividade nas decisões judiciais, Kelsen afirma que:
Quando o juízo traduz a relação de um objeto, especialmente de uma conduta humana, com o desejo ou vontade de uma ou de várias pessoas dirigidas a esse objeto, e exprime, portanto, um valor subjetivo, esse juízo de valor é objetivo na medida em que o sujeito judicante formula tal juízo sem atenção ao fato de que o próprio desejar ou querer determinado objeto ou o objeto oposto, de ele próprio aprovar ou desaprovar tal conduta, mas simplesmente enuncia o fato de que uma ou várias pessoas desejam ou querem um determinado objeto ou o objeto oposto, particularmente o fato de que essas pessoas aprovam ou desaprovam determinada conduta[7].
Durante certo período da história do pensamento moderno, priorizava-se um saber isento de qualquer imperfeição humana. O homem, enquanto sujeito cognoscente, poderia anular-se completamente nas relações de conhecimento: o sujeito limitar-se-ia a captar o objeto, transformando o juiz em um órgão neutro e imparcial.
Alguns autores acreditam que esta teoria está há muito em crise. Por exemplo, Bobbio[8] afirma que “ninguém mais acredita que a interpretação, mesmo aquela chamada mecânica, seja uma operação meramente lógica”.
O pensamento jurídico do século XX enfatiza o papel do juiz na produção do direito, fenômeno que surgiu principalmente devido à teoria da argumentação jurídica, muito importante na superação do formalismo[9].
A mudança no pensamento de forma geral surge quando há o rompimento do conhecimento existente através dos pilares da Física Quântica. Nessa nova concepção, não se fala em objetividade pura e nem em verdades absolutas: passa-se a admitir a existência de espaços entre o parcial e o imparcial, entre a certeza e a incerteza e entre as antinomias da razão[10], até o pensamento holístico e existencial.
Sobre esta nova visão de mundo, Pozzebon[11] ressalta: “Este novo conhecimento, com tal dimensão, que alterou toda uma visão de mundo, não pode mais ficar afastado do Direito e da forma de encarar as decisões judiciais. Assim, a decisão não é fruto de razão ou o da subjetividade, mas de razão e subjetividade, simultaneamente. O juiz não é parcial ou imparcial, mas parcial e imparcial. A decisão não é ‘verdadeira’ ou falsa, mas ‘verdadeira’ e falsa. ”.
Assim, hoje, reconhece-se a relação existente entre a racionalidade e a subjetividade. Não existe racionalidade sem sentimento, sem emoção, daí a importância da subjetividade e de todo o “sentire” no ato decisório e da necessidade de assumir que a “decisum” é um ato de crença, de fé[12].
3. O IMPORTANTE PAPEL DA FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS:
A palavra sentença origina-se do latim sentencia, cuja raiz é sentire. Da etimologia vem a associação da palavra com sentimento e vontade. Todavia, tanto a razão como a emoção estão presentes quando o magistrado sentencia, pois a atividade judicial envolve não só a cognição e a razão, mas também implica a necessidade de fazer escolhas, ainda que disso não se tenha consciência.
Assim, o juiz quando julga não o faz servindo-se apenas do intelecto, não desenvolve uma operação de pura e simples derivação lógica das normas, mas também julga com a vontade, participa, escolhe e decide.
Nesse sentido, Oskar Von Bulow assevera que qualquer decisão judicial não é apenas a aplicação de uma norma preexistente, mas também uma atividade criativa do direito. Segundo ele, a lei não consegue criar imediatamente o direito, sendo somente uma preparação, uma tentativa de realização de uma ordem jurídica. Sob o ilusório véu da palavra contida na norma, esconde-se sempre uma pluralidade de significados[13].
Para Abrão, Klarmann e Rieger[14], a fundamentação interessa tanto às partes, que podem verificar se suas razões foram objeto de análise pelo julgador, mas também ao magistrado, que demonstra a sua atuação, e à sociedade, a qual verifica como está sendo distribuída a justiça. Dessa forma, a motivação pode ser considerada como o principal parâmetro de legitimação interna, ou jurídica, e externa, ou democrática, da função judiciária.
Assim, o dever de fundamentação das decisões judiciais transcende a necessidade de se ter uma garantia técnica, porque é através da motivação que é possível avaliar a atividade jurisdicional, verificando-se as escolhas e seleções feitas pelo julgador, a observância de regras do contraditório e as circunstâncias factuais que formaram a “verdade” do juiz.[15]
Dworkin[16], entende que o julgador, ao formar seu convencimento daquilo que está nos autos, irá formular mentalmente um juízo de valoração – juízo crítico – acerca de algo sobre o qual irá decidir e buscará na motivação argumentos para justificar sua própria decisão. E, na formação desse juízo de valoração, há influência de vários fatores, internos e externos.
Dessa forma, a motivação, aquilo que leva o julgador a fundamentar sua decisão, não é fruto apenas da racionalidade, pois também é influenciada, consciente ou inconscientemente, por aspectos psicológicos. Conclui-se, portanto, que não há decisão judicial em que não haja racionalidade e emoção, simultaneamente, em sua motivação.
Acrescente-se ainda que, diante da complexidade dos novos setores nos quais passou a intervir, o legislador, cada vez mais, tem recorrido a cláusulas gerais ou a princípios de direito.
Essa legislação mais aberta vincula o juiz de uma maneira muito mais frouxa do que a legislação clássica, em que as regras eram precisas. Por conseguinte, atribui-se ao juiz a discricionariedade para aplicar o direito adequado ao caso sob exame.
A priori as regras são compostas por elementos objetivos. No entanto, elas também possuem conceitos indeterminados (abertura semântica maior do que o usual), gerando enorme multiplicidade de significados[17]. O que caracteriza o operador do direito é uma constante mudança de código linguístico da conceitualidade abstrata das leis e dos dogmas para as descrições mais ou menos concretas das situações factuais dos casos jurídicos e vice-versa[18]. Os princípios diretivos que estão previstos na regulação dada, mas que precisam ainda ser concretizados, representam elementos de um sistema interno, que tem por missão tornar visível e pôr em evidência a unidade valorativa interna do ordenamento jurídico.
Segundo Alexy[19], em um modelo jurídico de três níveis em sua razão prática no direito, a racionalidade da pertinência de regras e princípios ao sistema faz com que seja quase impossível um sistema de regras que estabeleça apenas um resultado, uma valoração que dá base para a fundamentação racional dos juízos de valor.
Ante o exposto, percebe-se a necessidade da motivação, a fim de legitimar a justificação do ato decisório, caso contrário, preceitos constitucionais serão violados, especialmente o princípio do devido processo legal, uma vez que o próprio artigo 93, inciso IX, da CF/88, estabelece a “pena” de nulidade para a decisão que não é devidamente fundamentada.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Hodienarmente, a lei apresenta-se como um objeto a identificar e a ser reconstruído.
A aplicação da norma pelos juízes jamais a deixa intacta; ao contrário, determina progressivamente e ininterruptamente o seu significado concreto, fixando o seu conteúdo. Assim, o trabalho do intérprete é um processo contínuo, no qual ideias expressas na lei são repensadas e desenvolvidas de acordo com as circunstâncias do caso concreto.
Nos casos em que se discute a determinação do quantum indenizatório, a motivação precisa ser muito bem fundamentada para não sofrer efeitos de nulidades, como também para ser razoável, proporcional e adequada ao caso concreto.
Diante do exposto, conclui-se que a solução de um caso não se baseia simplesmente em uma regra isolada, haja vista que constitui uma decisão construída. Logo, não há como desconsiderar a influência dos aspectos subjetivos, ligados à história pessoal do julgador, especialmente nos casos em que a subjetividade lhe é inerente, como ocorre com o julgamento dos pedidos de indenização por danos extrapatrimoniais.
5. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
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[1] Bodin de Moraes, M. Constitucionalização do direito civil e seus efeitos sobre a responsabilidade civil. In: Direito, Estado e Sociedade - v.9 - n.29 - p 233 a 258 - jul/dez 2006.
[2] Sanseverino, p. t. RECURSO ESPECIAL Nº 959.780 - ES (2007/0055491-9).
[3] NALINI, José Renato. Ética Geral e profissional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
[4] Bandeira de Mello, C. apud Marçal JUSTEN FILHO, MARÇAL, Curso de Direito Administrativo. 2. edição. São Paulo: Saraiva, 2006 p. 160
[5] PRADO, Lídia Reis de Almeida. Racionalidade e emoção na prestação jurisdicional. In: ZIMERMANN, David; COLTRO, Antonio Carlos Mathias (Org.). Aspectos psicológicos na prática jurídica. Campinas: Millennium, 2010.
[6] FACCHINI NETO, Eugênio. E o juiz não é só de direito... (ou A função jurisdicional e a subjetividade). In: ZIMERMANN, David; COLTRO, Antonio Carlos Mathias (Org.). Aspectos psicológicos na prática jurídica. Campinas: Millennium, 2010.
[7] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1998.1-32.
[8] BOBBIO, N. Quale Giustizia o quale política?, v.II ponte, v.II, 1971.
[9] PRADO, Lídia Reis de Almeida. Racionalidade e emoção na prestação jurisdicional. In: ZIMERMANN, David; COLTRO, Antonio Carlos Mathias (Org.). Aspectos psicológicos na prática jurídica. Campinas: Millennium, 2010.
[10] Lévy- Leblond, J O pensar e a prática da ciência: antinomias da razão. Edusc.
[11] POZZEBON, Fabrício Dreyer de Ávila. A crise do conhecimento moderno e a motivação das decisões judiciais como garantia fundamental. In: GAUER, RUTH Maria Chittó (Coord.). Sistema penal e violência. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006.
[12] Abrão, G., Klarmann, R., Rieger, R. Breves considerações sobre a garantia da fundamentação judicial: O mito da neutralidade. Requisitos e Vícios da Decisão. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 11 | n. 22| Jul./Dez.2009.
[13] FACCHINI NETO, Eugênio. E o juiz não é só de direito... (ou A função jurisdicional e a subjetividade). In: ZIMERMANN, David; COLTRO, Antonio Carlos Mathias (Org.). Aspectos psicológicos na prática jurídica. Campinas: Millennium, 2007.
[14] Abrão, G., Klarmann, R., Rieger, R. Breves considerações sobre a garantia da fundamentação judicial: O mito da neutralidade. Requisitos e Vícios da Decisão. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 11 | n. 22| Jul./Dez.2009
[15] 4 POZZEBON, Fabrício Dreyer de Ávila. A crise do conhecimento moderno e a motivação das decisões judiciaiscomo garantia fundamental. In: GAUER, RUTH Maria Chittó (Coord.). Sistema penal e violência. Rio de Janeiro:Lúmen Juris, 2006. p. 242.
[16] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio- Parte 2 – O direito como interpretação – Cap. 5 – Não existe mesmo nenhuma resposta certa em casos controversos? São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 175-216.
[17] LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Trad. José Lamego. 4 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005. P. 531-596.
[18] HAFT, Fritjof. Direito e linguagem. In: Kaufmann, A. Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 303-326.
[19] ALEXY, R. Sistema jurídico y razon pratica. In_El concepto y La validez Del derecho. Barcelona: Gediza, 1997, p. 159-177.
Procuradora Federal; Mestre em Constitucionalismo, Filosofia e Direitos Humanos (UFPA), Especialista em Direito Processual: Grandes Transformações pela Rede de Ensino LFG, e; Especialista em Direito Previdenciário pela Rede de Ensino LFG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LEVY, Karine de Aquino Câmara. Discricionariedade judicial na quantificação do dano moral Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 nov 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41716/discricionariedade-judicial-na-quantificacao-do-dano-moral. Acesso em: 23 dez 2024.
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