Resumo: Este breve artigo, voltado precipuamente para profissionais da área de saúde (daí porque escrito com linguagem acessível e buscando a clareza conceitual), trata da relação existente entre o tipo de injusto imprudente e a lex artis das distintas profissões da cadeia de cuidar. Nessa linha, problematiza-se o tema com as seguintes indagações: a (des)obediência a lex artis possui influência na configuração do crime culposo quando ocorrido evento lesivo ao paciente sob os cuidados do profissional da saúde? Caso positivo, de que modo tal influência é exercida? Após análise da responsabilidade pessoal e subjetiva no Direito Penal, do tipo de injusto imprudente e da própria lex artis, demonstrar-se-á que a obediência irrestrita à lex artis é fator que deve descaracterizar o tipo de injusto imprudente.
Palavras-chave: Responsabilidade Penal. Profissional da saúde. Tipo de injusto imprudente. Lex artis.
Sumário: 1 Introdução. 2 Responsabilidade Pessoal e Subjetiva no Direito Penal. 3 Intróito à Teoria do Crime. 4 Tipo de Injusto Imprudente. 4.1 A capacidade individual como critério de definição da imprudência. 4.2 Desvalor da ação. 4.3 Desvalor do resultado. 5. A Lex Artis. 5.1 Considerações iniciais. 5.2 Conceito. 5.3 Elementos. 5.3.1 Profissional da saúde. 5.3.2 Paciente. 5.3.3 Ciência. 6. Conclusão.
1 Introdução.
Atualmente, os profissionais da área da saúde (médicos, odontólogos, enfermeiros, etc.) e os juristas não desconhecem o aumento do número de processos criminais em razão de delitos culposos (especialmente homicídio e lesão corporal) imputados àqueles profissionais.
Não obstante, tais processos têm gerado profunda insatisfação entre os profissionais da cadeia do cuidar, eis que, muitas vezes, apesar de seguirem fielmente os procedimentos prescritos pela literatura médica, o resultado adverso ocorre, sem que para isso tenha contribuído o profissional.
Assim, é de extrema importância, seja para os profissionais da área de saúde, seja para os operadores do Direito, o debate acerca da relação que deve existir entre o tipo de injusto imprudente e a lex artis médica (em sentido amplo).
O presente texto, assim, objetiva a analisar essa relação entre o tipo de injusto imprudente e a lex artis médica e a maneira com a qual a obediência a última pode afetar a configuração do primeiro.
Ao final, cumpre dizer que o presente artigo faz uma revisão de literatura com base no método de abordagem dedutivo, utiliza como técnica de coleta de dados a pesquisa bibliográfica a partir de documentos como livros, manuais, códigos e periódicos, que, proporcionando um novo enfoque sobre o tema, serviram de base para as conclusões do autor.
2 Responsabilidade Pessoal e Subjetiva no Direito Penal.
Desde que os primeiros seres humanos se uniram em sociedade, eles reconheceram a necessidade de se preservar certos aspectos da vida de condutas que pudessem colocar em risco esses valores. Assim, percebeu-se a necessidade de se punir aquelas pessoas que, de alguma forma, ameaçassem bens que fossem considerados relevantes para o ser humano, tais como a vida, o patrimônio, a liberdade, etc. Nasce, assim o Direito Penal[1], ou, nas palavras de Edmund Mezger, “... el conjunto de las normas jurídicas que vinculan la pena, como consecuencia jurídica, a un hecho cometido.” (1955, p. 27).
Em verdade, como lembra Magalhães Noronha, a história do direito penal é a história da própria humanidade, pois o crime, tal qual uma sombra sinistra, sempre acompanhou o homem onde quer que ele fosse (1991, p. 20).
É certo que o direito criminal como hoje o conhecemos – um conjunto orgânico e sistemático de regras e princípios – é conquista relativamente recente e fruto de uma evolução nem sempre linear da forma de se ver a pena. Em regra, costuma-se dividir a evolução do direito penal em quatro grandes fases: (a) vingança privada; (b) vingança divina; (c) vingança pública; (d) período humanitário (NORONHA, 1991, p. 20-26; FRAGOSO, 1985, p. 23-71).
A época da vingança privada marca o início da civilização, onde a reação à agressão era a regra. Quando um indivíduo lesionava outro, este reagia contra o causador do dano, a fim de obter a vingança pelo mal causado; e, como se tratava de vingança cometida pelo próprio indivíduo lesado, tratava-se de vingança privada.
Entretanto, tais revides não necessariamente guardavam proporção com o mal causado originalmente, o que ocasionou inúmeras lutas acirradas entre grupos e famílias, que por gerações iam se debilitando e, eventualmente, extinguindo. Surge, assim, o chamado princípio do talião, como medida para impedir a violência arbitrária e desproporcional.
Tal pena aparece nas leis mais antigas, como o Código de Hamurabi, rei da Babilônia, século XXIII a.C., gravado em caracteres cuneiformes e encontrado nas ruínas de Susa. Por ele, se alguém tira um olho a outrem, perderá também um olho; se um osso, se lhe quebrará igualmente um osso etc. A preocupação com a justa retribuição era tal que, se um construtor construísse uma casa e esta desabasse sobre o proprietário, matando-o, aquele morreria, mas, se ruísse sobre o filho do dono do prédio, o filho do construtor perderia a vida. São prescrições que se encontram nos §§ 196, 197, 229 e 230. (NORONHA, 1991, p. 21)
Outras legislações também adotaram o talião, tais como o Código Pentateuco e o de Manu.
Passado esse tempo, com o fortalecimento da religiosidade entre os povos, a religião passou a ser um poder social capaz de impor aos homens normas de conduta e castigo. É o tempo do direito penal religioso e da vingança divina, sendo o principal representante desta fase o Código de Manu, na Índia. Ele tinha como escopo a purificação da alma do infrator, através do castigo, para que pudesse alcançar a salvação. Essa espécie de protótipo de Direito Penal foi o espírito dominante das leis no Oriente antigo (Babilônia, Índia, Israel, Egito, Pérsia, China, etc.).
Com a ascensão do Império Romano, a pena passou a ser vista como um mecanismo de segurança do príncipe ou soberano, eis que, severa e cruel, serviria à intimidação dos criminosos. Em Roma se separaram com certa nitidez, ineditamente, Direito Penal e religião, surgindo os crimina publica (perduellio, crime contra a segurança da cidade, e parricidium, primitivamente a morte de um cidadão) e os delicta privada. A repressão dos últimos era entregue ao ofendido, cabendo ao Estado a repressão daqueles. Mais tarde, com o surgimento dos crimina extraordinaria (figura híbrida que absorveu diversas figuras dos delitos privados), a perna se torna, finalmente, pública. A partir daqui, a repressão do delito passa a caber não mais ao ofendido, e sim ao Estado. Daí falar-se em vingança pública.
Desde sempre, os agrupamentos políticos mais diversos – começando pela família – recorreram à violência física, tendo-a como instrumento normal de poder. Entretanto, nos dias de hoje devemos conceber o Estado contemporâneo como uma comunidade humana que, dentro dos limites de determinado território – a noção de território corresponde a um dos elementos essenciais do Estado – reivindica o monopólio do uso legítimo da violência física. Sem dúvida, é próprio de nossa época o não reconhecer, com referência a qualquer outro grupo ou aos indivíduos o direito de fazer uso da violência, a não ser nos casos em que o Estado o tolere. Nesse caso, o Estado se transforma na única fonte do “direito” à violência. (WEBER, 2003. p. 60)
Tal quadro, não obstante o avanço em relação a vingança privada, ainda demonstrava que a pena era nada mais que vingança. A preocupação ainda era a defesa do soberano e da classe favorecida. Como lembra Noronha, ainda predominavam o arbítrio judicial, a desigualdade de classes perante a punição, a desumanidade das penas (fogueira, roda, arrastamento, esquartejamento, estrangulação, o sepultamento em vida, etc.), o sigilo do processo, os meios inquisitoriais e leis imprecisas e lacunosas, que favoreciam o arbítrio do monarca, ao mesmo tempo em que negavam direitos aos acusados (1991, p. 24).
Foi apenas em 1764 que tal situação começaria a mudar. Foi nesse ano que Cesare Bonesana, Marquês de Beccaria (por isso conhecido também como Cesare Beccaria), escreveu aquele que talvez seja o livro mais importante da história do Direito Penal: Dei delitti e delle pene (Dos delitos e das penas). O bom marquês, em vez de desfrutar a vida despreocupada e cômoda que sua posição nobre e título permitiam, volveu suas vistas para os desfavorecidos que sofriam os rigores da (in)justiça de seu tempo. Partindo da ideia de contrato social (já presente em John Locke, Montesquieu e, principalmente, Rousseau), Beccaria afirma que o fim da pena é apenas o de evitar que o criminoso cause novos males e que os demais cidadãos o imitem, sendo tirânica toda pena que se afaste da absoluta necessidade. Defendia que as leis fossem claras e precisas. Combatia a pena de morte, a tortura, o processo inquisitório, enfim, à justiça medieval que ainda vigorava em seu tempo.
Ao movimento de reforma que se inicia com essa obra, tem-se chamado de período humanitário, pois lança a ideia do respeito à personalidade humana e se funda na compaixão pela sorte das pessoas submetidas ao terrível processo penal e ao regime carcerário que então existia[2].
Este pequeno excurso histórico se fez necessário a fim de que se pudesse estabelecer com clareza os fundamentos que inspiraram uma das maiores (se não a maior) conquista do direito penal moderno: a responsabilidade penal pessoal e subjetiva.
Quando se diz que a responsabilidade penal é pessoal, quer-se dizer que ninguém pode responder por fato cometido por outrem. Isto significa que, em matéria criminal, os pais não respondem pelos filhos, nem os tutores pelos pupilos, nem curadores pelos curatelados, nem o empregador pelos atos de seus prepostos, etc. A responsabilidade é sempre pessoal (QUEIROZ, 2005, p. 45-46). Nada, hoje, pode justificar as práticas do passado, onde a infâmia do réu se transferia a seus sucessores (como no caso acima citado do filho do empreiteiro que era morto em razão da casa construída por seu pai ter desabado sobre o filho do contratante). A pessoalidade da pena hoje é mandamento constitucional, insculpido no art. 5º, XLV, de nossa Carta Magna: “nenhuma pena passará da pessoa do condenado...”.
De outro lado, quando se diz que a responsabilidade penal é subjetiva, quer-se dizer que ninguém pode ser considerado autor de um crime se não agiu com dolo ou culpa. “Não cabe, em direito penal, uma responsabilidade objetiva, derivada tão-só de uma associação causal entre a conduta e um resultado de lesão ou perigo para um bem jurídico.” (BATISTA, 2007, p. 104).
É exigência de nosso Código Penal (arts. 18 e 19) que o fato, para ser considerado crime, tenha sido provocado de forma dolosa ou culposa pelo agente. Não basta, simplesmente, a ação e o resultado. Deve-se, sempre, apurar se o autor agiu com dolo ou culpa.
Isto por uma singela razão. Dissemos, acima, que o Direito Penal visa a proteger certos valores que a sociedade julga importante, tais como a vida, a liberdade, o patrimônio, etc. A esses valores, a doutrina chama de bens jurídicos, isto é, “a expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de certo estado, objeto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso”[3]. A função do Direito Criminal seria, através da ameaça de pena, proteger tais bens jurídicos de serem violados. Assim, o crime de homicídio visa a proteger a vida; o crime de sequestro visa a proteger a liberdade; o crime de roubo visa a proteger o patrimônio[4].
Se a função do direito penal é a proteção de bens jurídicos, através da motivação de comportamentos segundo o comando normativo (ou seja, com a ameaça de pena, se deseja a abstenção de conduta delituosa), “...semelhante intervenção somente pode ter lugar quando os destinatários da norma estejam em condições de acatá-la, já que fora daí, onde falte o domínio da vontade humana [...], a norma penal é inteiramente inútil...” (QUEIROZ, 2005, p. 45). Um direito penal que pretendesse exigir a responsabilidade por fatos que não dependam da vontade do indivíduo é arbitrário e disfuncional, pois aí a norma perde seu caráter motivador e o castigo perde sua justificação. Como bem lembra Eugênio Zaffaroni:
Imputar um dano ou um perigo ao bem jurídico sem a prévia constatação do vínculo subjetivo com o autor (ou impor uma sanção baseada apenas na “causação”) equivale a rebaixar o autor à condição de coisa causante. Neste sentido, é válida a distinção entre um modelo de Direito autoritário e outro que, na verdade, é um direito irracional, que imputa sem pressupor nem delito nem lei. (2003, p. 245).
Assim, percebe-se que apenas os fatos previsíveis e evitáveis (ou seja, passíveis de motivação normativa) podem ensejar a responsabilidade penal, que exige dolo ou culpa do autor. Imaginem-se os seguintes exemplos: (a) um ribeirinho de uma comunidade isolada vai a mata, para caçar animais que fazem parte da tradição alimentar de sua comunidade, quando avista uma onça e, temendo por sua vida, atira contra o animal. Posteriormente se descobre que não se tratava de um animal, e sim de um ser humano fantasiado de onça, o qual estava na mata juntamente a uma equipe de filmagem, gravando um filme. O ribeirinho não poderia ser penalizado, no caso, pois não agiu com dolo ou culpa, faltando-lhe a previsibilidade (ninguém esperaria encontrar, em uma mata, um ser humano vestido de animal); (b) um cidadão trafega em seu veículo, obedecendo à sinalização e aos limites de velocidade, quando, metros a sua frente, um pedestre que caminhava pela calçada tenta, de inopino, atravessar a rua, vindo a ser atingido pelo veículo acima mencionado. Contudo, a perícia demonstra que, na distância em que o veículo se encontrava, mesmo dentro do limite legal de velocidade, a frenagem total do veículo demandaria espaço maior que o existente entre o veículo e a vítima (ou seja, era impossível frear a tempo de impedir o impacto). É óbvio que não pode haver punição do motorista, neste caso, pois lhe faltava a evitabilidade do resultado, não se podendo falar em dolo ou culpa[5].
Imprescindível, pois, para o Direito Penal democrático que hoje impera, a responsabilidade pessoal e subjetiva do autor, devendo-se sempre apurar se ele agiu com dolo ou culpa quando do fato tido por criminoso.
3 Introito à Teoria do Crime.
Assentada a necessidade de o autor agir com dolo ou culpa para caracterização de sua responsabilidade penal, é necessário conceituar dolo e culpa. Mas, antes disso, algumas considerações se fazem necessárias quanto ao conceito de crime, no Direito Penal.
O crime é um dos mais complexos fenômenos sociais com o qual o homem se deparou. Talvez por isso seja ele seja objeto de uma enorme variedade de ciências (Direito Penal, Política Criminal, Criminologia, Sociologia, Psicologia, Ciência Política, Antropologia, História, Filosofia, etc.)[6]. Essa complexidade e abordagem científica múltipla – para além de seus benefícios óbvios que qualquer abordagem multidisciplinar traz ao objeto estudado – leva a uma dificuldade enorme para conceituação de crime, eis que vários os quadros de referência[7] que se pode adotar. Assim, as definições de um conceito de crime podem ter natureza material, formal ou operacional (também chamada de analítica), conforme mostrem os efeitos, a natureza ou os caracteres constitutivos da realidade conceituada (SANTOS, 2012, p. 71; FRAGOSO, 1985, p. 146-147).
Definições materiais mostram o fato punível como lesão de bem jurídico protegido pelo Direito Penal (SANTOS, 2012, p. 72), um desvalor da vida social (FRAGOSO, 1985, p. 147). O homicídio, por exemplo, seria uma destruição da vida humana e, por ser a vida humana um bem jurídico que se deseja preservar, a ameaça de pena visa a sua dissuasão. Crime é, assim, numa definição material, “a ação ou omissão que, a juízo do legislador, contrasta violentamente com valores ou interesses do corpo social, de modo a exigir seja proibida sob ameaça de pena.” (FRAGOSO, 1985, p. 148, grifos do original).
A seu turno, definições formais mostram o fato punível como violação da norma legal (SANTOS, 2012, p. 72). O homicídio, assim, seria uma violação da norma “não deves matar”. Crime, pois, é toda ação ou omissão proibida pela lei, sob ameaça de pena (FRAGOSO, 2012, p. 147).
A definição operacional mostra o fato punível como conceito analítico estruturado pelos componentes do tipo de injusto e da culpabilidade (SANTOS, 2012, p. 72). O homicídio, pois, seria uma injusta produção da morte de alguém por um autor culpável.
A ciência do Direito Penal se ocupa especialmente com a definição operacional de fato punível, capazes de: (a) indicar os pressupostos de punibilidade das ações descritas na lei penal como crimes; (b) funcionar como critérios de racionalidade da jurisprudência criminal; e, acima de tudo, (c) contribuir para a segurança jurídica do cidadão (SANTOS, 2012, p. 72; FRAGOSO, 1985, p. 14.6-147).
Define-se o crime, assim, de acordo com doutrina amplamente dominante no Brasil e no exterior, como ação ou omissão típica, antijurídica e culpável (FRAGOSO, 1985, p. 149).
Cada uma dessas categorias é alvo de profundas divergências doutrinárias e mereceriam estudo próprio a fim de serem abordadas com profundidade apenas razoável. Esquematicamente, contudo, pode-se conceituá-las, como Heleno Cláudio Fragoso (1985, p. 149-150), da seguinte maneira: (a) ação é atividade conscientemente dirigida a uma finalidade; (b) omissão é a abstenção de uma atividade que o agente podia e devia realizar; (c) típica é toda ação que corresponda a um tipo de delito, ou seja, um fato que se subsuma a uma descrição legal de fato punível[8]; (d) antijurídica é toda ação típica contrária ao direito, por não existir nenhuma autorização legal para tanto (estado de necessidade, legítima defesa, etc.)[9]; (e) culpável é um juízo de reprovação social que recai sobre a conduta típica e injusta de uma pessoa imputável que tem (ou podia ter) consciência da ilicitude do fato por ele cometido, sempre que lhe fosse exigível um comportamento conforme o direito[10].
Hoje, muito se discute se tipicidade e antijuridicidade podem formar uma unidade conceitual (o tipo de injusto, querido pelo modelo bipartido) ou devem ser tratados como categorias autônomas (modelo tripartido)[11]. Tal controvérsia teórica, embora extremamente importante para a dogmática jurídico-penal e para a teoria do crime, não trará efeitos práticos para o tema que este trabalho pretende abordar, de forma que, sempre que aqui se falar de tipo de injusto, pretende-se dizer uma ação típica (que se subsuma a um tipo penal) e injustificada (não acobertada por nenhuma causa de justificação, tais como o estado de necessidade e a legítima defesa).
O tipo penal pode ser conceituado como modelo legal do comportamento proibido, compreendendo o conjunto das características objetivas e subjetivas do fato punível (FRAGOSO, 1985, p. 156). É, em poucas palavras, a descrição legal do comportamento proibido. Tais descrições contem, sempre, elementos objetivos e subjetivos.
O tipo objetivo é a descrição da ação nuclear. O comportamento proibido descreve-se com um verbo, que corresponde à ação. O art. 121 do Código Penal, ao definir o crime de homicídio, proíbe a ação de “matar alguém”.
Interessa-nos, para os fins ora propostos, o tipo subjetivo, que dizem respeito aos elementos subjetivos da ação típica: dolo e culpa.
O dolo, definido como “...consciência e vontade na realização da conduta típica” (FRAGOSO, 1985, p. 175), ou como “vontade consciente de realizar o tipo objetivo de um crime, […] saber e querer em relação às circunstâncias de fato do tipo legal” (SANTOS, 2012, p. 126), não será abordado nesse texto, pois felizmente ainda são raros os casos de profissionais de saúde que intencionalmente lesionam os bens jurídicos de seus pacientes. Além disso, uma conduta dolosa jamais pode estar de acordo com a lex artis de tais profissões, haja vista que a beneficência (a promessa de não fazer mal) está impregnada em todos os procedimentos da cadeia de cuidar.
É nos tipos de injusto imprudentes, pois, que este trabalho focará seus esforços.
4 Tipo de Injusto Imprudente.
Os crimes cometidos por imprudência[12] são exceções à regra do crime doloso. Nosso Código Penal afirma expressamente que: “Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente.” (art. 18, parágrafo único).
Contudo, como salienta Claus Roxin, do ponto de vista da frequência real, crimes de homicídio e lesão corporal imprudentes representam a metade de todos os fatos puníveis (1997, p. 996). De fato, do ponto de vista de sua recorrência – e a lesão aos bens jurídicos que tal recorrência representa – os crimes imprudentes representam a espécie mais relevante de criminalidade nos dias atuais. As sociedades, hoje, caracterizam-se pela intensa e generalizada produção de ações perigosas para a vida, o corpo e a saúde do homem, a integridade do meio do ambiente, etc. Acidentes de trabalho e acidentes automobilísticos são claros indicadores da extensão da violência imprudente que permeia as relações sociais contemporâneas (SANTOS, 2012, p. 158; ROXIN, 1997, p. 996).
A lei penal brasileira define o chamado “crime culposo” (que preferimos chamar “imprudente”, pelos motivos já expostos) como o resultado causado por imprudência, negligência ou imperícia (art. 18, II), o que, na verdade, não passa de uma enumeração de hipóteses de comportamentos culposos herdados de um modelo de delito já abandonado pela quase unanimidade da doutrina (SANTOS, 2012, p. 161-162). Não define, pois, o que é a imprudência (ou, nos termos da lei, o que é “culpa”).
A literatura penal contemporânea trabalha, majoritariamente, com o conceito de imprudência cunhado por Hans Welzel: a imprudência seria a lesão do dever de cuidado objetivo exigido. Nas palavras do Mestre de Bonn, a imprudência é “...una acción que causa una lesión de bienes jurídicos, a consecuencia de la no observancia de la diligencia jurídicamente impuesta.” (1956, p. 138). Heleno Fragoso não se afasta desta definição: “Há crime culposo quando o agente, violando o cuidado, a atenção ou a diligência a que estava adstrito, causa o resultado que podia prever, ou que previu, supondo, no entanto, levianamente, que não ocorreria.” (1985, p. 229, grifos do original).
Estabelecido o conceito de imprudência, vê-se que é necessário, para sua exata compreensão, uma análise mais detalhada acerca do elemento central desse conceito, o dever de cuidado objetivo que é violado pelo agente nos casos de crime imprudente.
4.1 A capacidade individual como critério de definição da imprudência.
No caso do dolo, é típica qualquer ação idônea através da qual o agente causa o resultado. Na imprudência, sem embargo, o agente causa o resultado não porque o quis ou assumiu o risco de produzir o resultado, mas por que atuou sem observar as normas de atenção, cuidado ou diligência a ele impostas, tendo em vista as circunstâncias do caso.
Tais normas são fixadas de modo objetivo e geral, ou seja, segundo padrões médios gerais vigentes no meio social. Isto é o cuidado objetivo exigível.
A tipicidade nos crimes imprudentes determina-se através da comparação entre a conduta do agente e o comportamento presumível que, nas mesmas circunstâncias, teria uma pessoa de discernimento e prudência ordinários. A ação que desatenta ao cuidado objetivo, provocando resultado lesivo, é uma ação típica (FRAGOSO, 1985, p. 230).
Como se vê, a definição de imprudência é fundada em critérios objetivos e pressupõe uma correspondência com a capacidade individual do ser humano. Contudo, a capacidade individual do ser humano pode, no caso concreto, ser inferior à medida da definição judicial de imprudência (um motorista idoso e com visão fraca), bem como ser superior a ela (o motorista é um habilidoso piloto de corrida).
Como para identificar o cuidado objetivo exigível é necessário levar em conta não só as características gerais de uma pessoa prudente e normal, mas também as características específicas do agente, inclusive com as qualificações profissionais – médico, engenheiro, mecânico, piloto, etc. – que ele detenha (FRAGOSO, 1985, p. 232), essa possível variação da capacidade individual concreta em relação à medida abstrata da definição funda a seguinte controvérsia: como avaliar a existência ou não de imprudência nos casos que o agente possuía capacidade individual inferior ou superior à medida da definição geral? Deve prevalecer, como critério de análise para configuração da culpa, a capacidade individual ou a capacidade geral?
Imaginemos os exemplos já utilizados acima, em que houve um acidente automobilístico. No primeiro exemplo, o motorista era um habilidoso piloto de corrida e, caso tivesse utilizado suas habilidades especiais, poderia ter evitado o acidente. No segundo caso, o motorista era pessoa idosa e de visão fraca; caso o motorista fosse pessoa com reflexos padrões e visão não prejudicada, poderia igualmente ter evitado o acidente. A questão que se coloca, em poucas palavras, é: quando da aferição da culpa, deve-se exigir o “mais” de quem “pode mais” e/ou o “menos” de quem “pode menos”, ou deve-se exigir o “meio termo” mesmo de quem “pode mais” ou “pode menos”?
A doutrina não possui resposta padrão a este questionamento.
Hans Welzel defende o critério de generalização, eis que generaliza a medida objetiva do tipo de injusto: capacidades individuais diferentes não são consideradas no tipo de injusto, devendo-se exigir o “cuidado objetivo geral” mesmo de quem “pode mais” ou “pode menos”. Assim, no caso do piloto de corrida, como ele possui capacidade individual superior, a imprudência exigiria menos de quem pode mais que a medida geral: o piloto não estaria obrigado a utilizar suas habilidades especiais para evitar o acidente, pois, segundo Welzel, não se pode exigir de uma pessoa o que não é exigido das outras. Já no exemplo do motorista idoso, como ele possui capacidade individual inferior, a imprudência exige mais de quem pode menos: o idoso deveria ter atenção redobrada ao dirigir o carro, sob o argumento de que a capacidade de agir conforme o direito é problema de culpabilidade, e não do tipo (1956, p. 139-140). Para essa teoria, explica Roxin, se alguém provoca um acidente veicular em razão de circunstância que não poderia evitar, em razão de que sua capacidade de conduzir o veículo era muito inferior à média, conclui-se que esse agente realizou, de modo antijurídico, o correspondente delito culposo. Mais! Se sujeito podia prever sua incapacidade, existe o delito no mero fato de haver conduzido o veículo sabendo de sua capacidade reduzida (1997, p. 1.013-1.014).
Uma corrente minoritária, mas que ganha força nos últimos anos, conhecida como individualização, defendida principalmente por dois alunos de Welzel, Günther Stratenwerth (1982, p. 324) e Günther Jakobs (1997, p. 380) – e, no Brasil, por Heitor Costa Júnior (1988, p. 58-59) – individualiza a medida objetiva de injusto, de forma que as diferenças entre tal medida e a capacidade individual devem ser consideradas no tipo de injusto. Assim, no caso do motorista piloto de corrida, como ele possui capacidade individual superior, a imprudência exigiria mais de quem pode mais que a medida geral: o piloto estaria obrigado a utilizar suas habilidades especiais para evitar o acidente que poderia ser impedido caso ele utilizasse tais habilidades. Já no caso do motorista idoso, como ele possui capacidade individual inferior, a imprudência exigiria menos de quem pode menos que a medida geral: seria atípica a conduta do idoso se ficasse comprovado que outro idoso com o mesmo problema na visão também não pudesse evitar o acidente.
Cremos que nenhuma das duas correntes é adequada. A generalização, por exigir menos de quem pode mais e mais de quem pode menos, acaba por criar situações paradoxais, como exigir do piloto de corrida que ele use menos de sua capacidade para evitar a lesão ao bem jurídico, como que premiando a incúria em detrimento do bem jurídico a ser lesionado por ela. A individualização, a seu turno, ao exigir menos de quem pode menos, também deixa a descoberto bem jurídicos importantes, ao nivelar por baixo o dever de cuidado exigido por pessoas que possuem condições individuais inferiores, quando justamente tais pessoas é que deveriam ter maior cuidado ao exercer atividades para as quais possuem capacidade reduzida.
A corrente mais adequada, cremos, é aquela proposta por Roxin (1997, p. 1.015-1.018), que combina o rigor dos critérios da generalização e da individualização, exigindo mais de quem podem mais (no plano superior) e também exigindo o mais de quem pode menos (no plano inferior). Se a capacidade individual é superior à exigência do tipo, o autor deve empregar essa maior capacidade para evitar a lesão ao bem jurídico. Se a capacidade individual é inferior à exigência do tipo, prevalece a medida do tipo. Assim, as críticas feitas no parágrafo anterior restam superadas e o bem jurídico é protegido de forma integral.
Trazendo tais considerações para o campo dos profissionais da saúde, Juarez Cirino dos Santos fala que “...um cirurgião de competência reconhecida deve empregar sua capacidade especial para salvar uma vida, o que está além do poder de um cirurgião comum.” (2012, p. 160-161). A imprudência de um cardiologista ao não diagnosticar uma doença no coração também obedece a uma exigência maior, face a sua capacidade individual superior, a que se submete um clínico geral. Da mesma forma, quanto maior a especialidade do profissional em determinada área (capacidade individual superior), maior será a exigência de dever de cuidado em relação a outros profissionais que não possuam o mesmo grau de expertise.
4.2 Desvalor da ação.
O tipo de injusto imprudente é formado por dois elementos correlacionados: (a) a lesão ao dever objetivo de cuidado, que define o desvalor da ação; e (b) o resultado de lesão do bem jurídico, como produto da violação do dever de cuidado objetivo, que define o desvalor do resultado[13].
Examinar-se-á, primeiramente, o desvalor da ação, consistente na lesão ao dever objetivo de cuidado.
O dever objetivo de cuidado, como já dito, é delimitado principalmente por normas jurídicas que definem o risco permitido em ações perigosas para bens jurídicos. Existem ações que são, em si próprias, criadoras de risco: circulação de veículos, construções civis, esportes, exploração de energia nuclear, o exercício das profissões da área de saúde, etc. A simples prática de tais atividades cria riscos a terceiros, per se: independentemente da cautela que se utilize, jamais se poderá eliminar, por completo, o risco dessas atividades, que lhes é inerente.
Não obstante, impedir a prática de tais atividades, como diz Welzel, “...llevaría en el acto al estado de paralización total de la vida social, y trasformaría los bienes jurídicos en un mundo de museo, en el que, ciertamente, permanecerían sin lesión por obra de manos humanas pero estérilmente anquilosados, sin función viva” (1956, p. 136). É necessário, então, que haja uma zona de risco permitido, na qual a execução de atividades perigosas deve ser considerada lícita.
Veja-se como exemplo o Código de Trânsito Brasileiro: primeiro, ele institui o dever geral de atenção e cuidado na direção do veículo (art. 28); posteriormente, delimita esse dever de cuidado pelas normas jurídicas que definem a zona de risco permitido na circulação de veículos (arts. 29 a 67), tais como: as distâncias de segurança, os limites máximos de velocidade, a ultrapassagem pela esquerda, os sinais de trânsito, etc. Agindo o condutor dentro dessas normas, o risco por ele criado a terceiros é risco permitido. É por isso que Juarez Cirino dos Santos sustenta que “... a definição do risco permitido delimita, concretamente, o dever de cuidado exigido para realizar a ação perigosa de dirigir veículo automotor em vias urbanas e rurais, explicando o atributo objetivo contido no conceito de dever objetivo de cuidado.” (2012, p. 164).
A infração de uma norma jurídica constitui, em regra, criação de risco não permitido e, assim, caracteriza lesão ao dever de cuidado. Contudo, em situações excepcionais, pode ele ser insuficiente para indicar lesão ao dever de cuidado, ou mesmo a observância da norma não garantir comportamento conforme o direito, se tal observância elevar o perigo de lesão ao bem jurídico (ROXIN, 1997, p. 1.001-1.002).
Em razão disso, a doutrina e a jurisprudência cunharam diretrizes adicionais úteis para caracterizar a lesão ao dever do dever de cuidado (desvalor da ação nos crimes de imprudência), dentre os quais merece destaque o princípio da confiança[14].
Na visão de Roxin (1997, p. 1.004-1.008), o princípio da confiança se traduz na expectativa, por quem se conduz nos limites permitidos, de comportamentos alheios também adequados ao dever de cuidado, exceto indicações concretas em contrário[15]. Assim, veículos com preferência de passagem confiam que outros veículos respeitarão tal direito[16].
Esse princípio exerce função relevante também nos casos de trabalho cooperado ou de equipe com distribuição de tarefas entre os integrantes para a realização de obra coletiva. Nas cirurgias médicas, por exemplo, os superiores são responsáveis pela escolha, direção e supervisão dos auxiliares; os auxiliares devem observar as instruções recebidas; cada especialista pode confiar no trabalho livre de falhas de outro especialista e, em qualquer caso, a correção de falhas alheias é sempre limitada pela necessidade de realização correta do próprio trabalho (SANTOS, 2012, p. 168). Não é outra a lição do Mestre de München:
… en una operación “los médicos especialistas que intervienen en ella pueden confiar en la colaboración correcta del colega de la otra especialidad”. Por otro lado, también se corresponde sin embargo con el principio de confianza el que se deba objetar y, en su caso corregir los errores manifiestos de otro. Además, en la cooperación con división del trabajo, el principio de confianza debe retroceder cuando los intervinientes (v.gr. el médico que dirige la operación) poseen especiales deberes de vigilancia (p.ej. frente al médico asistente aún inexperto) u otras misiones de control. A quién alcanzan estos deberes especiales derogatorios del principio de confianza y hasta dónde llegan los mismos se debe examinar con mayor precisión aún para las concretas formas de división del trabajo; la directriz debe ser que incluso al más competente de los que colaboran sólo se le pueden imponer tantos deberes de vigilancia en relación con otros como pueda cumplir sin peligro de descuidar su parte personal de trabajo. (ROXIN, 1997, p. 1.006).
Também esta a opinião de Antônio Evaristo de Moraes Filho, ao tratar do tema:
… o entendimento dominante curva-se diante do princípio de que a responsabilidade penal é pessoal e intransferível, nãorespondendo o médico, em regra, pelos erros cometidos por colegas ou auxiliares, aos quais delegou a realização de parte das atividades, confiando na correção da conduta técnica dos mesmos, com assento no denominado princípio da confiança. (1996, p. 296)
Estabelecidas as premissas para averiguação do desvalor da ação (lesão ao dever objetivo de cuidado), resta agora analisar-se o desvalor do resultado nos tipos de injusto imprudente.
4.3 Desvalor do resultado.
O resultado, nos crimes de imprudência, é a lesão do bem jurídico protegido pelo tipo penal (FRAGOSO, 1985, p. 233; SANTOS, 2012, p. 169). Ação e resultado, nos delitos imprudentes, guardam profunda relação: (a) o dever de cuidado é definido para evitar determinados resultados típicos; (b) o resultado deve ser o produto específico da lesão do dever objetivo de cuidado; (c) o resultado deve ser previsível no momento da ação; e (e) o resultado determina se, porque e como o autor deve ser punido (COSTA JÚNIOR, 1988, p. 69-70).
A imputação do resultado ao autor tem como pressuposto a relação de causalidade entre a ação lesiva do dever de cuidado e o resultado de lesão ao bem jurídico (FRAGOSO, 1985, p. 233). Tem como fundamento a realização do risco criado pela ação lesiva do dever de cuidado (ROXIN, 1997, p. 998). Por fim, tem como condição – para a doutrina ainda amplamente majoritária – a previsibilidade do resultado (SANTOS, 2012, p. 178-183; FRAGOSO, 1985, p. 230-234; WELZEL, 1956, p. 140-141).
A relação de causalidade entre a ação e o resultado indica que o resultado tem de ser causado (processos naturais de determinação causal, relação de causa e efeito) pela ação. A realização do risco, a seu turno, impõe que o risco deve ser imputável ao autor como obra dele. O resultado deve ser o produto específico da lesão do cuidado objetivo exigido (COSTA JÚNIOR, 1988, p. 65).
A definição de resultado com a dupla exigência de relação de causalidade e realização do risco criado pela ação lesiva do dever de cuidado impõe que sejam excluídas as hipóteses de: (a) fatalidade do risco; (b) resultados incomuns; (c) resultados fora da área de proteção do tipo; e (d) resultados iguais em hipotéticas condutas conformes ao dever de cuidado.
A fatalidade do resultado afirma que a lesão ao bem jurídico produzido pela fatalidade de acontecimentos infelizes não podem ser definida como realização do risco imputável ao autor. É o caso de, sob o impulso da força empregada para desprender-se das mãos da mãe, a criança cair sob veículo em movimento regular próximo ao meio-fio (SANTOS, 2012, p. 172).
A natureza incomum do resultado também afasta a realização do risco como obra do autor. Se um motorista morre devido à parada cardíaca ao ser “fechado” por outro veículo, não se pode falar em homicídio culposo por parte do outro motorista (SANTOS, 1997, p. 172).
Resultados fora da proteção do tipo podem ocorrer quando há: (aa) autoexposição a perigo; (bb) exposição consentida a perigo criado por outrem; (cc) perigos situados em área de responsabilidade alheia; (dd) danos psíquicos-emocinais sobre terceiros; e (ee) outras consequências danosas posteriores.
Ocorre autoexposição a perigo nas situações em que o resultado é atribuível à própria vítima, e não ao colaborador da ação, se a vítima conhece o risco existente na ação. É o caso, por exemplo, do paciente que morre após ingerir superdose de remédio receitado por médico. A atribuição do resultado é excluída porque o dever de proteção do médico se limita à doença do paciente, sem incluir incontroláveis autolesões com os meios de cura prescritos (ROXIN, 1997, p. 389-390).
A exposição consentida a perigo criado por outrem não é imputável ao autor se a vítima tem a mesma compreensão do e responsabilidade pelo perigo que o autor. É o caso de vítima que, esclarecida quanto aos perigos de tratamento lícito, mas ainda experimental, insiste em participar do referido tratamento e morre em razão dele. A imputação é excluída porque a vítima conhece o risco ao qual se expõe.
Os perigos situados em área de responsabilidade alheia têm por objeto, em geral, funcionários públicos ou profissionais no exercício de suas funções ou atividades. Eles incidem sobre cursos causais preexistentes e podem excluir a imputação do resultado de anterior lesão ao dever de cuidado. É o caso, por exemplo, de um bombeiro que morre ao tentar salvar do afogamento uma criança que se separou do grupo de excursão escolar e caiu em um rio (ROXIN, 1997, p. 399). Existe séria discussão doutrinária acerca da questão de se tal professora, responsável pelos alunos da excursão, deve ou não ser considerada autora de homicídio culposo contra o bombeiro: a opinião dominante entende que se trata de homicídio culposo, porque o resultado é consequência da preexistente à lesão ao dever de cuidado causada pela autora. A doutrina mais moderna, entretanto, tem negado tal imputação, pois o risco funcional é livremente assumido pela vítima – que é remunerada justamente para correr tal risco – e tal responsabilização vai contra a política criminal, pois pode impedir que autores de eventos deste jaez (incêndios imprudentes, etc.) ou outros eventos busquem o socorro das autoridades, por medo de que elas pereçam quando da tentativa de salvamento (ROXIN, 1997, p. 399-400; SANTOS, 2012, p. 175-176).
Danos psíquico-emocionais contra terceiros também não podem ser imputados como resultado da lesão ao dever de cuidado do autor. Seria o caso, por exemplo, de transeunte que passe mal ao ver o cadáver de pessoa morta em acidente de trânsito provocado culposamente por motorista (ROXIN, 1997, p. 402 e 1.012). No caso específico de profissionais da saúde, tem-se como exemplo a morte, por ataque cardíaco, da companheira de paciente que faleceu devido a erro médico culposo, ao receber a notícia do falecimento do esposo.
Outras consequências danosas posteriores não são imputadas ao autor se relacionadas à redução da resistência orgânica ou capacidade física, determinadas por ação lesiva do dever de cuidados. Pense-se em um paciente que tem de ter sua perna amputada em razão de erro médico culposo. Caso este paciente venha a cair e se lesionar, em razão de sua reduzida mobilidade, tal queda não pode ser imputada ao médico (ROXIN, 1997, p. 1.012-1.013).
A seu turno, resultados iguais em condutas alternativas conforme o dever de cuidado também excluem a imputação do resultado lesivo ao autor. Heleno Fragoso nos traz o exemplo do médico descuidado que pratica ação capaz de produzir a morte do enfermo que, no entanto, morreria mesmo que tal ação descuidada não fosse realizada (1985, p. 233). Em tais casos, o médico não responde pelo resultado, haja vista que a morte não é produto específico da violação do dever de cuidado, eis que aconteceria ainda que a ação descuidada não ocorresse.
Por fim, a imputação do resultado lesivo ao autor tem como condição a previsibilidade do resultado. O autor somente pode responder por resultados que sejam, objetivamente, previsíveis. O resultado é previsível se havia possibilidade de previsão para uma pessoa razoável e prudente (homo medius), como afirma Fragoso (1985, p. 230). Se o resultado “...era imprevisível para o homo medius, nas circunstâncias, exclui-se desde logo, por igual, a antijuridicidade da ação, porque inexistente, em tal caso, o dever objetivo de cuidado, que não era exigível.” (FRAGOSO, 1985, p. 231). A ausência de previsibilidade do resultado exclui a imputação do resultado, pois não se pode punir alguém pela lesão de um dever de cuidado que era impossível de prever. É impossível, por exemplo, a punição de médico que receitou remédio a um paciente que, ao ingerir tal remédio, revelou efeito colateral até então desconhecido pela própria fabricante do medicamento, eis que não verificado na fase de testes da droga. Tal resultado era absolutamente imprevisível, de forma que por ele não pode responder o médico, que seguiu a lex artis, como se verá.
5. A Lex Artis.
5.1 Considerações iniciais.
A apuração da responsabilidade penal dos profissionais da saúde é tormentosa para os operadores de Direito e também para os profissionais. Para aqueles, em razão da dificuldade imposta pelos conhecimentos especialíssimos necessários para análise de possível erro na cadeia de cuidar, que o operador do Direito não possui: como afirmar que um médico errou ao adotar determinado procedimento em vez de outro? Salvo casos de erros grosseiros (amputação de um membro no lugar de outro, esquecimento de material cirúrgico no corpo do paciente, erro na aplicação de medicamento), afirmar se houve erro médico, em sentido amplo, é tarefa para a qual os operadores da lei dificilmente estão preparados. Já para os profissionais da saúde, a situação é também angustiante, pois muitas vezes eles se sentem injustiçados por terem se pautado de maneira correta e mesmo assim irem às barras do Tribunal e ter sua conduta analisada por alguém que sequer possui formação para julgar o (des)acerto dos procedimentos por ele adotados. Isso se torna ainda mais trágico quanto se percebe que, no campo em análise, submeter-se a procedimento criminal traz efeitos indeléveis ao profissional, normalmente resultando em fechamento de clínicas e dificuldades para conseguir novo espaço no mercado.
A atividade dos profissionais da saúde tem características e contornos especiais e, portanto, a apuração de sua responsabilidade penal no desempenho de suas atividades requer conhecimento técnico de todos aqueles que militam na verificação da existência de crime.
Definimos, supra, a imprudência como a lesão do dever de cuidado objetivo exigido. Assim, a apuração da lesão ao dever objetivo do cuidado, quando se trata de profissionais da saúde, passa necessariamente pela investigação sobre o correto proceder técnico do profissional.
Entra em cena, aqui, a lex artis.
5.2 Conceito.
Todas as profissões possuem um certo conjunto de normas que devem pautar a conduta técnica do profissional. A esse conjunto, grosso modo, dá-se o nome de lex artis.
A lex artis é assim definida pelo magistrado espanhol Luis Martínez-Calcerrada:
… el criterio valorativo dela corrección del concreto acto médico ejecutado por el profesional de la medicina - ciencia e arte médica – que tiene en cuenta las especiales características de su autor, de la profesión, de la complejidad y trascendencia vital del actor, y en su caso, de la influencia en otros factores endógenos - estado e intervención del enfermo, de sus familiares, o de la misma organización sanitaria -para calificar dicho acto de conforme o no con la técnica normal requerida (derivando de ello tanto el acervo de exigencias o requisitos de legitimación o actuación lícita, de la correspondiente eficacia de los servicios prestados y, en particular, de la posible responsabilidad de su autor/médico por el resultado de su intervención o acto médico ejecutado). (1989, p. 473-474).
Trata-se, em verdade, das as regras que, em consonância com o estágio do saber atual de determinada ciência, marcam as pautas dentro das quais hão de se guiar os profissionais. O objetivo de tal lex artis é, na opinião de Calcerrada, valorar a correção ou não do resultado de dita conduta, ou sua conformidade com a técnica normal requerida, ou seja, que essa atuação médica seja adequada ou se corresponda com a generalidade de condutas profissionais perante casos análogos (1989, p. 474).
A imprudência do médico não pode, quase todas as vezes, ser aferida sem considerações acerca da correção da conduta escolhida e aplicada ao paciente.
É verdadeiro, como afirma Gilberto Baumann de Lima, que não cabe aos profissionais do Direito invadir seara alheia, concluindo, temerariamente, que o médico deveria se utilizar de certa técnica em vez de outra. Entretanto, conclui o autor, tal impossibilidade não inibe o Direito de apurar a presença ou ausência de culpa do médico no caso concreto, pois, do contrário, nenhum profissional, de qualquer área, jamais seria responsabilizado criminal ou civilmente (1998, p. 135).
O certo é, mais uma vez com Gilberto Lima, que a medicina (e, acrescente-se, as demais profissões da cadeia de cuidar) possui(em) procedimentos reconhecidamente seguros e corretos, compatíveis com ocorrências semelhantes, ou, no caso de novas situações, indicações das atitudes mais aconselháveis e essa realidade está aberta ao Direito (1998, p. 135).
5.3 Elementos.
Do conceito de lex artis trazido acima, percebe-se que, para análise da obediência do profissional a ela, no caso concreto, deve-se levar em conta considerações acerca de três elementos básicos: (a) o profissional da saúde; (b) o paciente; e (c) a ciência.
Analisar-se-á cada um deles, abaixo.
5.3.1 Profissional da saúde.
A conduta do profissional da saúde deve, sempre, ser de acordo com a lex artis. Carlos Maria Romeo-Casabona lembra que “la jurisprudencia exige su concurrencia para que el acto sea legítimo, y pueda decirse que se lia hecho con la observancia del cuidado objetivamente debido; con la diligencia y perícia debidas. Por Lex Artis se entiende 'la técnica correcta', o 'aquellos principios esenciales que tiendan a su normal desenvolvimiento'.” (1981, p. 71).
Este elemento ganha particular relevo no campo das especialidades. Como vimos acima, a capacidade individual superior faz com que seja exigido mais que a medida exigida pelo tipo de injusto. Se a capacidade individual é superior à exigência do tipo, o autor deve empregar essa maior capacidade para evitar a lesão ao bem jurídico. Exige-se o mais de quem pode mais. A parte de profissionais dotados de excepcionais qualidades deve efetuar, no caso concreto, uma intervenção muito superior à ordinariamente exigida da média dos técnicos.
Por outro lado, esta exigência, aliada ao princípio da confiança – também acima analisado – ao mesmo em que impõem uma carga maior ao especialista, no seu campo de especialidade, faz com que deva haver um abrandamento dos parâmetros de análise do dever do cuidado em áreas estranhas a sua especificidade profissional.
Assim, não pode o Direito exigir que um cirurgião-geral atue eficazmente numa micro-cirurgia sofisticada; que um médico anestesista forneça a contento, um diagnóstico preciso, frente a uma patologia desconhecida ou, que um oftalmologista execute com reconhecida destreza, um parto anômalo. (LIMA, 1998, p. 136)
É óbvio que as circunstâncias em que se encontra o profissional, quando de sua intervenção junto ao paciente, devem ser levadas em conta quando da apuração de imprudência e o respeito à lex artis.
A prática médica eletiva é diferenciada de um atendimento de urgência; o serviço médico prestado em centro de saúde sofisticado, bem aparelhado, pessoal e tecnicamente, é diverso daquele despendido em local ermo ou de precárias condições de higiene; o acesso do médico ao histórico do paciente produz nele convicções outras da que podem ser obtidas em quadros omissos por culpa do paciente ou dos seus familiares, como lembra Gilberto Lima (1998, p. 136). Todas essas considerações são importantes para análise da culpa, pois, já o dissemos, para identificar o cuidado objetivo exigível é necessário levar em conta não só as características gerais de uma pessoa prudente e normal, mas também as características específicas do agente (FRAGOSO, 1985, p. 232).
A escolha do tratamento adequado ao paciente também é imprescindível ao bom cumprimento da lex artis. Tal escolha não pode ser arbitrária e imposta ao paciente. Excetuados os casos de urgência e impossibilidade absoluta de previsão por parte do profissional, a escolha do tratamento deve se fundar no resultado de exames e na prática reconhecida de condutas médicas em casos similares.
Obviamente tal regra deve ser vista com temperança, haja vista que a medicina não é uma ciência exata e puramente causal. Em razão disso, nem sempre o tratamento utilizado em casos pretéritos se revela o mais adequado ao caso concreto. Em outros casos, pode existir mais de um tratamento disponível, cabendo ao médico escolher entre um deles, com base literatura médica que lhe parecer mais adequada ao caso.
Quando o ato lesivo em julgamento pelo tribunal decorrer de práticas que sejam objeto de discussões acadêmicas ou científicas, entendemos que os magistrados não devem reconhecer a imprudência do profissional. Esta também a lição de Antônio Evaristo de Moraes Filho:
Os penalistas contemporâneos mantêm este entendimento de que o médico possui a liberdade, desde que atue em consonância com a denominada lex artis, de adotar o método de tratamento, dentre os vários pertinentes, que entender adequado ao caso concreto, independentemente de ser um critério majoritário, ou não, já que “as normas democráticas poco valen en la ciencia” [...]. E ao juiz não cabe fazer apreciações, para fins condenatórios, “o en favor o en contra de una dirección de escuela”, sob pena de vulnerar “la mencionada libertad de método” (1996, p. 292)
Carlos Roseo-Casabona também adverte que a lex artis “...no es inmutable ni única, por tanto ha de conciliarse con la libertad de método y su apertura a nuevas técnicas o procedimientos que sean en un momento dado de minoritaria aceptación científica.” (2007, p. 227-228).
Nossos tribunais também têm seguido tal entendimento:
Ora, não é raro que haja divergência entre os profissionais da área médica, principalmente quando se deparam com situações em que uma ou outra medida pode ser tomada do ponto de vista médico. Por outro lado, parece extremamente injusto condenar o médico sempre que a decisão tomada não se demonstrar eficaz para salvar a vida do paciente, culpando-o por agir com imperícia, simplesmente porque poderia ter optado por outro tipo de tratamento. Em verdade, o profissional da medicina somente poderá ser culpado pela morte do seu paciente quando agir com total descaso (negligência), não tomando medida nenhuma diante de um quadro grave, ou quando optar por um tratamento flagrantemente inadequado, que demonstre a sua total falta de conhecimento ou incompetência no caso concreto, o que não ocorre quando opta por um dos tratamentos possíveis. (TJ/RJ, APL 01101347720098190001/RJ, Rel. Des. Gilmar Augusto Teixeira, 8ª Câmara Criminal, DJe 23/08/2012)
O fato é que, o atendimento à lex artis, por parte dos profissionais, implica no não reconhecimento de culpa do médico diligente. Esta é a lição de Heleno Fragoso, ao tratar do tema:
Quando se trata de ofício ou profissão, pode dizer-se que não viola o cuidado objetivo o agente que atende às regras da arte (legis artis), ou seja, normas de comportamento dadas pela ciência, pela experiência ou pela prática habitual. Não age ilicitamente o profissional que observa fielmente as regras de seu ofício, embora essas regras estejam em constante evolução. […] é sempre conforme ao dever o comportamento que as observa. (1985, p. 232)
A mesma conclusão é obtida por Adelmo Manna que, após longa digressão sobre o tema, afirma que o tratamento médico-cirúrgico de caráter terapêutico, se seguidor das determinações da lex artis, não configura os crimes de homicídio imprudente e lesão corporal imprudente, previstos respectivamente nos artigos 589 e 590 do Código Penal italiano (1984, p. 176).
O mesmo entendimento é seguido por Carlos Maria Roseo-Casabona: “el médico [...] que en su actuación se han sometido a la «lex artis», a lo que su ciencia o su arte indiquen como adecuado en cada momento y circunstancia, no habrán infringido por lo general sus deberes de cuidado...” (2007, p. 227).
A jurisprudência também trilha tal caminho. No Brasil, verifica-se interessante acórdão prolatado pelo Superior Tribunal Militar neste sentido:
Monitoramento da pressão intracraniana e eventual craniotomia descompressiva, reputados como fundamentais ao tratamento do ofendido pelo Parquet, com base em depoimento de outro médico do Exército, colhido pelo próprio órgão do Ministério Público Militar, desaconselhado por literatura médica nacional e estrangeira. Elemento de convicção suficiente, diante da ausência de perícia regular, segundo os ditames do due process of Law, para se constatar que o indiciado agira segundo os ditames da lex artis, carecendo sua conduta de tipicidade objetiva. (STM, RESE 0000039-47.2007.7.07.0007/PE, Rel. Min. Flávio Flores da Cunha Bierrenbach, 5ª Sessão, DJe 30/04/2010)
Na Espanha, o Tribunal Supremo também já sedimentou entendimento no sentido de que a atividade médica está “… sujeta a la «lex artis», siendo de destacar que el origen de la responsabilidad criminal médica no son errores de diagnóstico, ni aun falta de extraordinaria pericia (al no ser exigible la infalibilidad), sino que la culpa estriba en un comportamiento inadecuado a determinadas exigencias y medios...” (Sentencia de 5 de febrero de 1981).
Tudo que se disse, pode ser resumido com boa dose de acerto na doutrina fixada pelo Tribunal Supremo espanhol, nos seguintes termos: “1.º la no incriminación del error científico; 2.º tampoco se reputa punible la falta de extraordinaria pericia; 3.º la culpabilidad se radica en los casos en que el facultativo pudo evitar el comportamiento determinante del resultado lesivo; y 4.º la búsqueda de la responsabilidad médica punible debe realizarse huyendo de generalidades inmutables.” (Sentencia de 7 de octubre de 1986).
5.3.2 Paciente.
Para que o profissional possa seguir as normas da lex artis, é necessário que ele esteja munido do maior número possível de informações acerca do paciente, obtidas principalmente quando da anamnese. O paciente e seus familiares devem, sempre, munir o médico de toda e qualquer informação útil, de modo a possibilitar que o profissional realize da melhor forma possível o diagnóstico e prognóstico do paciente.
Existem casos em que os pacientes fornecem informações errôneas (como, por exemplo, afirmar que toma certo medicamento quando, na verdade, utiliza outro, de nome parecido) ou omitem informações necessárias (não informam, por exemplo, que são portadores de HIV ou alérgicos a determinadas medicações). Em casos desse jaez, não se pode falar em imprudência por parte do médico, eis que houve aí a autoexposição da vítima a perigo, como já falado acima, de forma a excluir o desvalor do resultado do tipo de injusto imprudente.
Também existem casos em que o paciente é portador de anomalia não passível de constatação nos primeiros exames ou mesmo após exames complementares. Pense-se no caso da própria vítima, já em idade adulta, não sabe ser portadora de alergia a determinado medicamento. Não se pode, igualmente, falar em imprudência do profissional em situações que tais, pois lhe falta a previsibilidade do resultado. Em casos desse tipo, inclusive, Carlos Roseo-Casabona adverte que:
... la «lex artis» es válida únicamente para situaciones «típicas» (p. ej., descritas en la literatura científica), pero no para casos excepcionales o «atípicos» […] en ocasiones (situaciones atípicas), la vinculación a ese deber de cuidado puede requerir un alejamiento de la «lex artis» generalmente aceptada en el caso concreto y recurrir al criterio de lo que haría el profesional prudente en una situación semejante. (2007, p. 229)
Merece destaque, ainda, os casos em que as peculiaridades individuais do paciente podem dificultar a obtenção do resultado médico pretendido, principalmente quando, já no decorrer do tratamento, emerjam situações, se não imponderáveis, ao menos incomuns. É o caso, verbi gratia, do paciente que, durante o tratamento, desenvolve alergia ao medicamento utilizado, alergia esta que lhe causa choque anafilático. Não há de se falar em tipo de injusto imprudente, pois se trata de resultado incomum ou, no mínimo, imprevisível, a afastar a imprudência. Nesses casos, diz Gilberto de Lima:
… mesmo havendo o dano físico tipificado pela norma penal, não incidirá em conduta criminosa o profissional de saúde. Primeiro, por obedecer a Lex Artis aplicável ao caso concreto; segundo por sua conduta não poder conter a censura interna, vez que agia com o cuidado objetivamente devido não sendo exigido, conseqüentemente, qualquer outro comportamento. (1998, p. 139).
Verifica-se, pois, “o médico deverá sujeitar-se a Lex Artis porém, há no mais das vezes, necessidade da colaboração e participação do paciente para tanto” (LIMA, 1998, p. 138). Qualquer conduta ou qualidade ignorada do paciente que possa interferir na qualidade e efetividade do tratamento[17] deve ser considerada quando da apuração do tipo de injusto imprudente, eis que possivelmente interferirá no desvalor do resultado do tipo de injusto.
5.3.3 Ciência.
O último elemento que deve ser levado em conta para análise da obediência à lex artis é a ciência.
O primeiro ponto diz respeito à atualidade dos conhecimentos científicos. É inadmissível que se queira imputar imprudência médica ad regressus, ou seja, considerar imprudente o médico que não aplicou um tratamento atual a um caso pretérito, quando tal tratamento não existia (LIMA, 1998, p. 140). Não se poderia considerar imprudente, por exemplo, os antigos tratamentos de lobotomia, eletrochoque, trepanação, etc., que, apesar de hoje serem considerados bárbaros e desacreditados, eram os tratamentos científicos aconselháveis, à época.
Contudo, o inverso também é verdadeiro. A lex artis impõe ao profissional o dever de atualização constante. Seria considerado no mínimo imprudente o médico que, nos dias atuais, utiliza-se a trepanação para curar a enxaqueca do paciente ou executasse uma lobotomia para tratar um esquizofrênico.
Um aspecto importante a ser levado em conta quando da apuração do dever objetivo de cuidado, a obediência à lex artis e o avanço científico, é ter-se em mente a situação concreta em que o profissional se encontra.
Sabe-se que as ciências da saúde têm sofrido rápido avanço científico nas últimas décadas. Novos conhecimentos, aparelhos, tratamentos, drogas e tantos outros benefícios foram alcançados nos últimos tempos, alargando por demais o leque de opções do profissional e paciente e, muitas vezes, suplantando métodos mais antigos.
Contudo, não se deve olvidar que tais avanços não alcançam a humanidade de forma igualitária. “Muitas conquistas obtidas pela ciência, aplicáveis à saúde não são acessíveis nem a grande parte dos médicos, nem aos pacientes, dado seu alto custo, complexidade e rápida evolução.” (LIMA, 1998, p. 140).
Por isso, quando da análise da obediência à lex artis, deve-se sempre levar em conta não a totalidade abstrata de técnicas, tratamento ou drogas disponíveis, e sim aqueles efetivamente aplicáveis ao caso concreto, “... consideradas as limitações do paciente, inclusive financeiras; além, é claro, da possibilidade de acesso aquele considerado recurso científico” (LIMA, 1998, p. 140).
Também os meios de atendimento devem ser considerados, principalmente em se tratando de serviço público. Não se pode exigir do médico que atenda com a mesma qualidade em um hospital privado, de ponta, e em um hospital público nos rincões do país, onde muitas vezes não possui sequer gaze a sua disposição.
O estado em que se encontra o paciente também deve ser levado em conta. Imagine-se o exemplo do médico rural, dado por Hans Wezel:
Un médico de campo que debe operar a un lesionado grave en el mismo lugar, debe trabajar con un instrumental, cuyo empleo seria en una clínica una grave infracción a las reglas del arte, y debe arriesgar la intervención con las habilidades limitadas de un médico de campo. Si, de acuerdo con un juicio prudente, existe cierta perspectiva de salvar al paciente mediante la intervención, el médico no actúa antijurídicamente, aunque la intervención fracase. (1956, p. 143).
Apenas se constatado, posteriormente, que um médico prudente poderia perceber que a intervenção imediata não era necessária, já que seria possível aguardar o traslado do enfermo para local melhor preparado, a operação por médico rural, insuficientemente equipado “... sería entonces una acción inadecuada a los hechos y antijurídica como lesión de la diligencia impuesta.” (WELZEL, 1956, p. 143).
Conclui-se, pois, que a distância real existente entre o avanço científico e tecnológico, da realidade de cada paciente, na sua individualidade, é de ser levado em conta pelo Direito, para concluir da responsabilidade ou não criminal do profissional da saúde (LIMA, 1998, p. 141).
6. Conclusão.
A responsabilidade penal dos profissionais da saúde é assunto ainda tormentoso para o Judiciário.
A simples transposição dos conceitos penais parece não abarcar a realidade rica e mutável que tais profissionais enfrentam cotidianamente quando do trato com o paciente.
Nesta seara, o estudo do tipo de injusto imprudente ganha relevo, eis que se trata da quase totalidade de casos envolvendo responsabilidade penal dos profissionais da área de saúde. E, em sendo a culpa conceituada como lesão do dever objetivo de cuidado, a noção de lex artis em muito auxilia os profissionais da cadeia de cuidar e operadores do Direito na busca de um parâmetro objetivo a fim de aferir se tal dever de cuidado foi ou não violado, no caso concreto.
Condições do profissional da saúde, do paciente e da ciência não podem ser olvidadas pelo Judiciário quando do julgamento de médicos, odontólogos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, fonoaudiólogos e etc., pois extremamente impactantes na configuração do tipo de injusto imprudente, sob pena de verdadeira e odiosa responsabilidade objetiva, vedada pela evolução dos direitos fundamentais e, via oblíqua, do Direito Penal.
Não age imprudentemente o profissional que observa, fielmente, a lex artis, as regras de seu ofício. Embora não seja necessariamente contrário ao dever de cuidado o comportamento que se afaste das normas, é sempre conforme ao dever de cuidado o comportamento que as observa.
Referências
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FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal: Parte Geral. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985.
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[1] Existe, na doutrina, forte controvérsia quanto à denominação da ciência jurídico-penal. Conquanto vários nomes já tenham sido sugeridos (“Direito protetor dos criminosos”, por Dorado Montero; “Direito repressivo”, por Puglia, “Direito de defesa social”, por Martínez, etc.), as expressões mais comumente utilizadas são “Direito Penal” e “Direito Criminal”. Não obstante toda a discussão doutrinária, as expressões serão utilizadas ao longo do texto de forma aleatória e sinônimas. Cf., quanto à discussão acerca da nomenclatura, BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 43 e ss, optando por Direito Penal; MIR PUIG, Santiago. Introducción a Las Bases Del Derecho Penal. 2 ed. Buenos Aires: B de F , 2003, p. 8 e ss, optando por Direito Criminal.
[2] Em verdade, a evolução e humanização do Direito Penal acompanham, em grande parte, a evolução dos Direitos Fundamentais e do Constitucionalismo. Sobre o tema, cf. VIANNA, Felipe Augusto Fonseca. Direitos Fundamentais e Competência de Reforma Constitucional: os limites materiais das emendas à Constituição. São Paulo: Baraúna, 2014, p. 35-47.
[3] DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Tomo I. São Paulo: Revista dos Tribunais; Portugal: Coimbra Editora, 2007, p. 63, com referências valiosas na nota 25. Próxima a definição do texto é o conceito de Roxin: são chamados bens jurídicos todos os dados, que são pressupostos de um convívio pacífico entre os homens, fundado na liberdade e na igualdade (Estudos de Direito Penal. Trad. Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 35). Acerca dos bens jurídicos, cf. artigo de minha autoria, onde o tema é analisado de maneira aprofundada: VIANNA, Felipe Augusto Fonseca. “Princípio da irrelevância penal do fato”, princípio da insignificância e crimes bagatelares: distinção necessária ou criação inoportuna?. Revista Jurídica do Ministério Público do Estado do Amazonas, Manaus, v. 14, p. 214-259, 2013.
[4] As considerações que fiz acima são todas tendo como base a doutrina hoje dominante. Por motivos de honestidade intelectual, entretanto, é de bom tom afirmar que, pessoalmente, não concordo que seja função do Direito Penal a tutela de bens jurídicos. Artigo ainda inédito, de minha autoria, tratará inteiramente do tema.
[5] Neste sentido a seguinte decisão: “No trânsito, deve-se imperar o princípio da confiança, no qual o agente motorista agirá seguindo as regras do respectivo código, esperando que terceiros vão, também, cumpri-las. Se o conjunto probatório aponta para o excesso de velocidade do motorista, mas exprime um comportamento temerário do pedestre, que atravessa fora da faixa de segurança e com o tráfego aberto para os veículos, não há como se falar em culpa do réu, prevalecendo a dúvida razoável em seu benefício, pois o movimento da vítima foge do padrão mediano.” (TJ/PR, ACR 4747815/PR, Rel. Des. Luiz Osorio Moraes Panza, 1ª Câmara Criminal, j. 09/10/2008).
[6] Cf., para uma análise detalhada acerca das chamadas “enciclopédias da ciência criminal” (o conjunto vastíssimo de disciplinas científicas que compartilham o crime como objeto), VIANNA, “Princípio da Irrelevância Penal do Fato”, op. cit., p. 231-241.
[7] “Quadros de Referência” são formas de se olhar para os fenômenos que orientam nossas percepções acerca de determinados fatos sociais (ZILNEY, Lisa Anne. Drugs: Policy, Social Costs, Crime, and Justice. Upper Saddle River: Prentice Hall, 2011, p. 3; VIANNA, Felipe Augusto Fonseca. A Influência da Mídia na Formação da Política de Drogas: O caso dos Estados Unidos da América. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 12 jun. 2014. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.48564&seo=1>. Acesso em 02 de out. de 2014.
[8] Subtrair o celular de outrem, por exemplo, é uma ação típica, pois se subsume ao tipo do art. 155 do Código Penal.
[9] Se alguém mata outrem em legítima defesa, não se pode falar em crime, pois apesar de a ação ser típica (matar alguém se subsume ao tipo do art. 121 do Código Penal), existe autorização legal para a conduta, nos casos de revide à agressão injusta (arts. 23, II, e 25, do Código Penal).
[10] Se alguém é menor de 18 anos, doente mental, etc., não se pode falar em crime, pois a pessoa não é imputável penalmente, eis que não possui condições pessoais de maturidade e sanidade que lhe permita entender o caráter ilegal do fato ou determinar-se de acordo com tal entendimento (arts. 26 e 27 do Código Penal). Da mesma forma, se um estrangeiro seguidor do islã chega ao Brasil e, poucos dias após sua chegada, casa-se com duas mulheres, supondo tal fato ser autorizado pela legislação brasileira, como em seu país de origem, não pratica o crime de bigamia (art. 235 do Código Penal), pois falta-lhe a consciência da ilicitude do fato. Por fim, se alguém pratica o crime a mando de outrem, que mantém o filho do agente como refém e sob ameaça de matá-lo, somente o libertando após o agente cometer o crime que o sequestrador o ordenou, não há de se falar em crime por parte do coagido, haja vista que não lhe era exigido comportamento diverso do por ele adotado. Punido pelo crime será o sequestrador que o coagiu (art. 22 do Código Penal).
[11] Cf., defendendo o modelo bipartido, SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: Parte Geral. 5 ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2012, p. 72-79. Pela defesa de um modelo tripartido, cf. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal: Parte Geral. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 148-151.
[12] Os vocábulos tradicionalmente utilizados pela lei e doutrina penal são “culpa” e “crime culposo”. Em respeito a esta tradição, o presente texto se utilizava, até o momento, de tais expressões. Contudo, neste ponto, onde o leitor certamente já angariou uma base teórica na Teoria do Crime, faz-se necessário utilizar o termo tecnicamente mais acertado e corrente na dogmática alemã. “Culpa” e “crime culposo” são expressões que devem ser evitadas por várias razões. Primeiro, “culpa”, modalidade subjetiva do tipo, pode ser confundida com a “culpa” que é elemento do conceito de crime, de forma que se exige falar em “culpa em sentido lato” e “culpa em sentido estrito”. Segundo, o termo induz complexidade no cidadão comum, para o qual “crime culposo” parece mais grave que “crime doloso”, além de, quando se falar que o agente agiu com “culpa”, induzir o cidadão a pensar que o agente é culpado do crime a ele imputado. Terceiro, o substantivo “imprudência” e o adjetivo “imprudente” exprimem de forma mais clara e com maior precisão a ideia central do elemento subjetivo ora analisado. Sobre o ponto, cf. SANTOS, Direito Penal, op. cit., p. 157.
[13] A doutrina mais moderna elenca, ao lado do dever de cuidado objetivo, a criação de risco não permitido. Cf., nesse sentido, SANTOS, Direito Penal, op. cit., p. 162-169; ROXIN, Claus. Derecho Penal: Parte General. Fundamentos. La estructura de la teoría del delito. Tomo I. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Dias y Garcia Colledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 999-1.011. Tal questão, não obstante a concordância pessoal deste autor com a tese, além de não trazer grande relevo prático na questão ora abordada, exigiria conhecimentos outros que não abordados no texto (principalmente de imputação objetiva), de forma que se preferiu seguir a doutrina tradicional e majoritária em nosso país.
[14] Um rol dos outros critérios, com comentários para cada um deles, pode ser visto em SANTOS, Direito Penal, op. cit., p. 164-169.
[15] Próxima é a definição de Heleno Fragoso, para o qual o princípio da confiança significa que “...os usuários da vida comum devem confiar que os demais respeitarão, por igual, as normas de prudência...” (Lições de Direito Penal: Parte Geral. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 233).
[16] No mesmo sentido se posiciona Hans Welzel: “El mismo tribunal ha establecido 'el principio de confianza en la consideración mutua en el tránsito': 'el conductor puede confiar en que los otros conductores se comporten de acuerdo con las reglas del tránsito, hasta que le sea conocible lo contrario, aplicando la diligencia necesaria” (Derecho Penal Alemán. Trad. Carlos Fontán Balestra. Buenos Aires: Roque Depalma Editor, 1956, p. 143).
[17] Questão das mais complicadas é avaliar a responsabilidade do profissional em caso de recusa de tratamento pelo paciente ou nos casos dos chamados atos piedosos (eutanásia passiva ou suicídio assistido). Em razão da complexidade das questões e da necessidade do domínio de matérias aqui não abordadas (em especial os direitos fundamentais a autodeterminação e liberdade de consciência, a dignidade da pessoa humana, Bioética e Biodireito, etc.), deixaremos de explanar aqui sobre tais casos. Basta-nos dizer, por ora, que o caso de morte ou lesão por recusa de tratamento, a nosso sentir, não pode ser imputado ao médico, pois se trata de autoexposição a perigo por parte da vítima, desde que ela possua o consentimento válido e informado das consequências advindas de sua conduta. Já no que se trata a eutanásia passiva ou suicídio assistido, entendemos que tais casos configuram, frente a legislação atual, homicídio doloso privilegiado (art. 121, §1º, do Código Penal), embora defendamos a revisão da lei, nesse ponto.
Mestrando em Criminal Justice pela California Coast University. Pós-graduado em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Amazonas. Professor das Escolas Atualizar Saúde e Protetiva Saúde. Autor de obra doutrinária e artigos jurídicos publicados em periódicos especializados.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VIANNA, Felipe Augusto Fonseca. Responsabilidade Penal do Profissional da Saúde: Tipo de Injusto Imprudente e a Lex Artis Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 nov 2014, 07:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41719/responsabilidade-penal-do-profissional-da-saude-tipo-de-injusto-imprudente-e-a-lex-artis. Acesso em: 27 dez 2024.
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