INTRODUÇÃO
A estabilidade nas relações jurídicas é um valor supremo e deve ser observado por todos os operadores do direito. A chamada segurança jurídica garante aos litigantes e a todos os destinatários das normas a tranqüilidade de não ser surpreendido com mudanças despropositadas nas decisões judiciais.
Trata-se de garantia constitucional, prevista expressamente como direito fundamental no artigo 5º, inciso XXXVI, da CF/88, o qual dispõe que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.
Como visto, o instituto da coisa julgada está umbilicalmente ligado ao princípio constitucional da segurança jurídica.
Em conceito sintético, a legislação brasileira, na chamada Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº. 4.657, de 04 de setembro de 1942), define como coisa julgada “Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso” (artigo 6º, § 3º). A matéria é regulada pelo Código de Processo Civil, no que toca aos processos individuais, nos artigos 467 a 474.
Também a doutrina aponta caminhos para a melhor compreensão do instituto ora em estudo, fazendo uma diferenciação entre coisa julgada formal e material. Nesse sentido, preciosas as lições de Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco (1994, página 305):
“A sentença não mais suscetível de reforma por meio de recursos transita em julgado, tornando-se imutável dentro do processo. Configura-se a coisa julgada formal, pela qual a sentença, como ato daquele processo não poderá ser reexaminada. É sua imutabilidade como ato processual, provindo da preclusão das impugnações e dos recursos. A coisa julgada formal representa a preclusão máxima, ou seja, a extinção do direito ao processo (àquele processo, o qual se extingue). O Estado realizou o serviço jurisdicional que se lhe requereu (julgando o mérito), ou ao menos desenvolveu as atividades necessárias para declarar inadmissível o julgamento do mérito.
A coisa julgada formal é pressuposto da coisa julgada material. Enquanto a primeira torna imutável dentro do processo o ato processual sentença, pondo-a com isso ao abrigo dos recursos definitivamente preclusos, a coisa julgada material torna imutáveis os efeitos produzidos por ela e lançados fora do processo. É a imutabilidade da sentença, no mesmo processo ou em qualquer outro, entre as mesmas partes. Em virtude dela, nem o juiz pode voltar a julgar, nem as partes a litigar, nem o legislador a regular diferentemente a relação jurídica.”
destaques no original
Portanto, a coisa julgada, em regra, vincula as partes que litigaram no processo ao que foi decido pelo Juízo na parte dispositiva da sentença.
Interessante notar que a coisa julgada, ao trazer estabilidade à sentença, confere ao julgado característica próxima à da lei abstrata. Na verdade, o juiz ao decidir um caso concreto aplica a norma prevista abstratamente a um caso concreto e, da mesma forma que a norma é (a princípio e enquanto não foi revogada) imutável, também o resultado dessa subsunção deverá ser permanente. Nesse sentido se posiciona MARINONI (2007, página 633):
“De fato, a coisa julgada nada mais é do que o reflexo da ordem jurídica abstrata no caso concreto; se a regra abstrata é (ao menos em princípio, e enquanto a necessidade social estiver de acordo com ela) imutável, também a regra concreta assim deve ser. E considerando que na sentença o juiz “concretiza” a norma abstrata, fazendo a lei do caso concreto, nada mais normal que essa lei também se mostre imutável.”
destaques no original
Para o reconhecimento da coisa julgada, é necessária a presença da chamada “tríplice identidade”, no sentido de que os processos tenham as mesmas partes, o mesmo pedido e a mesma causa de pedir.
COISA JULGADA NOS PROCESSOS COLETIVOS
Como é cediço, aos processos coletivos se aplica o que se denomina o microssistema processual coletivo, que tem como características a descodificação e aplicação de dispositivos previstos em leis diversas, mas que tratam da mesma temática (tutela coletiva, interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, etc).
Nesse sentido, para uma exata compreensão das regras processuais aplicáveis aos processos coletivos, deve o intérprete socorrer-se do CDC (Código de Defesa do Consumidor), LACP (Lei da Ação Civil Pública), CPC (Código de Processo Civil), e outros diplomas que permitam a aplicação harmônica das regras de processo sem descuidar das peculiaridades do processo coletivo.
Como já se sustentou, a coisa julgada tem o condão de tornar indiscutível o conteúdo da parte dispositiva de decisão judicial, a fim de prestigiar a segurança jurídica. Em regra, seus efeitos somente alcançam as partes litigantes (limites subjetivos).
Contudo, nos chamados processos coletivos, a sistemática é diversa.
No plano do direito positivo, a disciplina estabelecida pelos artigos 81, 103 e 104 do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) aponta de que forma o instituto da coisa julgada se aplica aos processos coletivos, mostrando, assim, importante diferença entre o processo civil coletivo e o individual. Assim dispõem referidos dispositivos:
Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.
Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:
I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;
II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;
III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.
(...)
Art. 103. Nas ações coletivas de que trata este código, a sentença fará coisa julgada:
I - erga omnes, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento valendo-se de nova prova, na hipótese do inciso I do parágrafo único do art. 81;
II - ultra partes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou classe, salvo improcedência por insuficiência de provas, nos termos do inciso anterior, quando se tratar da hipótese prevista no inciso II do parágrafo único do art. 81;
III - erga omnes, apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores, na hipótese do inciso III do parágrafo único do art. 81.
§ 1° Os efeitos da coisa julgada previstos nos incisos I e II não prejudicarão interesses e direitos individuais dos integrantes da coletividade, do grupo, categoria ou classe.
§ 2° Na hipótese prevista no inciso III, em caso de improcedência do pedido, os interessados que não tiverem intervindo no processo como litisconsortes poderão propor ação de indenização a título individual.
§ 3° Os efeitos da coisa julgada de que cuida o art. 16, combinado com o art. 13 da Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985, não prejudicarão as ações de indenização por danos pessoalmente sofridos, propostas individualmente ou na forma prevista neste código, mas, se procedente o pedido, beneficiarão as vítimas e seus sucessores, que poderão proceder à liquidação e à execução, nos termos dos arts. 96 a 99.
§ 4º Aplica-se o disposto no parágrafo anterior à sentença penal condenatória.
Art. 104. As ações coletivas, previstas nos incisos I e II e do parágrafo único do art. 81, não induzem litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada erga omnes ou ultra partes a que aludem os incisos II e III do artigo anterior não beneficiarão os autores das ações individuais, se não for requerida sua suspensão no prazo de trinta dias, a contar da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva.
Da simples leitura dos dispositivos acima se percebem grandes diferenças entre a coisa julgada nos processos individuais e coletivos.
Primeiramente, deve-se destacar que as peculiaridades do processo coletivo foram devidamente observadas de modo a não impedir, pura e simplesmente, a propositura de novas ações somente em razão de julgamentos definitivos anteriores.
Porém, para que se tenha um mínimo de segurança jurídica, o CDC trouxe diversas regras, basicamente aplicando em maior ou menor extensão os efeitos da coisa julgada de acordo com os interesses e direitos tutelados (difusos, coletivos e individuais homogêneos).
Com efeito, o ordenamento jurídico brasileiro estabeleceu limites para que a mesma ação coletiva não seja proposta inúmeras vezes; garantiu aos cidadãos lesados a possibilidade de discutir individualmente seus direitos; estabeleceu, também, que a coisa julgada é imutável tanto para substituto processual que propõe a ação coletiva quanto para os co-legitimados que não ajuizaram a ação.
Dessa forma, na hipótese de igualdade de ações coletivas, poderá o réu utilizar medidas processuais adequadas para evitar decisões judiciais conflitantes, tais como alegações de litispendência e de coisa julgada, nos termos do art. 301, incisos I a III do CPC.
Com efeito, a doutrina é unânime em afirmar que no âmbito dos processos coletivos, não se exige a tríplice identidade (pedido, causa de pedir e partes) para a configuração da litispendência ou coisa julgada, como ocorre em processos individuais (artigo 301, §2º, do Código de Processo Civil), bastando a identidade de pedido e de causa de pedir. Nesse sentido, veja-se a lição de DIDIER (2008, páginas 178-179):
“A identidade de parte autora é irrelevante para a configuração da litispendência coletiva (no caso da ação coletiva passiva, essa irrelevância dirá respeito ao pólo passivo).
Esse elemento fica subjugado à legitimação concorrente e disjuntiva, uma vez que, cabe aos legitimados ope legis, por exemplo, pelo inciso LXX, do art. 5º da CF/88, cabe agir como se fossem o próprio titular do direito, em nome próprio, independentemente dos demais co-legitimados, sendo considerados juridicamente a “mesma parte”. Não importa aferir quem está “capitaneando” o litígio, sendo iguais as pretensões externadas no pedido e idênticos os elementos da causa de pedir configurar-se-á duplicidade de litispendência. Em resumo: em causas coletivas, não se exige a identidade de parte autora para a configuração da litispendência; basta a identidade de pedido e da causa de pedir. A exigência da tríplice identidade para a configuração da litispendência não se aplica no âmbito da tutela coletiva.”
Como já referido, a extensão subjetiva do julgado nas ações coletivas muda conforme o direito que se pretendeu defender coletivamente (difuso, coletivo ou individual homogêneo).
Em se tratando de interesses difusos, a sentença produzirá efeitos erga omnes, exceto quando o julgamento de improcedência se dá por insuficiência de provas; no caso de interesse coletivo, a sentença faz coisa julgada inter partes apenas em relação ao grupo ou categoria representada naquela ação; por fim, quando o direito ou interesse for de natureza individual homogênea, a sentença produz efeitos erga omnes quando julgada procedente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Portanto, pode-se concluir com tranqüilidade que a coisa julgada nas ações coletivas possui contornos jurídicos distintos daquela verificada no âmbito dos processos individuais, sobretudo no que se referem aos limites subjetivos, às hipóteses de não ocorrência de acordo com as provas produzidas no processo coletivo e com o interesse ou direito buscado coletivamente (difuso, coletivo ou individual homogêneo).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 10ª edição. São Paulo. Malheiros, 1994.
DIDIER JR, Fredie; ZANETI JR, Hermes. Curso de Direito Processual Civil – Volume 4. 3ª Edição. Salvador: Juspodivm, 2008.
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil – Volume 2. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.
Procurador Federal atuante na cidade de Umuarama - PR. Aluno do curso de Especialização em Direito do Estado da Universidade Estadual de Londrina.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, Menahem David Dansiger de. Considerações sobre a coisa julgada nos processos coletivos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 nov 2014, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41927/consideracoes-sobre-a-coisa-julgada-nos-processos-coletivos. Acesso em: 23 dez 2024.
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