SUMÁRIO: PODER DE POLÍCIA SANITÁRIA EXERCIDO PELA ANVISA. PROIBIÇÃO DO USO DE MEDICAMENTOS PARA EMAGRECER. DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE X DIREITO À LIBERDADE INDIVIDUAL.
INTRODUÇÃO
O artigo aborda a discussão acerca do conflito entre direitos fundamentais e políticas públicas com a liberdade individual.
Sabe-se que, após três anos banidos do mercado, o plenário do Senado derrubou, recentemente, a resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que proibia o uso de remédios para emagrecer produzidos com base nas substâncias anfepramona, femproporex e mazindol. A proposta também libera a venda de medicamentos que contenham a substância sibutramina, seus sais e isômeros, bem como intermediários.
É boa notícia para a democracia, que mostra seu funcionamento contra uma medida autoritária da Anvisa? Ou é um óbice à atuação da ANVISA, que age objetivando materializar as garantias e direitos constitucionais de acesso à saúde, por meio do exercício fiscalizador sanitário de toda a comercialização, produção, importação, manipulação, distribuição e venda de produtos, bens e serviços?
Pretendemos analisar ambas as posições.
DESENVOLVIMENTO
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária-ANVISA, no uso de suas atribuições legais, concluiu que o uso de três substâncias anorexígenas (anfepramona, femproporex e mazindol) trazia riscos inaceitáveis à saúde humana, razão pela qual determinou a proibição de sua produção e comercialização no país. De igual sorte, a ANVISA, após o exame de dados nacionais e internacionais sobre o uso da sibutramina, concluiu pela necessidade de determinar limitações mais cuidadosas para sua prescrição a pacientes brasileiros.
A Lei nº 6.360/76 determinou que os produtos submetidos ao regime administrativo-sanitário, dentre os quais os medicamentos de uso humano, não poderiam ser produzidos ou comercializados no país antes da obtenção do devido registro no Ministério da Saúde. Veja-se, a propósito, o disposto no artigo 12 da mencionada lei:
Art. 12 - Nenhum dos produtos de que trata esta Lei, inclusive os importados, poderá ser industrializado, exposto à venda ou entregue ao consumo antes de registrado no Ministério da Saúde.
Ao disciplinar especificamente os medicamentos, o artigo 16, II, do mesmo diploma legal foi expresso ao trazer como requisito para a concessão do registro a demonstração científica da segurança e eficácia do produto, como se vê na redação abaixo trazida:
Art. 16. O registro de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos, dadas as suas características sanitárias, medicamentosas ou profiláticas, curativas, paliativas, ou mesmo para fins de diagnóstico, fica sujeito, além do atendimento das exigências próprias, aos seguintes requisitos específicos: (...)
II - que o produto, através de comprovação científica e de análise, seja reconhecido como seguro e eficaz para o uso a que se propõe, e possua a identidade, atividade, qualidade, pureza e inocuidade necessárias;
As áreas responsáveis pela farmacovigilância na Agência examinaram dados técnicos disponíveis referentes aos medicamentos anorexígenos à base de anfepramona, femproporex e mazindol, concluindo que não havia prova suficiente quanto à segurança de seu uso, de acordo com as normas regulamentares exigidas para a concessão de registro sanitário no país. De fato, assim se manifestou a área técnica da ANVISA em relatório que embasou a edição da RDC nº 52/2011, verbis:
“1. Os medicamentos contendo as substâncias anfepramona, femproporex e mazindol não têm sua eficácia e segurança comprovada com dados robustos, provenientes de estudos clínicos bem delineados (dados confirmados pelo Parecer do Grupo assessor de Estudos sobre Medicamentos Anorexígenos Anvisa, 2000; pela Nota Técnica sobre Eficácia e Segurança dos Medicamentos Inibidores do Apetite/Anvisa, 2011 e pelo Relatório do Painel Técnico Internacional sobre Eficácia e Segurança dos Medicamentos Inibidores do Apetite/Anvisa, 2011).”
No que toca à substância sibutramina, a RDC nº 52/2011 inicialmente se limitou a ratificaro limite máximo para sua prescrição diária trazido pela RDC nº 25/2010, de forma a criar uma margem mínima de segurança para os seus potenciais usuários.
A norma regulatória instituiu, no entanto, um sistema destinado a incrementar os dados disponíveis sobre o uso da sibutramina, bem como tornar evidentes ao usuário os riscos identificados com o consumo da substância.
Será que os mesmos indivíduos que escolhem governantes não possuem capacidade para determinar os medicamentos que irão ser benéficos ou não a eles? Seria a regulamentação sanitária da Anvisa uma afronta às liberdades individuais, uma invasão do governo na esfera privada contrária ao conceito de democracia?
Para quem se posiciona contrariamente ao poder regulamentar exacerbado concedido à Anvisa, esse tipo de atuação arbitrária, como a retirada de medicamentos para emagrecer do mercado, macula a essência do indivíduo, agride o livre-arbítrio e a capacidade de decisão do ser humano.
Ocorre que ainda que se considere uma invasão às liberdades individuais, a ANVISA tem como finalidade e atribuições o controle sanitário de produtos e serviços relevantes para a saúde coletiva, bem como a proteção da saúde pública, como visto em especial nos artigos 6º e 8º da Lei nº 9.782/99:
Art. 6º A Agência terá por finalidade institucional promover a proteção da saúde da população, por intermédio do controle sanitário da produção e da comercialização de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, dos processos, dos insumos e das tecnologias a eles relacionados, bem como o controle de portos, aeroportos e de fronteiras.
Art. 8º Incumbe à Agência, respeitada a legislação em vigor, regulamentar, controlar e fiscalizar os produtos e serviços que envolvam risco à saúde pública.
§ 1º Consideram-se bens e produtos submetidos ao controle e fiscalização sanitária pela Agência:
(...)
I - medicamentos de uso humano, suas substâncias ativas e demais insumos, processos e tecnologias;
A qualificação da saúde como direito fundamental deriva de norma constitucional e legal, como visto nos artigos 196 da CF/88 e 2º da Lei n.º 8.080, de 19/09/90, cuja redação é respectivamente trazida abaixo:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Art. 2º - A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado promover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.
Ademais, a ANVISA é a pessoa jurídica de direito público que sucedeu o Ministério da Saúde na competência para regulamentar o registro e comercialização de medicamentos no Brasil, tendo como premissa básica garantir a segurança e a eficácia terapêutica de seu uso pelos potenciais pacientes, como visto nos artigos 6º, da Lei nº 6.360/76 e 7º, IX, da Lei nº 9.782/99, respectivamente trazidos adiante:
Art. 6º - A comprovação de que determinado produto, até então considerado útil, é nocivo à saúde ou não preenche requisitos estabelecidos em lei implica na sua imediata retirada do comércio e na exigência da modificação da fórmula de sua composição e nos dizeres dos rótulos, das bulas e embalagens, sob pena de cancelamento do registro e da apreensão do produto, em todo o território nacional.
Parágrafo único. É atribuição exclusiva do Ministério da Saúde o registro e a permissão do uso dos medicamentos, bem como a aprovação ou exigência de modificação dos seus componentes.
Art. 7º Compete à Agência proceder à implementação e à execução do disposto nos incisos II a VII do art. 2º desta Lei, devendo:
(...)
IX - conceder registros de produtos, segundo as normas de sua área de atuação;
Interessante opinião sobre o Poder Normativo do Executivo, em especial das chamadas agências reguladoras na atual quadra do Direito Nacional, é aquela trazida por JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO, verbis:
"A natureza e os fins que inspiraram a criação das agências reguladoras não poderiam subtrair-lhes o poder jurídico de produzir algumas normas jurídicas de caráter geral, abstrato e impessoal, com carga de densidade apropriada ao cumprimento dos objetivos específicos das entidades. Afinal, não é difícil entender que, para regular certos setores da vida social, quer relativos à prestação de serviços públicos, quer ligados a atividades privadas de relevância pública, é absolutamente insuperável a necessidade de serem editados atos que, sem a menor dúvida, terão incidência genérica sobre quantos estejam, de alguma forma, situados no âmbito do setorsuscetível de regulação.
Tais atos, inseridos no poder normativo das agências, é que têm suscitado algumas resistências quanto à viabilidade jurídica e quanto à natureza. Poder normativo, em sentido geral, é a capacidade atribuída a determinado órgão ou pessoa da Administração no sentido de expedir normas com carga de incidência geral, abstrata e impessoal. A ordem jurídica confere essa capacidade a inúmeros órgãos e pessoas, e estes podem exercê-la por meio de diversas espécies de atos. Problema de outra ordem é o relativo à extensão da carga de incidência, ou seja, aos limites dentro dos quais podem ser expedidas as normas gerais, tendo em vista a existência de determinados parâmetros situados em norma de estatura superior. Trata-se, pois, apenas de verificar o princípio da adequação normativa diante do sistema de hierarquia das normas jurídicas - sistema esse que, afinal, serviu de base para a formação da pirâmide normativa de Kelsen.
No tocante às agências reguladoras, o poder normativo emana das competências que lhes foram outorgadas na lei. (...)
Analisando tais competências, não seria mesmo possível concebê-las sem admitir que todas as agências mereceram o poder de editar normas gerais relacionadas ao setor a que foram direcionadas através da respectiva disciplina jurídica. Com efeito, somente dotado de poder normativo poderá órgão ou pessoa administrativa implementar políticas, regular serviços, expedir normas sobre prestação de serviços, promover regulação, etc."
Ademais, superou-se a idéia de que o poder regulamentar encontrava-se limitado à repetição de palavras já trazidas pela lei regulamentada (posição que, em verdade, tornava o regulamento absolutamente inócuo).
De fato, a doutrina administrativista moderna preza por conceitos como o da juridicidade da Administração Pública que, não prescindindo em momento algum da leiformal para o exercício da competência administrativa, alarga sensivelmente o escopo da atividade normativa do Poder Executivo.
ALMIRO DO COUTO E SILVA e CAIO TÁCITOsobre o assunto, respectivamente:
“[A] noção de que a Administração Pública é meramente aplicadora das leis é tão anacrônica e ultrapassada quanto a de que o direito seria apenas um limite para o administrador. Por certo, não prescinde a Administração Pública de uma autorização legal para agir, mas, no exercício de competência legalmente definida, têm os agentes públicos, se visualizado o Estado em termos globais, um dilatado campo de liberdade para desempenhar a função formadora, que é hoje universalmente reconhecida ao Poder Público”.
“Regulamentar não é somente reproduzir analiticamente a lei, mas ampliá-la e completá-la, segundo o seu espírito e o seu conteúdo, sobretudo nos aspectos que a própria lei, expressa ou implicitamente, outorga à esfera regulamentar”.
Ainda, DIOGO FIGUEIREDO DE MOREIRA NETOe MARÇAL JUSTEN FILHO, tratam do Poder Normativo da Administração Pública, verbis:
“O poder normativo das agências reguladoras se enquadra como uma variedade de delegação, denominada pela doutrina de deslegalização, em que o que se pretende é atender a necessidade de uma normatividade essencialmente técnica com um mínimo de influência político-administrativa do Estado em certos setores de prestação de bens e de serviços públicos ou não”.
“A atuação inovadora do Executivo, por via regulamentar, reflete uma necessidade relacionada à produção normativa. O Legislativo não dispõe de condições para formular todas as soluções. A lei é um esquema normativo que demanda complementação. O regulamento produzido pelo Executivo exerce essa função complementar, visando a assegurar a geração da melhor solução possível. Ademais disso, o argumento da mera reiteração dos termos da lei conduz à inutilidade da regra constitucional. Excluindo-se a possibilidade de o regulamento conter inovação em face da lei, o resultado seria sua inutilidade. Se todas as inovações à ordem jurídica devessem estar contidas no corpo da própria lei, então não haveria maior função para o regulamento.”
CONCLUSÃO
Com a decisão do Senado derrubando a resolução nº 52 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que proibia o uso de remédios para emagrecer, em votação, os senadores aprovaram decreto legislativo, o qual entra em vigor no momento de sua publicação no Diário Oficial sem passar pelo crivo da sanção presidencial.
O projeto para liberar o consumo de medicamentos proibidos pela Anvisa foi apresentado pelo deputado Beto Albuquerque (PSB-RS).
Para os os defensores da ciência é boa notícia, pois vários médicos tinham se colocado contrários à arbitrariedade da Anvisa, alegando:
“Eles questionam dependência e efetividade. Um medicamento não fica por 40 anos à venda se não é eficiente, mesmo que a gente pense estritamente em leis de mercado. Vários pacientes meus tiveram ganho de peso, e isso é arriscado. A obesidade traz riscos sérios à saúde, como dislipidemia [excesso de lipídios no sangue], problemas cardiovasculares e diabetes e alguns cânceres, como o de intestino e de mama."
“Nenhuma pessoa pode ser forçada a ser rica ou saudável contra a própria vontade. Se alguém decide fumar ou beber, isso é um problema dessa pessoa, não do estado Por que o senhor considera o excesso de atos regulatórios por parte do governo uma afronta ao cidadão e ao país?”
“… seja no que diz respeito ao uso de medicamentos, ao fumo ou ao consumo de comidas gordurosas. Essa decisão pertence à subjetividade, à alma de cada um. O filósofo inglês John Locke, no século XVII, já dizia que nenhuma pessoa pode ser forçada a ser rica ou saudável contra a sua vontade. Os homens devem ser entregues à própria consciência. Segundo, porque, ao tentar disciplinar a vida dos cidadãos, o governo começa a impor a sua noção de bem. Se alguém decide fumar ou beber, isso é um problema exclusivamente dessa pessoa, não é um problema do estado. Quando o estado se apodera do monopólio da virtude, inicia um flerte inadmissível com.o autoritarismo, danoso para qualquer sociedade há uma intenção velada de impor um padrão de conduta às pessoas. “
"Os governos existem para nos proteger uns contra os outros; o governo vai além de seus limites quando decide proteger-nos de nós mesmos." (Ronald Reagan)
Nos resta aguardar o deslinde da questão, pois as posições são diversas. Alguns defendem a afronta à democracia e liberdade individual promovida pelas regulamentações da Anvisa. Já outros entendem que o direito à saúde deve ser resguardado pela agência reguladora que detém esse poder preventivo e fiscalizador.
BIBLIOGRAFIA
- APPIO, Eduardo. Controle judicial das políticas públicas no Brasil. Curitiba: Juruá, 2009.
- MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2008.
- CUNHA JUNIOR, Dirley da. Controle Judicial das omissões do Poder Público: em busca da dogmática constitucional transformadora à luz do direito fundamental à efetivação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 2004.
- CARVALHO FILHO, José dos Santos. A deslegalização no poder normativo das agências reguladoras, in Interesse Público, Ano VII, nº 35, janeiro/fevereiro de 2006.
- COUTO E SILVA, Almiro do. Poder Discricionário no Direito Administrativo Brasileiro. In.: Revista de Direito Administrativo. 179/180.
- CAIO TÁCITO. Temas de Direito Público, vol. 1º, Renovar, 1997.
Procuradora Federal
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SIXTO, Luisa Webber Troian. O exercício do poder de polícia sanitária em contraste com a liberdade individual Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 nov 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41972/o-exercicio-do-poder-de-policia-sanitaria-em-contraste-com-a-liberdade-individual. Acesso em: 23 dez 2024.
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