O presente artigo tem por escopo realizar uma análise acerca dos elementos que pautaram o julgamento do RE 580.963 pelo Supremo Tribunal Federal e demonstrar, com base em dados obtidos pelo IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o risco de tal decisão representar um incentivo ao trabalho informal no Brasil.
Publicada em 14 de novembro de 2013 e transitada livremente em julgado em 13 de fevereiro de 2014, a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal nos autos do RE 580.963 tem todos os elementos suficientes para gerar grande impacto na economia brasileira e representa o surgimento de uma nova regra, criada pelo Poder Judiciário, para a concessão de Benefício de Amparo Social ao Idoso previsto na pela Lei Federal nº 8.743/93 - Lei Orgânica de Assistência Social - LOAS.
A Lei 8.743[1], de 07 de dezembro de 1.993, tem por principal objetivo dispor sobre a organização da Assistência Social, considerando a mesma como direito o cidadão e dever do Estado.
Em seu artigo 1º, a mencionada Lei ainda salienta que a Assistência Social é “Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas.”
Em que pese os importantes avanços introduzidos por tal Lei, a qual, ressalte-se, foi constantemente modificada ao longo dos anos, iremos nos limitar, para fins de melhor compreensão do tema proposto nesse artigo, à análise do benefício de prestação continuada à pessoa idosa
A atual redação do citado texto legal assim dispõe em seu art. 2º:
Art. 2o A assistência social tem por objetivos: (Redação dada pela Lei nº 12.435, de 2011)
(...)
e) a garantia de 1 (um) salário-mínimo de benefício mensal à pessoa com deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família; (Incluído pela Lei nº 12.435, de 2011)
Regulamentando tal objetivo, pedimos vênia para transcrevermos o constante no artigo 20 da Lei 8.742/93:
Art. 20. O benefício de prestação continuada é a garantia de um salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família. (Redação dada pela Lei nº 12.435, de 2011)
§ 1o Para os efeitos do disposto no caput, a família é composta pelo requerente, o cônjuge ou companheiro, os pais e, na ausência de um deles, a madrasta ou o padrasto, os irmãos solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores tutelados, desde que vivam sob o mesmo teto. (Redação dada pela Lei nº 12.435, de 2011)
§ 3o Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo. (Redação dada pela Lei nº 12.435, de 2011)
§ 4o O benefício de que trata este artigo não pode ser acumulado pelo beneficiário com qualquer outro no âmbito da seguridade social ou de outro regime, salvo os da assistência médica e da pensão especial de natureza indenizatória. (Redação dada pela Lei nº 12.435, de 2011)
(OMISSIS)
§ 8o A renda familiar mensal a que se refere o § 3o deverá ser declarada pelo requerente ou seu representante legal, sujeitando-se aos demais procedimentos previstos no regulamento para o deferimento do pedido.(Incluído pela Lei nº 9.720, de 1998)
Da simples leitura do texto legal podemos extrair importantes elementos acerca do benefício de prestação continuada, sendo certo que o mesmo, além dos incapazes, visa proteger os idosos com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família.
Podemos verificar ainda que o legislador teve o cuidado de definir objetivamente, no § 3º do art. 20 da Lei 8.742/93, o conceito do que seria a incapacidade de prover manutenção da pessoa com deficiência ou idosa, determinandoexpressamente que tal situação estaria constatada nas hipóteses em que a renda mensal per capita da família fosse inferior a ¼ (um quarto) do salário-mínimo.
Especificamente sobre esse critério adotado pelo legislador, cabe-nos ressaltar o julgamento da Reclamação 4.374/PE, por meio da qual o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade, sem pronúncia de nulidade, do art. 20, §3º da Lei 8.742/93, por entender que o conceito legal para avalição de miserabilidade sofreu um “processo de inconstitucionalizaçãodecorrente de notórias mudanças fáticas (políticas, econômicas e sociais) ejurídicas (sucessivas modificações legislativas dos patamares econômicosutilizados como critérios de concessão de outros benefícios assistenciaispor parte do Estado brasileiro).[2]
Em que pese às inúmeras particularidades trazidas no bojo do julgamento da Rcl 4.374/PE, as quais por si só merecem um estudo específico, entendemos que não alteração não se mostra relevante para o presente trabalho, conforme se demonstrará adiante, motivos pelo qual não nos alongaremos sobre o tema.
Feitas tais considerações sobre o previsto na Lei 8.742/93, devemos trazer à baila a previsão constante no Estatuto do Idoso – Lei Federal nº 10.741/2003[3], objeto de análise do STF no RE 580.963.
O artigo 34 do Estatuto do Idoso dispõe, in verbis:
Art. 34.Aos idosos, a partir de 65 (sessenta e cinco) anos, que não possuam meios para prover sua subsistência, nem de tê-la provida por sua família, é assegurado o benefício mensal de 1 (um) salário-mínimo, nos termos da Lei Orgânica da Assistência Social – Loas. (Vide Decreto nº 6.214, de 2007)
Parágrafo único. O benefício já concedido a qualquer membro da família nos termos do caput não será computado para os fins do cálculo da renda familiar per capita a que se refere a Loas.
A controvérsia analisada pelo Pretório Excelso diz respeito à previsão constante no parágrafo único do artigo 34 da Lei 10.741/93, especificamente no tocante a autorização para que o benefício assistencial já concedido a qualquer membro da família não seja computado para fins do cálculo da renda familiar per capita definida na LOAS.
Ao se debruçar sobre a constitucionalidade do mencionado dispositivo, o Supremo Tribunal Federal entendeu que não há qualquer justificativa aceitável para ausência de previsão legal da também exclusão dos benefícios assistenciais recebidos por deficiente e de previdenciários, no valor de até um salário mínimo, percebido por idoso no cômputo da renda familiar per capita constante na Lei 8.742/93
Em sendo assim, o STF entendeu que o texto legal sob análise representa uma discriminação injusta dos portadores de deficiência em relação aos idosos, bem como dos idosos beneficiários da assistência social em relação aos idosos titulares de benefícios previdenciários no valor de até um salário mínimo, configurando-se, portanto, em omissão parcial inconstitucional.
Desse modo, foi declarada a inconstitucionalidade parcial, sem pronúncia de nulidade, do artigo 34, parágrafo único, da Lei 10.741/2003:
Benefício assistencial de prestação continuada ao idoso e ao deficiente. Art. 203, V, da Constituição. A Lei de Organização da Assistência Social (LOAS), ao regulamentar o art. 203, V, da Constituição da República, estabeleceu os critérios para que o benefício mensal de um salário mínimo seja concedido aos portadores de deficiência e aos idosos que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família. 2. Art. 20, § 3º, da Lei 8.742/1993 e a declaração de constitucionalidade da norma pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 1.232. Dispõe o art. 20, § 3º, da Lei 8.742/93 que: “considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo”. O requisito financeiro estabelecido pela Lei teve sua constitucionalidade contestada, ao fundamento de que permitiria que situações de patente miserabilidade social fossem consideradas fora do alcance do benefício assistencial previsto constitucionalmente. Ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.232-1/DF, o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade do art. 20, § 3º, da LOAS. 3. Decisões judiciais contrárias aos critérios objetivos preestabelecidos e processo de inconstitucionalização dos critérios definidos pela Lei 8.742/1993. A decisão do Supremo Tribunal Federal, entretanto, não pôs termo à controvérsia quanto à aplicação em concreto do critério da renda familiar per capita estabelecido pela LOAS. Como a Lei permaneceu inalterada, elaboraram-se maneiras de contornar o critério objetivo e único estipulado pela LOAS e de avaliar o real estado de miserabilidade social das famílias com entes idosos ou deficientes. Paralelamente, foram editadas leis que estabeleceram critérios mais elásticos para concessão de outros benefícios assistenciais, tais como: a Lei 10.836/2004, que criou o Bolsa Família; a Lei 10.689/2003, que instituiu o Programa Nacional de Acesso à Alimentação; a Lei 10.219/01, que criou o Bolsa Escola; a Lei 9.533/97, que autoriza o Poder Executivo a conceder apoio financeiro a municípios que instituírem programas de garantia de renda mínima associados a ações socioeducativas. O Supremo Tribunal Federal, em decisões monocráticas, passou a rever anteriores posicionamentos acerca da intransponibilidade dos critérios objetivos. Verificou-se a ocorrência do processo de inconstitucionalização decorrente de notórias mudanças fáticas (políticas, econômicas e sociais) e jurídicas (sucessivas modificações legislativas dos patamares econômicos utilizados como critérios de concessão de outros benefícios assistenciais por parte do Estado brasileiro). 4. A inconstitucionalidade por omissão parcial do art. 34, parágrafo único, da Lei 10.741/2003. O Estatuto do Idoso dispõe, no art. 34, parágrafo único, que o benefício assistencial já concedido a qualquer membro da família não será computado para fins do cálculo da renda familiar per capita a que se refere a LOAS. Não exclusão dos benefícios assistenciais recebidos por deficientes e de previdenciários, no valor de até um salário mínimo, percebido por idosos. Inexistência de justificativa plausível para discriminação dos portadores de deficiência em relação aos idosos, bem como dos idosos beneficiários da assistência social em relação aos idosos titulares de benefícios previdenciários no valor de até um salário mínimo. Omissão parcial inconstitucional. 5. Declaração de inconstitucionalidade parcial, sem pronúncia de nulidade, do art. 34, parágrafo único, da Lei 10.741/2003. 6. Recurso extraordinário a que se nega provimento.
(RE 580963, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 18/04/2013, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-225 DIVULG 13-11-2013 PUBLIC 14-11-2013) [4]
Em que pese a criteriosa análise do STF sobre a questão constitucional existente na hipótese, não há como perdermos de vista o fato de que decisão proferida pelo Pretório Excelso, além de gerar grave impacto econômico, vez que o critério para a aferição da miserabilidade prevista n LOAS foi sensivelmente flexibilizado, pode representar ainda um incentivo ao trabalho informal e a ausência de filiação de inúmeras pessoas à Previdência Social.
A título de exemplo, e no sentido de facilitar o entendimento do leitor, tomaremos como base a situação hipotética de dois vizinhos, sendo que ambas as famílias são compostas por 2 (dois) membrosidosos – casais.
Apenas para ilustrarmos a dimensão da problemática, cumpre ressaltar, com base nos dados obtidos no Censo 2010[5] pelo IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística queo país conta com aproximadamente 16.757.238 (dezesseis milhões e setecentos e cinquenta e sete mil e duzentas e trinta e oito) famílias que são compostas por duas pessoas.
Na casa nº 1, a renda familiar é de um salário mínimo advinda da aposentadoria por tempo de contribuição do homem, decorrente de atividade laboral formal e recolhimento das contribuições previdenciárias exigidas pela legislação vigente, sendo que a mulher sempre desempenhou atividade informal, sem recolhimento de contribuições à Previdência Social, estando agora impossibilitada de trabalhar em consequência de sua idade.
Na casa de nº 2, a renda familiar é composta de dois salários mínimos decorrentes de duas aposentadorias por tempo de contribuição, sendo que tanto o homem como a mulher recolheram as contribuições previdenciárias exigidas ao longo da vida.
Até o julgamento do RE 580.963, a mulher da casa nº 1 não fazia jus a concessão do benefício de Amparo Social ao Idoso, uma vez que a renda de seu marido – decorrente de benefício previdenciário no valor mínimo, não poderia ser excluída do cômputo previsto na Lei 8.742/93. Desse modo, considerando que a mulher nunca havia se preocupado em filiar-se e contribuir para o regime da Previdência Social ao longo de toda a sua vida, a renda do casal permaneceria em um salário mínimo.
Entretanto tal realidade foi bruscamente alterada pela decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal. Nesse momento, a mulher da casa nº 1 passa a ter direito a receber o benefício previsto na LOAS, já que o benefício recebido por seu esposo não integra mais o cálculo que visa apurar a miserabilidade.
Ressalte-se que nesse caso o valor da renda per capita perde totalmente a importância, daí a desnecessidade de analisarmos nesse estudo os efeitos da Rcl. 4.374/PE, uma vez que, excluída a renda do marido, a renda da família, para fins de cálculo, se torna ZERO.
Com efeito, a casa nº 1, onde apenas um integrante trabalhou formalmente e contribuiu aos cofres públicos, passa a ter renda idêntica ao da casa nº 2, na qual ambos os integrantes sempre trabalharam formalmente e se preocuparam em recolher as devidas contribuições previdenciárias.
Sem dúvida não estamos diante de uma situação isonômica, restando claro que a decisão do STF, sob o prisma de extirpar do ordenamento jurídico uma discriminação injusta, acabou por ocasionar um quadro de desigualdade ainda mais patente, representando um grave desrespeito àquelas pessoas que ao longo da vida se sacrificaram e recolheram as contribuições previdenciárias devidas para que ao final da vida pudessem de gozar de uma renda determinada.
Com o devido acatamento às opiniões contrárias, a decisão proferida pelo Pretório Excelso apresenta, conforme demonstrando em um exemplo prático, diversos elementos que podem incentivar o trabalho informal e o não filiação do trabalhador ao Regime de Previdência Social, sobretudo considerando o valor do benefício previsto na LOAS, tornando-se algo extremamente temerário para o futuro das finanças públicas.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. DOU 05.10.1988.
BRASIL. Lei n. 8.742 de 07 de dezembro de 1993, Dispõe sobre a organização da Assistência Social e dá outras providências. DOU 08.12.1998.
BRASIL. Lei n. 10.741 de 1º de outubro de 2003, Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências. DOU 03.10.2003.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, disponível em www.stj.jus.br, acesso em 05/11/2014.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, disponível em www.stf.jus.br, acesso em 05/11/2014.
[1]http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8742.htm
[2]http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2382733
[3]http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.741.htm
[4] http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28RE%24%2ESCLA%2E+E+580963%2ENUME%2E%29+OU+%28RE%2EACMS%2E+ADJ2+580963%2EACMS%2E%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/a9vjb2p
[5]ftp://ftp.ibge.gov.br/Censos/Censo_Demografico_2010/Familias_e_Domicilios/tab1_1.pdf
Procurador Federal, lotado na Procuradoria Federal no Estado de Minas Gerais. Ex-Procurador-Chefe da Procuradoria Federal no Estado de Rondônia. Ex-Procurador-Chefe da Procuradoria Federal junto ao Instituto Federal de Rondônia - IFRO.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Gustavo Rosa da. O julgamento do RE 580.963 e os riscos do incentivo a informalidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 nov 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41979/o-julgamento-do-re-580-963-e-os-riscos-do-incentivo-a-informalidade. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Maurício Sousa da Silva
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Por: DESIREE EVANGELISTA DA SILVA
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