1. Introdução
A (im)possibilidade de a administração inovar o ordenamento jurídico, através de regulamentos autônomos, enfrenta severas críticas da doutrina pátria, sendo freqüentemente reputada inconstitucional. Assim, o presente artigo pretende, de maneira breve, analisar decisões das Cortes superiores sobre o tema, com o intuito de verificar se é possível supor a existência legítima de regulamentos autônomos no ordenamento jurídico pátrio.
2. Admissibilidade de atos normativos autônomos pelas cortes superiores
O predomínio de uma visão tradicional dos princípios da legalidade e da separação dos poderes, muitas vezes faz com que seja questionada a possibilidade de serem criados deveres através de outros atos normativos diferentes da lei.
Tal assunto, não se encontra pacificado, havendo, inclusive, decisões que sustentam tanto a possibilidade quanto a impossibilidade.
Exemplo disso são as decisões do próprio STF.
Primeiramente, a Suprema Corte brasileira ao julgar, em 20/8/1998, o pedido de liminar da ADI 1.668/DF, não reconheceu o poder normativo autônomo das agências reguladoras.
De fato, na ocasião, o STF preferiu dar interpretação conforme sem redução de texto aos incisos IV e X do art. 19 da Lei 9.472/97, para estabelecer que as competências neles previstas se subordinavam aos preceitos legais e regulamentares que regiam a matéria. Os dispositivos referidos conferiam competência para a Agência Nacional de Telecomunicações expedir normas autônomas sobre outorga, prestação e fruição dos serviços de telecomunicações no regime público e sobre prestação de serviços de telecomunicações no regime privado. O STF, entretanto, determinou que tais normas deveriam ser infra-regulamentares.
Dessa forma, conforme observa Justen Filho,
a conclusão do julgamento, por apertada maioria, indica a complexidade do tema. Mas se pode assinalar que a orientação consagrada foi a de que a Constituição impõe limitações à competência normativa abstrata das agências, que se pode desenvolver apenas como manifestações de cunho regulamentar não autônomo. [1]
Não obstante, essa tenha sido a primeira orientação fixada pela Suprema Corte brasileira e, como tal, seja digna de respeito, não se pode considerar esse precedente como uma construção irrefutável.
Isso porque as posições do STF não são definitivas, na medida em que, dependendo da composição da Corte, elas variam drasticamente.
Prova disso é que em julgamento realizado em 16/2/2006 o Supremo Tribunal Federal proferiu interessante decisão posicionando-se favoravelmente à admissibilidade de regulamentos autônomos em face de atribuição constitucional implícita, em sede de cautelar na ADC número 12, proposta contra resolução do Conselho Nacional de Justiça. Decisão esta que em 2008 foi confirmada, mantendo-se o ato emitido pelo CNJ.
Nesse precedente, o plenário do STF firmou orientação no sentido de que se o fundamento de validade de eventual poder normativo puder ser retirado diretamente da Constituição, ainda que implicitamente, suas normas terão força de diploma primário, podendo inovar originariamente o ordenamento jurídico, independentemente de qualquer parâmetro legal.
Esse entendimento foi bem esposado em várias passagens do acórdão, que são dignas de transcrição.
Nessa linha, destaca-se primeiramente que, em seu voto, o então Ministro Joaquim Barbosa observou que a controvérsia foi gerada pelo fato de
o ato normativo objeto da presente ação ter sido expedido sem fundamento em lei, mas baseado diretamente na Constituição Republicana. Esse ponto tem sido repisado por aqueles que se opõem à validade da resolução, e isso em virtude de dois dogmas administrativo-constitucionais intrinsecamente ligados e de suma relevância: o da inexistência de regulamento autônomo no direito brasileiro e o de que é vedada qualquer inovação normativa pela via infralegal. Noutras palavras, somente a lei, como ato normativo primário, teria a primazia de criar direitos e obrigações.
Contudo, esses dogmas já foram anteriormente excepcionados, pela Emenda Constitucional 32/2001, que previu a possibilidade de extinção, mediante decreto, de funções e cargos públicos – criados por lei – quando vagos (art. 84, VI, b, da Constituição federal). Nova exceção foi criada pela Emenda Constitucional 45/2004, no art. 103-B, § 4º, II, da Lei Maior, que atribui ao Conselho Nacional de Justiça competência para “zelar pela observância do art. 37”. Como bem destacado na inicial, ao conferir tal atribuição ao CNJ, o constituinte derivado implicitamente outorgou os meios práticos de exercê-la, por meio de atos administrativos, dos quais a resolução é exemplo. [2]
A justificativa para o reconhecimento da constitucionalidade de um poder normativo primário, conferido ao Conselho Nacional de Justiça, foi desenvolvida por Carlos Ayres Britto, relator da decisão em tela, nos seguintes termos
28. Agora vem a pergunta que tenho como a de maior valia para o julgamento desta ADC: o Conselho Nacional de Justiça foi aquinhoado com essa modalidade primária de competência? Mais exatamente: foi o Conselho Nacional de Justiça contemplado com o poder de expedir normas primárias sobre as matérias que servem de recheio fático ao inciso II do § 4º do art. 103-B da Constituição?
29. Bem, para responder a essa decisiva pergunta, começo por transcrever o mencionado inciso e mais o inteiro teor do parágrafo de que ele faz parte. Ei-los: “Art. 103-B (...) § 4º Compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura[...]II – zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuízoda competência do Tribunal de Contas da União;[...]
31. No âmbito dessas competências de logo avançadas pela Constituição é que se inscrevem, conforme visto, os poderes do inciso II, acima transcrito. Dispositivo que se compõe de mais de um núcleo normativo, quatro deles expressos e um implícito, que me parecem os seguintes:
I – núcleos expressos: a) “zelar pela observância do art. 37” (comando, esse, que, ao contrário do que se lê no inciso de nº I, não se atrela ao segundo por nenhum gerúndio); b) “apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário”; c) “podendo desconstituí-los” (agora, sim, existe um gerúndio), “revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei”; d) “sem prejuízo da competência do Tribunal de Contas da União” (isto quando se cuidar, naturalmente, da aplicação de lei em tema de fiscalização “contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial”, mais aquelas densificadoras dos princípios da “economicidade”, “eficácia e eficiência” das respectivas gestões, pelo fato de que nesses espaços jurídicos é que também se dá a atuação dos Tribunais de Contas, tudo conforme os arts. 70 e 74 da Constituição Federal);
II – o núcleo inexpresso é a outorga de competência para o Conselho dispor, primariamente, sobre cada qual dos quatro núcleos expressos, na lógica pressuposição de que a competência para zelar pela observância do art. 37 da Constituição e ainda baixar os atos de sanação de condutas eventualmente contrárias à legalidade é poder que traz consigo a dimensão da normatividade em abstrato, que já é uma forma de prevenir a irrupção de conflitos. O poder de precaver-se ou acautelar-se para minimizar a possibilidade das transgressões em concreto. [3]
Em que pese tal decisão trate do poder normativo do Conselho Nacional, a solução dada pelo STF para a controvérsia relativa ao poder normativo pode ser estendida para outras entidades, como as agências reguladoras, cujo poder normativo igualmente pode ser extraído da Constituição.
De fato, relativamente às agências reguladoras, o núcleo expresso pode ser identificado no art. 174 da Constituição, na medida em que ele prevê o exercício de funções normativas e reguladoras pelo Estado, autorizando algum órgão ou entidade que o compõe a elaborar regras de condutas gerais e abstratas, para orientar o exercício da atividade econômica, que aqui deve ser compreendida em sentido lato. O núcleo implícito, por sua vez, pode ser extraído dos arts. 21, XI e 177, § 2º, III, do Texto Constitucional, na medida em que eles determinaram a criação de um “órgão regulador”, dando a nítida idéia de que incumbirá a eles, quando instituídos, exercer as funções elencadas no art. 174.
Conforme se vê, a situação não é diferente da identificada pelo relator Carlos Ayres Britto relativamente à função normativa do Conselho Nacional de Justiça questionada perante o STF.
Nesse sentido, inclusive, o STJ já se manifestou. Com efeito, no julgamento do Recurso Especial 640.460 – RJ, realizado em 11 de setembro de 2007, Teori Zavascki, relator do voto acolhido unanimemente pelos demais Ministros, ao analisar a legitimidade de norma da Agência Nacional de Petróleo, que, mediante Portaria, inovou a ordem jurídica, fazendo exigência não prevista em lei, destacou:
a ANP editou a Portaria 202, de 30.12.1999, que, no seu art. 4º, estabeleceu o rol dos documentos exigidos para instruir o pedido de registro de distribuidor de combustíveis, dentre os quais a comprovação de regularidade junto ao Sistema de Cadastramento Unificado de Fornecedores - SICAF (...) a exigência da certidão ali prevista nada mais representa do que a regular manifestação do poder regulatório e fiscalizatório atribuído à ANP pelo dispositivo legal, com a evidente finalidade de verificar a idoneidade financeira e fiscal das empresas que se habilitam a exercer atividade tão significativa para o interesse social. É característica das agências reguladoras o poder de normatizar as condições de exercício das atividades fiscalizadas. Sobre o tema, eis o que diz a doutrina:
"A natureza e os fins que inspiraram a criação das agências reguladoras não poderiam subtrair-lhes o poder jurídico de produzir algumas normas jurídicas de caráter geral, abstrato e impessoal, com carga de densidade apropriada ao cumprimento dos objetivos específicos das entidades. Afinal, não é difícil entender que, para regular certos setores da vida social, quer relativos à prestação de serviços públicos, quer ligados a atividades privadas de relevância pública, é absolutamente insuperável a necessidade de serem editados atos que, sem a menor dúvida, terão incidência genérica sobre quantos estejam, de alguma forma, situados no âmbito do setor suscetível de regulação.Tais atos, inseridos no poder normativo das agências, é que têm suscitado algumas resistências quanto à viabilidade jurídica e quanto à natureza. Poder normativo, em sentido geral, é a capacidade atribuída a determinado órgão ou pessoa da Administração no sentido de expedir normas com carga de incidência geral, abstrata e impessoal. A ordem jurídica confere essa capacidade a inúmeros órgãos e pessoas, e estes podem exercê-la por meio de diversas espécies de atos. Problema de outra ordem é o relativo à extensão da carga de incidência, ou seja, aos limites dentro dos quais podem ser expedidas a normas gerais, tendo em vista a existência de determinados parâmetros situados em norma de estatura superior.[...]
Analisando tais competências, não seria mesmo possível concebê-las sem admitir que todas as agências mereceram o poder de editar normas gerais relacionadas ao setor a que foram direcionadas através da respectiva disciplina jurídica. Com efeito, somente dotado de poder normativo poderá órgão ou pessoa administrativa implementar políticas, regular serviços, expedir normas sobre prestação de serviços, promover regulação, etc." (CARVALHO FILHO, José Santos, "A deslegalização no poder normativo das agências reguladoras", in Interesse Público, Ano VII, nº 35, janeiro/fevereiro de 2006, pp.51-53).
É certo, porém, que, como observa Colombo, a análise “[...] das decisões do STF posteriores à Carta de 1988 indicam uma forte seletividade dos posicionamentos do Tribunal quanto aos interesses e os agentes sociais beneficiados” [4]. Sendo assim, eventual tratamento diferenciado que os Tribunais Superiores venham dar provavelmente serão reflexo dessa ilegítima tendência, que representa incontroversa ofensa ao princípio da segurança jurídica, que é um dos principais pilares de sustentação do Estado de Direito.
3. Considerações Finais
No presente artigo colocou-se a questão sobre a admissibilidade dos chamados regulamentos autônomos no Direito brasileiro, os quais, apesar de constituírem uma realidade, são via de regra reputados inconstitucionais, mais por apego a teorias clássicas, do que por uma análise racional do tema nos dias atuais, uma vez que, quando se encontra fundamento de validade constitucional para a existência do regulamento, não há razão para inadmiti-lo, conforme já decidiso, inclusive pelo STF e pelo STJ
Entende-se que esse é o caso das normas autônomas elaboradas pelas agências reguladoras e pelo Conselho Nacional de Justiça, que reascenderam o debate no cenário jurídico.
É certo, porém, que se trata de tema controvertido, razão pela qual não se teve a pretensão de apresentar uma conclusão definitiva, já que não há qualquer consenso a seu respeito.
[1] JUSTEN FILHO, op. cit., p. 539.
[2] ADC 12 – MC, p. 42 - 43.
[3] ADC 12 – MC, p. 22-25.
[4] COLOMBO, Carlos Alberto. Os julgamentos do Supremo Tribunal Federal: violações dos direitos constitucionais e ilegitimidade política. Revista da Ajuris, n. 87, tomo I, p. 33, jun. 2002.
Procuradora Federal desde novembro 2007. Chefe de Divisão de Gerenciamento da Dívida Ativa da Coordenação-Geral de Cobrança e Recuperação de Créditos da Procuradoria-Geral Federal de 2009 a 2010. Ex-Procuradora do Estado do Rio Grande do Sul. Especialista em Direto Público.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RIZZI, Ângela Onzi. Atos normativos autônomos no Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42042/atos-normativos-autonomos-no-brasil. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Francisco de Salles Almeida Mafra Filho
Por: BRUNO SERAFIM DE SOUZA
Por: Fábio Gouveia Carneiro
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
Precisa estar logado para fazer comentários.