Sumário: Introdução; 1. O Estado regulador e o SBDC; 2. O conflito de atribuições entre o CADE, as Agências Reguladores e o caso CADE x BACEN; Considerações finais; Referências bibliográficas.
Introdução
O presente artigo tem por objetivo expor, em breve síntese, o papel intervencionista do Estado como instrumento repressor do abuso do poder econômico e protetor da concorrência, abordando também o Sistema Brasileiro de Direito da Concorrência (SBDC).
No decorrer do texto, será analisado o conflito de atribuições envolvendo o CADE e as Agências Reguladores quando o setor objeto da defesa da concorrência é um setor regulado, citando, em breves linhas, o leading case envolvendo o BACEN e o CADE.
Com isto, espera-se fornecer elementos que ajudem a melhorentender aatuação do Estado na regulação dos mercados e a discussão envolvendo a atuação administrativa estatal quando há sobreposição de atribuições entre o CADE e as Agências Reguladoras.
1. O Estado regulador e o SBDC
No que toca à atuação do Estado no campo econômico, houve uma sucessão de modelos ao longo da história.
No modelo absenteísta há o completo afastamento entre o público do privado. O Estado, permanecia à margem das relações econômicas, cabendo à sociedade autorregular-se. Já no modelo produtor, o Estado avoca para si diversas competências públicas, produzindo diretamente bens e serviços e intervindo efetivamente nos assuntos econômicos e sociais, provendo as principais prestações estatais demandadas pela população, como alimentação, saúde e educação. Quanto ao modelo regulador, deixa de produzir diretamente bens e serviços, colocando-se como ente controlador, fiscalizador e normatizador das atividades privadas. Não se trata de mera regulação econômica, mas também social.
Pois bem. O Estado brasileiro atual identifica-se como Estado Regulador, cumprindo, neste ponto, trazer lição da doutrina para melhor caracterizá-lo, diferenciando-se os termos regulação e regulamentação:
O Estado Regulador, para desincumbir-se dos ônus produtivos e ver diminuído o impacto da crise fiscal e de produtividade dos organismos estatais indicada acima, estabelece alguns movimentos complementares. Inicialmente, como já dito, incrementa seus poderes de controle, fiscalização e normatização das atividades privadas. A regulação, entendida em sentido amplo, distingue-se do que, tradicionalmente, é chamado de “regulamentação”, compondo-se, em verdade, de um conjunto de medidas políticas de incentivo, premiação, estabelecimento de regras e limitações administrativas, fiscalização das atividades privadas, etc. Ela envolve o desempenho de várias competências públicas de forma conjunta, não se limitando ao estabelecimento infralegal de normas para regulamentar condutas. Por isso é que se pode dizer que o Estado Regulador possui uma feição distinta das tradicionais atribuições admitidas para o Estado até os anos 70.[1]
Pois bem. Nesse contexto, para que o atual Estado regulador desincumba-se de sua função, existem órgãos para o exercício do controle necessário à atuação do particulares.
No que toca ao controle do abuso do poder econômico e proteção da concorrência, existe o chamado Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC), formado, com as alterações promovidas pela Lei 12.529/2011 em relação à antiga lei de defesa da concorrência (8.884/94), é composto atualmente pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), vinculado ao Ministério da Justiça, e pela Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE), ligada ao Ministério da Fazenda.
O SBDC atua evitando ou reprimindo condutas anticoncorrenciais e infrações à ordem econômica, a exemplo de cartéis, preços predatórios, criação de barreiras à entrada, venda casada, discriminação de preços etc.
Nesse contexto, tema que desperta controvérsia é o conflito de competência/atribuição entre o CADE e as Agências Reguladoras, o que será melhor problematizado no tópico seguinte.
2. O conflito de atribuições entre o CADE, as Agências Reguladores e o caso CADE x BACEN
Na intervenção estatal para defesa da concorrência, há controvérsias, nas hipóteses de sobreposição de atribuições de mais de um ente público, sobre qual estas prevaleceria.
Para parte da doutrina, em razão do princípio da especialidade, haveria a prevalência das Agências Reguladores:
“Em razão da especialidade, deveria ser reconhecida, em princípio, a competência das agências reguladoras para promoção da concorrência nos setores econômicos regulados, salvo previsão legal em contrário ou celebração de instrumentos jurídicos específicos (ex.: convênios) entre o CADE e as autarquias. Em relação aos serviços públicos, em que não há livre-iniciativa e incidem exigências distintas daquelas encontradas nas atividades econômicas em geral (ex.: exigência de solidariedade etc.), não haveria que falar em atuação do CADE, mas, sim, das agências reguladoras.
Em sentido semelhantes, o STJ e a Advocacia-Geral da União (AGU)[2] manifestam-se pela prevalência do Banco Centrado sobre o CADE para analisar e aprovar os atos de concentração das instituições integrantes do sistema financeiro nacional, bem como de regular as condições de concorrência entre as instituições financeiras, com fundamento no princípio da especialidade.[3]”
O caso mencionado no excerto acima, envolvendo o CADE e o BACEN, é um verdadeiro leading case na matéria, objeto que foi de um “Conflito Positivo de Competência” de n° 0001.006908/2000-25, suscitado pelo BACEN, que defendia a exclusividade para regular o setor financeiro, enquanto o CADE afirmava que tal atividade seria complementar, isto é, os entes analisariam os fatos sob enfoques diferentes[4]. No seio da discussão, as Leis 4.595/64 e 8.884/94.
No entanto, outra parte da doutrina, entende que, na busca por uma coerência e harmonização da política de defesa da concorrência, cumpriria ao CADE exercê-la em detrimento das Agências Reguladoras, inclusive utilizando como argumento disposições legais, constantes nas leis de criação de duas Agências Reguladoras, que apontam para a competência do CADE para a análise de atos de concentração econômica:
ANATEL – Lei 9.472/97 (Art. 7°, §2°):
“Art. 7° As normas gerais de proteção à ordem econômica são aplicáveis ao setor de telecomunicações, quando não conflitarem com o disposto nesta Lei.
§ 1º Os atos envolvendo prestadora de serviço de telecomunicações, no regime público ou privado, que visem a qualquer forma de concentração econômica, inclusive mediante fusão ou incorporação de empresas, constituição de sociedade para exercer o controle de empresas ou qualquer forma de agrupamento societário, ficam submetidos aos controles, procedimentos e condicionamentos previstos nas normas gerais de proteção à ordem econômica.
§ 2° Os atos de que trata o parágrafo anterior serão submetidos à apreciação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica - CADE, por meio do órgão regulador.” (g.n.)
ANP – Lei 9.478/97 (Art. 10):
“Quando, no exercício de suas atribuições, a ANP tomar conhecimento de fato que possa configurar indício de infração da ordem econômica, deverá comunicá-lo imediatamente ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica – Cade e à Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça, para que estes adotem as providências cabíveis, no âmbito da legislação pertinente.” (g.n.)
Nesta parte da doutrina que defende a tese da competência do CADE, vale à pena mencionar ainda o seguinte posicionamento:
“Alexandre Santos de Aragão, por sua vez, afirma que, no silêncio da lei, deve prevalecer a competência do CADE em detrimento das competências das agências reguladoras quando se tratar de atividades econômicas em sentido estrito. Ao revés, tratando-se de serviços públicos, tendo em vista as suas peculiaridades, a última palavra de ser das agências, salvo dispositivo legal em sentido contrário.[5]”
Trata-se de tema ainda aberto à discussão e que, ao que parece, caminha – ou deveria caminhar – para o fortalecimento da competência do CADE, evitando que haja um controle distinto por cada Agência Reguladora.
Assim, ganhar-se-ia em harmonização de atuação, coerência da política protetiva da concorrência, podendo o CADE, nas hipóteses em que entender conveniente, firmar convênios com as Agências Reguladores, para atuação conjunta, notadamente nos casos em que o conhecimento técnico das agências for útil à atuação do CADE.
Considerações finais
Como se pôde perceber, nas linhas acima, o Estado brasileiro caracteriza-se, na atualidade, por ser um Estado Regulador, cujo escopo não é atuar diretamente na economia, mas agir como agente regulador, normatizador, fiscalizador dos agentes privados.
Nessa tarefa, dispõe de estrutura administrativa própria, dentro da qual se inclui o SBDC, cujo ente central é o CADE, Autarquia Federal ligada ao Ministério da Justiça.
No entanto, quando a atuação em defesa da concorrência e da repressão ao abuso econômico está relacionada a setores regulados, até uma certa sobreposição de atribuições, entre o CADE e as Agências Reguladores, o que gera certo conflito.
Como se pode perceber, a partir deste breve estudo, a doutrina se divide pela prevalência das Agências Reguladores, especialmente em virtude do princípio da especialidade, enquanto aqueles que sustentam a primazia do controle pelo CADE, defendem que isto traria ganhos no quesito coerência da política de defesa da concorrência.
Filiamo-nos esta última corrente, por considerar ser a que permite alcançar maior ganho em termos de: i) harmonização de atuação administrativa de controle e ii) coerência da política protetiva da concorrência, sendo certo que o CADE, nas hipóteses em que entender conveniente, poderia firmar convênios com as Agências Reguladores, para atuação conjunta e coordenada, em especial nos casos em que o conhecimento específico do corpo técnico das agências for útil aos desdobramentos da atuação do CADE.
Portanto, com este breve artigo, espera-se ter fornecido elementos capazes de ajudar a compreender um pouco mais acerca do Estado Regulador, do SBDC e da discussão acerca do conflito de atribuições entre o CADE e as Agências Reguladores, em especial o caso CADE x BACEN.
Bibliografia
ACUNHA, Fernando José Gonçalves. Texto-base: A administração pública brasileira no contexto do estado democrático de direito - DF: CEAD/UnB, 2012. (Pós-graduação lato sensu em Direito Público). Disponível em: <http://moodle.cead.unb.br/agu/>. Acesso em: 15/05/2013.
FIGUEIREDO, Leonardo Vizeu. Lições de direito econômico. – Rio de Janeiro: Forense, 2009
OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito administrativo. 2ª. Ed. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método. 2014.
[1] ACUNHA, Fernando José Gonçalves. Texto-base:A administração pública brasileira no contexto do estado democrático de direito - DF: CEAD/UnB, 2012. (Pós-graduação lato sensu em Direito Público). Disponível em: <http://moodle.cead.unb.br/agu/>. Acesso em: 15/05/2013.
[2] Conferir Resp. 109.218/DF e Parecer 09/2009/MP/CGU/AGU.
[3] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito administrativo. 2ª. Ed. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método. 2014. Págs. 508/509.
[4] A discussão é esmiuçada na obra doutrinária de Leonardo Vizeu Figueiredo, para a qual remetemos o leitor. Lições de direito econômico. – Rio de Janeiro: Forense, 2009. Págs. 251 a 268.
[5] ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2002, pág. 295. ApudOLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Ob. Cit. Pág. 509.
Procurador Federal e Professor de Processo Civil da Universidade Estadual do Tocantins (UNITINS). Pós-graduado em Direito Público (UnB/AGU), em Direito da Economia e da Empresa (Fundação Getúlio Vargas - FGV) e em Relações Internacionais (Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRAGA, Bruno César Maciel. A defesa da concorrência e o conflito de atribuições entre o CADE e as Agências Reguladoras Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42094/a-defesa-da-concorrencia-e-o-conflito-de-atribuicoes-entre-o-cade-e-as-agencias-reguladoras. Acesso em: 23 dez 2024.
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