RESUMO – Um dos requisitos para a admissibilidade recursal é a obediência ao princípio da dialeticidade, devendo a parte recorrente atacar os pontos da decisão recorrida. Esse princípio vem sendo aplicado pelos tribunais, havendo, no entanto, doutrinadores defendendo a sua não aplicabilidade.
Palavras-chave: Direito Processual Civil. Recursos. Requisitos de Admissibilidade. Princípio da Dialeticidade.
I – INTRODUÇÃO
No sistema processual brasileiro, o direito ao duplo grau de jurisdição está, segundo doutrina majoritária, previsto implicitamente na Constituição Federal, o que se pode concluir através de uma interpretação sistemática dos dispositivos constitucionais. Porém, para exercitar esse importante direito, o recorrente deve preencher alguns requisitos previstos em lei, sob pena de o recurso não ser conhecido, ou seja, de o mérito recursal sequer ser analisado pelo tribunal. De uma forma geral, os recursos devem preencher os seguintes requisitos: a) cabimento; b) legitimidade para recorrer; c) interesse em recorrer; d) tempestividade; e) regularidade formal; f) preparo; g) inexistência de fatos impeditivos ou extintivos do direito de recorrer[1]. No presente trabalho, procurar-se-á desenvolver um desdobramento do requisito da regularidade formal, qual seja: princípio da dialeticidade.
II – CONCEITO
De acordo com o art. 514, inciso II, do Código de Processo Civil, a apelação deverá conter os fundamentos de fato e de direito, ou seja, deverá demonstrar os motivos de desacerto da decisão recorrida, não se tratando, porém, de um excesso de formalismo, mas sim de uma preservação dos princípios inerentes à jurisdição, pois conhecer da matéria versada na decisão prolatada pelo juízo a quo resultaria no Tribunal substituir a parte nas alegações que lhe cabem.
Nesse norte, caso o recurso não aponte os motivos de reforma da decisão vergastada, o juiz ou tribunal não conhecerá do recurso, ante a ausência de regularidade formal. No mesmo sentido, Flávio Cheim Jorge leciona que “a violação do princípio da dialeticidade fará com que o recurso não seja admitido por falta de regularidade formal”.[2] Um conceito bastante utilizado nas decisões dos tribunais pátrios acerca é aquele formulado por Nelson Nery Jr. Veja-se:
“A doutrina costuma mencionar a existência de um princípio da dialeticidade dos recursos. De acordo com este princípio, exige-se que todo recurso seja formulado por meio de petição pela qual a parte não apenas manifeste sua inconformidade com o ato judicial impugnado, mas, também e necessariamente, indique os motivos de fato e de direito pelos quais requer o novo julgamento da questão nele cogitada. Rigorosamente, não é um princípio: trata-se de exigência que decorre do princípio do contraditório, pois a exposição das razões de recorrer é indispensável para que a parte recorrida possa defender-se.”[3]
Com esse conceito formulado pelo autor processualista, já se percebe que se trata de um princípio (ou, como ele mesmo afirma, rigorosamente, não é um princípio) bastante aplicado nos processos judiciais, principalmente naqueles onde uma das partes detém uma grande quantidade de processos, fazendo com que advogados, muitas vezes com sobrecarga de trabalhos, repetem, através da técnica copia-e-cola, fundamentos já utilizados em peças anteriores, não se concentrando na decisão recorrida.
III – CONSEQUÊNCIA PROCESSUAL
Como visto acima, a regularidade formal é um dos requisitos para a admissibilidade do recurso, devendo a parte recorrente apontar os pontos de inconformismo da decisão. Eis o que se chama, doutrinariamente, de princípio da dialeticidade.
Ora bem, se a parte recorrente não restou conformada com a decisão prolatada, logicamente haverá algum motivo para tanto, o que caracterizará, de certa forma, o seu interesse recursal. Para que a parte recorrida possa exercer eficazmente o seu direito de se defender (ou contrarrazoar), o recorrente deverá, evidentemente, apontar suas razões de reforma da decisão, demonstrando claramente quais os pontos em que o magistrado, prolator da decisão guerreada, se equivocou ou agiu contra legem. Foi pensando nisso que o legislador exigiu o requisto do art. 514, inciso II, do Código de Processo Civil, in verbis:
Art. 514. A apelação, interposta por petição dirigida ao juiz, conterá:
I - os nomes e a qualificação das partes;
II - os fundamentos de fato e de direito;
III - o pedido de nova decisão.
Porém, há vozes defendendo a não obrigatoriedade da impugnação específica dos fundamentos da decisão recorrida, sob o fundamento de que o princípio da iura novit curia não limitaria a análise recursal do órgão ad quem, eis que é o próprio grau de devolutividade do recurso que delineará a atuação do órgão recursal.[4] Bruno Silveira de Oliveira já escreveu sobre o tema, asseverando o seguinte:
“O impacto das preclusões sobre a defesa de um direito material é ainda mais drástico quando pensamos no processamento dos recursos (mormente quando cogitamos de recursos contra decisões aptas a receberem a autoridade da coisa julgada material). Nessas situações, a parte que julga haver sofrido uma injustiça tem contra si uma decisão que, a depender da desventura de não ser conhecida a respectiva impugnação – resolverá em definitivo o mérito da causa e se revestirá da auctoritas rei iudicatae, podendo, conforme o caso, eternizar injustiças em nome de uma suposta efetividade, decorrente da imutabilidade adquirida por seu comando. Por isso, se admitirmos como hipótese que a flexibilização de regras técnicas – e em especial de regras preclusivas – seja uma boa e eficiente válvula de escape, posta pelo próprio sistema para a mitigação de seus excessos formais, sentido nenhum haverá em restringirmos tal flexibilização ao procedimento em primeiro grau de jurisdição”.[5]
Acontece que a jurisprudência pátria, notadamente do Superior Tribunal de Justiça, vem aplicando veementemente o princípio da dialeticidade. Segue, abaixo, uma recente decisão:
PEDIDO DE RECONSIDERAÇÃO E AGRAVO REGIMENTAL. PRECLUSÃO. UNIRRECORRIBILIDADE. PEDIDO DE RECONSIDERAÇÃO RECEBIDO COMO AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO ESPECÍFICA AOS FUNDAMENTOS DA DECISÃO PROFERIDA PELO TRIBUNAL DE ORIGEM QUE NÃO ADMITIU O RECURSO ESPECIAL. APLICAÇÃO DO ART. 544, § 4º, I, DO CPC. PRINCÍPIO DA DIALETICIDADE, QUE IMPÕE O ATAQUE ESPECÍFICO AOS FUNDAMENTOS. INSUFICIÊNCIA DE ALEGAÇÃO GENÉRICA. PRECEDENTES. MANUTENÇÃO DA DECISÃO ORA AGRAVADA. RECURSO MANIFESTAMENTE INFUNDADO E PROCRASTINATÓRIO. APLICAÇÃO DE MULTA. ART. 557, § 2º, CPC.
[...]
4. À luz do princípio da dialeticidade, que norteia os recursos, compete à parte agravante, sob pena de não conhecimento do agravo, infirmar especificamente os fundamentos adotados pelo Tribunal de origem para negar seguimento ao reclamo, sendo insuficiente alegações genéricas de não aplicabilidade do óbice invocado. Precedentes.
5. O recurso revela-se manifestamente infundado e procrastinatório, devendo ser aplicada a multa prevista no art. 557, § 2º, do CPC.
6. Agravo regimental de fls. 445-448 não conhecido. Pedido de reconsideração de fls. 439-443 recebido como agravo regimental a que se nega provimento, com aplicação de multa.[6]
Mencionando que se trata de matéria de ordem pública, o Tribunal de Justiça da Paraíba decidiu:
APELAÇÃO. RECURSO QUE NÃO IMPUGNA OS FUNDAMENTOS DA SENTENÇA. ALEGAÇÃO GENÉRICA. OFENSA AO PRINCÍPIO DA DIALETICIDADE. JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE. MATÉRIA DE ORDEM PÚBLICA. DECISÃO MONOCRÁTICA. ART. 557, CAPUT, CPC. NÃO CONHECIMENTO DO RECURSO. – O apelante constrói tese genérica acerca dos direitos sociais pleiteados pelo autor, sem, contudo, fazer qualquer ressalva ao direito concedido pelo magistrado a quo. À toda evidência, a recorrente não impugnou especificamente as razões de decidir do magistrado, construindo argumentação apta a contrariar a tese sustentada na sentença. Em respeito ao princípio da dialeticidade, os recursos devem ser fundamentados. É necessária a impugnação específica dos fundamentos da decisão recorrida. O juízo de admissibilidade, no tocante a apreciação de todos os pressupostos recursais, é matéria de ordem pública, devendo ser apreciado pelo órgão julgador independente do requerimento das partes.[7]
Por outro lado, uma decisão recente do Superior Tribunal de Justiça, publicada no DJe de 17/11/2014, afirmou que “a mera reiteração na apelação das razões apresentadas na contestação, por si só, não é motivo suficiente para o não conhecimento do recurso, quando estejam devidamente expostos os motivos de fato e de direito que evidenciem a intenção de reforma da decisão recorrida”.[8]
Isso, talvez, seja reflexo do princípio da cooperação, “que orienta o magistrado a tomar uma posição de agente-colaborador do processo, de participante ativo do contraditório e não mais a de um mero fiscal de regras”.[9]
IV – CONCLUSÃO
Considerando tais argumentos, conclui-se que as partes devem demonstrar, em suas razões recursais, os equívocos existentes na decisão recorrida, não podendo repetir fundamentos existentes em peças anteriores, exceto se esses fundamentos exponham os motivos de fato e de direito que evidenciem a intenção de reforma da decisão recorrida.
BIBLIOGRAFIA
- BRASIL, Constituição Federal (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. DOU 05.10.1988.
- BRASIL, Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973, que institui o Código de Processo Civil.
- JORGE, Flávio Cheim. Teoria Geral dos Recursos Cíveis. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
- NERY JR., Nelson. Teoria Geral dos Recursos. 6 ed. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2004.
- OLIVEIRA, Bruno Silveira de. O formalismo do sistema recursal à luz da instrumentalidade do processo. In: Repro n. 160. São Paulo: RT, 2008.
- DIDIER JUNIOR, Fredie. Revista de Processo, 2006.
- SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, disponível em: www.stj.jus.br, acesso em: 19/11/2014.
- TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA PARAÍBA, disponível em: www.tjpb.jus.br, acesso em: 19/11/2014.
[1] JORGE, Flávio Cheim. Teoria Geral dos Recursos Cíveis. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
[2] JORGE, Flávio Cheim. Teoria Geral dos Recursos Cíveis. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 221.
[3] NERY JR., Nelson. Teoria Geral dos Recursos. 6 ed. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2004, p. 176-178.
[4] OLIVEIRA, Bruno Silveira de. O formalismo do sistema recursal à luz da instrumentalidade do processo. In: Repro n. 160. São Paulo: RT, 2008.
[5] OLIVEIRA, Bruno Silveira de. O formalismo do sistema recursal à luz da instrumentalidade do processo. In: Repro n. 160. São Paulo: RT, 2008, p. 34.
[6] RCD no AREsp 581.722/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 06/11/2014, DJe 11/11/2014.
[7] TJPB – ACÓRDÃO/DECISÃO do Processo Nº 01243026020128150011, Relator Des. João Alves da Silva, julgado em 04/11/2014.
[8] AgRg no AREsp 535.574/RS, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 11/11/2014, DJe 17/11/2014.
[9] DIDIER JUNIOR, Fredie. Revista de Processo, 2006.
Procurador Federal da AGU - Advocacia Geral da União. Mestrando em Direito. Especialista em Direito Constitucional. Especialista em Direito Administrativo. Especialista em Direito Processual Civil. Especialista em Ciências Criminais.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DIAS, Jorge Andersson Vasconcelos. O princípio da dialeticidade como limite ao direito de recorrer Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 dez 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42101/o-principio-da-dialeticidade-como-limite-ao-direito-de-recorrer. Acesso em: 22 dez 2024.
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