Resumo: Este breve artigo busca fazer uma análise da interpretação e da discricionariedade judicial, sob a ótica da discussão travada entre Dworkin e Hart. Nessa breve abordagem, portanto, perquiriremos a prática jurisdicional, não apenas sob uma visão teórica, mas como via de satisfação material dos interesses sociais, trazendo exemplos da realidade subjacente, mormente as que tratam da judicialização das políticas públicas, sem, contudo, perder o foco na discussão dos dois jusfilósofos. Por esta razão, nosso objeto é a relação entre a interpretação e a discricionariedade judicial, trazendo para estudo um caso concreto, dentro do contexto da discussão travada entre Dworkin e Hart. Não temos a pretensão de em tão poucas linhas esgotar o pensamento dos dois pensadores, motivo pelo qual optamos por focar em aspectos centrais das teses desenvolvidas por cada um, dentro de uma contextualização.
Palavras-chave: Discrionariedade e interpretação judicial. Dworkin e Hart. Políticas públicas.
Sumário: 1. INTRODUÇÃO. 2. Herbert Hart e a tese Neopositivista de discricionariedade. 2.1. Neopositivismo x Positivismo Tradicional.2.2 – Normas primárias e secundárias: Regras de conhecimento. 2.3. Da textura “aberta” das regras. 3 – DWORKIN E A DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL.4 – QUAIS OS LIMITES DA DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL?5 – A DISCUSSÃO ENTRE HART E DWORKIN NO CAMPO DA JUDICIALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS, NA REALIDADE BRASILEIRA. 6 - CONCLUSÃO.
1 – INTRODUÇÃO.
O problema em torno da discricionariedade judicial tornou-se, nasegunda metade doséculo XX, um assunto extremamente acirrado entre alguns autores, e cuja solução está longe de ser pacífica.
É inegável queo Poder Judiciário tem um papel central no sistema jurídico. Entretanto, sempre temos umquestionamento a ser respondido, que é o seguinte: como os juízes decidem seus casos, principalmente aqueles mais difíceis (Hard Cases)? A procuradesenfreada é pela justiça do caso concreto. A lei-regra, como fonte única do Direito, já foi há muito deixada de lado, não devendo o intérprete quedar-se inerte, alheioa seu tempo, pois sua maior responsabilidade era aplicar a lei, tal como foraconcebida pelo legislador, passando este a exercer papel de “soberano” da lei. A moral, por não ser possível sua demonstração empírica, não poderia ser levada em consideração dentro de um sistema que se pressupunha “hermeticamente fechado”, dentro de sua pureza conceitual.
2–Herbert Hart e a tese Neopositivista de discricionariedade.
2.1 – Neopositivismo x Positivismo Tradicional.
Não obstante ele tenha dado nova roupagem a posições jusnaturalistas, e maior ênfase às idéias ligadas aos Direitos Humanos, ainda seguiu uma linha positivista, embora com pressupostos diferentes daqueles sustentados por Kelsen, à medida em que ele apresenta uma postura mais ética frente à problemática da segurança jurídica e estabilidade do ordenamento jurídico.
Além disso, sua atenção voltou-se à prática social, à forma como os cidadãos enfrentam as circunstâncias previstas pelo direito e à linguagem que se utilizamem referência a elas. Esta proximidade linguístico-sociológica fez com que as normas jurídicas se fundassemsobre uma base sociológica e a teoria do direito sobre uma teoria eminentemente social.
Esta visãodestaca Hart do positivismo tradicional, que estaria alicerçado em dois pilares: um deles, a dissociação entre “ser” e “dever-ser” (ou seja, entre teoria jurídica-analítica/descritiva e teoria jurídica-crítica/avaliativa) e, em outro, a fundamentação de que um dado sistema jurídico não pode estar ancorado em nenhuma teoria moral ou justificativa e, sim, na insistência de que esses valores do sistema jurídico são suficientemente descritos nos termos moral e valorativamente neutros de um costume comum de obediência.
Para Hart, o direito de uma determinada sociedade não deve ser encontrado a partir da questão “quem é o soberano e quais são as suas ordens?”. É pernicioso, com a percepção da vida social que subjaz, que o direito seja reduzido a mera institucionalização de uma situação descrita. Ressalte-se que as normas jurídicas não são ordens eventuais que as pessoas recebem de um dado legislador, que as submete sob a coerçãode uma pena ou de um castigo.
2.2 – Normas primárias e secundárias: Regras de conhecimento.
De acordo com Hart, o Direito considerado como conjunto de normas coercivas, regras primária (o que ele chama de modelo simples de direito),não considera a complexidade do ordenamento jurídico, pois existem variedades de leis que não se enquadram nesta definição.Segundo ele, para se analisar um determinado ordenamento jurídico de maneira correta, deve-se estabelecer a diferença entre regrasprimárias e secundárias.
Assim, surge umadiferenciação: de um lado, a distinção entre o que sejam regras primárias[1] e regras secundárias[2]; e de outro, a que se dá entre os pontos de vista interno e externo diante de determinadas regras. Na primeira, Hart vê a chave da teoria jurídica. As regras primárias impõem deveres positivos ou negativos, ações ou omissões aos cidadãos.
Já as regras ditas secundárias seriam aquelas que conferem poderes às autoridades ou entidades privadas para a criação, modificação ou extinção, ou, ainda, para determinação dos efeitos das regras primárias
É importante trazer à baila a classificação proposta por Hart quanto às normas secundárias, quais sejam: a) regra de mudança; b) regra de jurisdição; c) regra de reconhecimento. Quanto à letra “a”, a “regra de mudança” é aquela que dá faculdade aos particulares e aos legisladores para criarem regras primárias. A “b”, são normas que versem sobre o exercício da função judicial, criadoras de um segundo tipo de regras secundárias. Por fim, o terceiro tipo de regras secundárias são aquelas que Hart denomina de “regra de reconhecimento”.
É sobre elas que discorremos doravante.
Uma das colunas principais do positivismo consiste na defesa de que é, sim, possível identificar o direito vigente em determinada sociedade por intermédio de um parâmetro dissociado da moral. Hart chama esse parâmetro de regra de reconhecimento.
As regras jurídicas de uma dada sociedade complexa estão invariavelmente organizadas hierarquicamente. A sua validade depende de sua conformação com as outras regras colocadas em nível jurídico superior. A validade de um decreto está associada à sujeição às leis vigentes e, ambas, alicerçam sua validade na Constituição, a qual, dentro dessa estrutura, é o critério supremo de validação.
Em Hart, resulta clara a superioridade hierárquica da Constituição. Mas do que depende a validade de uma Constituição? Esse é o nó górdio que Hart dissente da teoria pura, pois constitui prova definitiva para qualquer teoria de validade jurídica. Para ele, a validade de qualquer Constituição é retirada por uma regra que permita identificar no contexto social as normas que são jurídicas, e com elas, e só com elas, se pode garantir a coerência de um ordenamento jurídico[3].
Há uma regra não-escrita que se relaciona com o fato de a sociedade, em curto tempo, organizar-se de certa forma que todos aceitem essa organização. Para Hart, a regra de reconhecimento, de base sociológica, é o fundamento último de todo sistema jurídico, além de ser a enunciação de um fato social consistente na aceitação prática do critério supremo e subordinados como parâmetros de identificação das normas de determinado sistema[4].
2.3. Da textura “aberta” das regras.
A análise de Hart baseia-se, prioritariamente, na constatação de que a linguagem humana, de modo amplo e, conseqüentemente, a linguagem jurídica, não são ilimitadas. Por mais que se tente atribuir significados precisos, há sempre uma “vagueza” (imprecisão significativa ou plurissignificativa), como uma “textura aberta” da linguagem que influencia o mundo das comunicações jurídicas.
Para a compreensão de Hart, essa “textura aberta” decorrede duas razões claras: a uma, as regras jurídicas são sempre dirigidas a classes de pessoas e não aos casos particulares; a duas, as regras jurídicas permanecem vigentes por vastos períodos, sendo utilizadas nas circunstâncias fáticas que não podem ser previstas no momento de sua criação.
As acepções jurídicas do termo “textura aberta” tornam difícil sua interpretação[5]. A fim de superar esse óbice, Hart indica a utilização da analogia como forma de solucionaros casos difíceis – que, segundo ele, são os que envolvem questões complexas determinadas pela imprecisãolingüística. Para ele, qualquer expressão lingüísticatem um núcleo forte de significado e uma área de penumbra[6].
Na área de “penumbra” dessas expressões, é mais usual se amoldar aos casos de difícil interpretação, nos quais existem controvérsias no que tange à sua concretude. Para Hart, os hard casesdevem ser solvidosbaseados em um critério aproximativo de análise - passando a exigir uma interpretação razoável por parte dosjuízos, que deverá/poderá utilizar a discricionariedade para aplicar a solução mais adequada ao caso concreto -, deixando-sea analogia para os “casos fáceis”.
Assim, quando falamos nos hard cases, o silogismo não é a solução mais adequada que se deve lançar mão, pois, segundo Hart, a linguagem da regra só delimita aqueles exemplos dotados de autoridade – nos casos fáceis.
Nos casos difíceis, a linguagem normativa deixa ao interprete um poder discricionário. Este poder discricionário advém de uma escolha permeada por grau maior de liberdade, e que o julgador passa a usar como instrumento para sua decisão, porém, ressalta Hart, esta escolha é preferível ao formalismo puro[7], além de afirmar que juiz tem liberdade para decidir entre as várias alternativas possíveis, pois no Direito não há uma determinação apriorística da posição judicial.
Pelo que foi dito até aqui, percebemos que, para Hart, os dois fenômenos que geram lacunas no Direito são: 1) a chamada “regra do reconhecimento”, e 2) a “textura aberta da linguagem”.
3 – DWORKIN E A DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL.
Dworkin sucede Hart na Universidade de Oxford, e leciona hodiernamente na Universidade de New York. Ele critica[8] a construção jurídica-positivista de Hart, e tece, ainda, duras criticas ao positivismo jurídico: tanto no que se refere ao conceito, como ao papel exercido pelas normas jurídicas e a perspectiva pratica simples criada pelo positivismo.
Quanto à norma jurídica, para o positivismo, a norma se considera de maneira autorreferencial, o que é criticado por Dworkin, pois ele entende ser impossível a separação entre o mundo do Direito e o mundo dos valores, já que os valores estão dentro do direito.
Ao comentar sobre a visão da realidade como algo simples, Dworkin diz que o positivismo desistiu de dar à sociedade segurança jurídica, o que não é aceitável, mormente se tivermos em mente os princípios da segurança jurídica e irretroatividade da lei.
Vale mencionar que Dworkin critica severamente a distinção entre Direito e Moral feita pelo Positivismo, pois, para ele, o critério usado pelo positivismo é mais restrito ao distinguir a validade no Direito com base no critério de sua origem. Sem dúvida, tal critério é, para ele,suficiente para fundar a validade das normas jurídicas, mas o Direito não se resume a elas.
Ao analisar a solidez dos fundamentos do positivismo jurídico, Dworkin acaba fazendo uma análise do positivismo jurídico em si. Para ele, aespinha dorsaldo positivismo está centrada em proposições-chave as quais se organizam de determinada forma, são elas:
a) O direito de certa sociedade é um conjunto de normas especiais utilizadas direta ou indiretamente por essa comunidade com o fim de determinar qual conduta será penalizada ou submetida à coerção pelos poderes estabelecidos;
b) O conjunto destas normas válidas exaure o conceito de direito, de maneira que se uma de tais normas não se adequa claramente ao caso posto, então elenão pode ser decidido aplicando-se a lei.
Nesse diapasão, ele entende equivocadas todas as teorias sobre discricionariedade do juiz elaboradas no âmbito da tese positivista, uma vez que a segurança jurídica só pode ser alcançada se puder ser garantida a decisão igual, única para os casos concretos iguais, pois a partir do momento que se entende que o juiz é quem cria a norma ao conceituá-la, admite-se, também, que os fatos são anteriores à norma[9].
Para Dworkin, ao dizer como o juiz deve chegar a uma determinada decisão única, o juiznão deve se guiar apenas por normas jurídicas, mas também por pautas intelectuais (princípios de natureza positiva que resultam de valores encampados pelo ordenamento jurídico), e os resultados eventualmente diferentes nas decisões advém de diferentes valorações dadas pelos juízes.
Além disso, ele diz que não se pode lançar mão do uso da linguagem para deturpar a finalidade da norma, já que não se pode deixar de observar as pautas intelectuais.
Estaé amargem de discricionariedade que Dworkin contesta ao propor uma solução alternativa que seria uma vinculação a uma idéia de moral jurídica ideal para pautas intelectuais.
A partir destes problemas, R.Dworkin critica[10] a teoria do arbítrio judicial defendida por Hart, que, ainda segundo ele, é imanente ao positivismo, construindo sua teoria em cima do caráter jurídico dos princípios e na concepção do “direito como integridade”.[11]
Aliás, nesta teoria, R.Dworkin relaciona a criação literária e a jurisdição/aplicação judicial do direito, o que passa a constituir o aspecto fundamental em sua teoria. Da mesma forma, ele enfrenta o ponto mais controvertido de sua teoria – a existência de uma única resposta correta no direito -, assim como rechaça as críticas daqueles que, se atendo principalmente à prática jurídica, estão convencidos da existência de uma única resposta adequada ao caso examinado; afirma, por fim, que os conflitos entre princípios são mais raros do que entendem os positivistas.
De forma oposta a Hart, ele afirma que os casos difíceis possuem uma única resposta correta e a teoria daquele sobre os casos difíceis é incompleta e insatisfatória, tanto sob o viés justificativo como o descritivo.
4 –QUAIS OS LIMITES DA DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL?
Como podemos notar, a questão da discricionariedade judicial é um ponto fulcral tantona teoria neopositivista de Hart, quanto na teoria construtivista dos direitos de Dworkin, por se fundarem nas idéias de completitude deprincípios e regras, logo, a depender da linha que se assuma, respostas distintas se oferecerão.
Adivergência entre Hart e Dworkin no que tange à existência, ou não, de discricionariedade do magistrado em casos difíceis, pode ser mais bem explicitada ao apontarmos as três acepções do termo “discricionariedade”, elencadas por Dworkin.
A primeira delas diz respeito à aplicação, por subordinados, dos critérios estabelecidos por uma autoridade superior, ou, mais especificamente, na escolha, pelo estado-juiz, entre os critérios que um homem razoável poderia adotar.
A segunda estaria ligada à falta de revisão da decisão tomada por uma autoridade superior. Esses primeiros significados encerram, para Dworkin, uma discricionariedade em sentido fraco, amparadas também por Hart.
Já a terceira acepção indica, de acordo com Dworkin, o foco da discordância[12]. Ela se relaciona com a discricionariedade em sentido forte, significando a ausência de vinculação legal a padrões previamente estabelecidos ou, ainda, à idéia de que os padrões atuais não implicam qualquer dever legal sobre o juiz para que ele escolha de uma determinada forma.
Esta última acepção estaria, por fim, ligada às questões da completude ou incompletitude do direito, da natureza legal ou meramente moral dos princípios, da competência ou incompetência do magistrado de criar leis.
A idéia central deste ponto é: teria o juiz o dever legal de decidir de uma forma, em caso de lacuna da lei, para usar o termo cunhado por Hart, ouem casos difíceis, da única resposta correta, para utilizar o termo criado por Dworkin?
E a resposta não poderia ser outra: Para o neopositivismo de HART, nos casos em que não exista uma norma especificamente aplicável, deve o juiz decidir com discricionariedade, pois, deve considerar que o direito não tem como oferecer respostas a todos os casos que surgem, não se podendo falar na existência a priori de uma solução correta. DWORKIN, por seu turno, sustenta que os casos difíceis têm uma única resposta correta.
Para deixar o que vem sendo dito aqui mais claro, resta claro que à medida que mergulhamos nas premissas de cada uma das teorias defendidas por eles, vemos surgir o paradoxo entre ambas, pois, em Hart, vemos uma Teoria descritiva; por outro lado, em Dworkin,temos uma Teoria Descritiva-Justificativa.
Um dos pontos comuns às duas teorias é o fato de Dworkin afirmar que não existe discricionariedade judicial nos moldes do que é defendido pelo neopositivismo, uma vez que, em havendo conflitos, sempre existiria solução no ordenamento por meio dos princípios, dessa forma as lacunas deveriam ser preenchidas por estes, havendo completitude.
Por seu turno, Hart defende que a discricionariedade judicial seja utilizada à medida que nas regras não se encontrem soluções, relatando que esse preenchimento se daria pela aproximação analógica do contexto lingüístico das regras;
É necessário que se afirme aqui que a liberdade defendida por Hart no âmbito de atuação da discricionariedade judicial não é plena, livre de quaisquer limites, pois deve o magistrado agir dentro dos limites de suas razões e da mesma forma que um legislador consciente o faria[13].
5–A DISCUSSÃO ENTRE HART E DWORKIN NO CAMPO DA JUDICIALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS, NA REALIDADE BRASILEIRA.
Após termos feito breve incursões nos pensamentos de Hart e Dworkin, e demonstrado, ainda que superficialmente, o contraste de ambos quanto ao que seria discricionariedade judicial, e seus limites dentro de cada teoria, adentraremos no ordenamento jurídico brasileiro, de maneira que inicialmente contextualizaremos a discussão aqui tratada no arcabouço normativo nacional, para, então, mergulharmos em dois casos concretos para que possamos perceber a diferença prática entre as duas teorias propostas.
O deslocamento das questões do campo político para o espaço jurídico é, sem dúvida, um sintoma de re-democratização na tomada de decisões.
Com efeito, a tradição brasileira de jurisdição constitucional se fortaleceu a partir de 1988, à medida que a Constituição Federal vigente canalizou demandas sociais até então represadas, refletindo, assim, uma “Carta-compromisso” de modificação social do país, de sorte a jurisdicionalizar as mais importantes questões políticas no Brasil[14].
No contexto brasileiro, uma das formas que as minorias têm de se inserir no âmbito das políticas públicas, ou seja, no processo de tomada de decisões da classe política é, especificamente, a judicialização da questão política, seja por intermédio do Ministério Público, ou por entidades de classe, associações, sindicatos ou ação popular.
Da mesma forma que ocorre nos EUA, aqui no Brasil os grupos empresariais detêm grande influência no processo de definição das políticas públicas pelos Poderes Executivo e Legislativo, excluindo, na maior parte dos casos, os mais prejudicados por essas decisões do processo democrático formal.
Ao escrever sobre o tema num artigo publicado em periódico de grande circulação no Brasil, Dworkin[15] afirma que o controle judicial sobre os atos do Poder Legislativo não é um modelo perfeito, acabado de exercício democrático do poder, mas é, pois, um instrumento viável, que se tem mostrado eficiente na realidade norte-americana.
Na realidade dos EUA, devemos ressaltar que o impacto da revisão judicial das decisões pelos demais Poderes tende a ser menor, à medida que os juízes também são eleitos, sistema não adotado no Brasil[16].
Surge então o apelo que Dworkin faz em sua obra “O Império do Direito”[17] para que os juízes - norte-americanos - decidam com base em princípios eminentemente jurídicos e não políticos.
No caso brasileiro, a revisão de políticas públicas pelo Poder Judiciário recebe críticas mais intensas pela sociedade e pelos membros dos demais Poderes, pois estes, tendo sido eleitos, sentem-se minimizados pelo fato de que a legislação brasileira permite a revisão de seus atos por intermédio do sistema misto de controle de constitucionalidade.
Para que fique claro o que se diz aqui, a doutrina, na realidade jurídica brasileira, divide o sistema judicial de controle de constitucionalidade em duas subespécies: o concentrado, modelo austríaco, o qual atribui a um único órgão a função de julgar a constitucionalidade das leis e atos normativos; e o difuso que, indiferentemente, permite a qualquer juiz conhecer da matéria e decidir sobre a constitucionalidade de qualquer ato normativo lato senso.
No Brasil, as decisões em matéria de controle concentrado de constitucionalidade das leis têm sido conservadoras, legitimando, pois, as decisões tomadas pelo Poder Executivo.
Assim, não obstante a judicialização das políticas públicas nas outras instâncias desempenhe um papel fundamental para o princípio democrático no país,não é raro que tais decisões jurisdicionais acabam “atropeladas” por uma outra decisão do Supremo Tribunal Federal - STF, defendendo, de forma aberta, a adoção de súmulas vinculantes como forma de tentar racionalizar as decisões judiciais no país.
Assim, temos dois lados no processo da judicialização das políticas públicas, que, com suas virtudes e defeitos, tem gradualmente evoluído e sido legitimadas como uma forma de resistência do processo de privatização da organização estatal e conseqüente redução de seus serviços sociais.
R. Dworkin traz, assim, importantes argumentos em favor da tese da revisão dos atos políticos por parte do Poder Judiciário, defendendo-o como elemento da democracia e forma de redução da excessiva ingerência dos grupos estatais nas consecuções de políticas públicas de Estado.
Por outro lado, o modelo de discricionariedade de Hart não leva à utilização da lei de forma ampla e extra-partes, mas proporciona uma maior reflexão sobre as soluções a serem adotadas, e que não são encontradas em contexto alheio ao ordenamento jurídico.
No sistema legal Brasileiro, essa discricionariedade é conferida ao ao juiz, no art. 126 c/c art. 335[18], ambos do C.P.C. c/c art. 4º e 5º[19] da L.I.C.C.[20]
Dessa forma, o juiz, nos casos difíceis, não tem como se eximir de julgar, para tanto afirmando que há lacuna ou obscuridade na lei; nesses casos, aonde ele buscará a solução, se o poder legislativo reconhece que pode não dar respaldo a todas as situações da vida real? Deverá recorrer à analogia, costumes, e princípios gerais de direito; não deixando de atender à finalidade social e às exigências do bem comum contidos na lei.
Embora Hart não faça expressa referência aos princípios, ele fundamenta a ascensão e importância das regras de acordo com os costumes sociais.
Dessa forma, essa discricionariedade do juiz está restrita ao ordenamento jurídico, e sua "criação legislativa" está fundamentada pelo próprio legislador. Logo, o legislativo, sendo o poder legitimado na elaboração de leis, confere poderes ao estado-juiz para que restritivamente, frente à ausência de suaingerência, o juiz venha a cumprir seu papel.
6 – CONCLUSÃO.
A discussão do que seja discricionariedade para Hart e Dworkin indica, assim, à existência de um dever positivo do magistrado de decidir de uma maneira ainda em casos difíceis. Esse ponto requer uma série de outras subquestões, adjacentes à completitude ou à incompletitude da lei, à natureza legal ou moral dos princípios, à tolerância da discricionariedade em sentido forte, é dizer, a possibilidade do juiz poder elaborar leis, à distinção entre princípios e regras, ou à existência de uma regra social ou de uma normativa de reconhecimento.
Postas essas questões, temos que o sistema interpretativo bifásico de Hart indica, ainda com a inclusão de princípios convencionais pela regra de reconhecimento, que seja utilizada a discricionariedade judicial em sentido forte na decisão dos chamados casos difíceis. Não determina, portanto, para tais casos, qualquer dever legal do magistrado para buscar uma análise holística da lei que forneça critérios objetivos, e que, conseqüentemente, diminua a chance de erros judiciais.
Embora concorde que deverão vigorar, no caso, os princípios morais, eles, por não serem vinculante na teoria positivista, poderão ser considerados pelo juiz.
Nesse diapasão, o sistema interpretativo monofásico de Dworkin sobrepõe-se ao de Hart – abstraídos os aspectos específicos de uma ou de outra legislação -, ao permitir a escolha, pelo magistrado, entre critérios “que um homem razoável poderia interpretar de diversas maneiras”[21], propondo, concomitantemente, a existência de um dever legal do juiz de dever analisar de modo mais profundo as fontes da lei, inclusive no que toca aos princípios não convencionais; a lei deve ser capaz de alcançar os casos difíceis, dando subsídio a esses casos critérios bem mais objetivos do que o recurso à discricionariedade em sentido forte. A lei deve der capaz de alcançar os casos difíceis, sem retirar do juiz sua discricionariedade em sentido fraco.
[1]Regras primárias são as que impõem obrigações civis aos cidadãos
(v.g., obrigação natural dos pais cuidarem dos filhos).
[2]Já as regras secundárias, por sua vez, são aquelas que detêm caráter constitucional sobre a expedição de leis processuais que regulam a função jurisdicional. No exercício dos poderes atribuídos por elas, os legisladores e os juízes estabelecem regras primárias contidas em leis e em sentenças.
[3]É bom que se diga que a teoria de Hart propõe o conceito depedigree,que vem a ser o reconhecimento de validez social de acordo com a regra de conhecimento, porque é dela que todas as outras normas se originam.
[4]Neste sentido, Juan Ramón Páramo afirma: “No se trata de una norma jurídica en sentido estricto, ni de una mera convención, uso o costumbre. El concepto de regla de re-conocimiento parece estar a cabalo entre dos esferas, una jurídica y otrafáctica, ya que, si bien por un lado proporciona loscriterios para laidentificación de otrasreglas – y en este sentido, podría ser calificada como “derecho” – por otro lado, cuandohablamos de suexistencia, formulamos enverdadun enunciado externo sobre unhecho efetivo que se refiere a lamaneraen que son identificadas lasreglas de un sistema.”. PÁRAMO, Juan Ramón de. H. L. A. Hart y a La Teoria Analítica delDerecho, pp. 248-249.
[5] Essa outra característica das regras jurídicas faculta o uso de termos genéricos, como, por exemplo, nos contratos, a expressão “boa-fé”.
[6]“…in the penumbral situation judges must necessarily legislate[1]” (HART, H.L.A., Positivism and the Separation of Law and Morals. Harvard Law Review, v. 71, 1958, p. 593.
[7] Importante dizer que, para Hart, quando o magistrado decide os hard cases utilizando-se de elementos da moral/política, não aplica o direito, mas, sim, cria um direito novo, o que o leva a considerar que não existe uma única decisão correta para os casos difíceis.
[8] Para DWORKIN, a “mais importante e fundamental reformulação da idéia de positivismo jurídico (...).” Dworkin, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 42. Trata-se da obra O conceito de Direito, traduzida por A. Ribeiro Mendes e publicada na sua quarta edição pela CalousteGulbenkian, Lisboa, em no ano de 2005.
[9]Nesse caso, quando os fatos ocorreram, ainda não havia decisão judicial.
[10]“a lei freqüentemente se torna aquilo que o juiz afirma ser”. DWORKIN, Ronald. O império do direito: O que é o direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 4.
[11]A premissa da teoria do “direito como integridade” de Dowrkin, parte de um ponto em que, não obstante seja fundado na construção interpretativa, integrando a norma, elementos como dados empíricos, assim como políticas governamentais, os integra à medida que formam aquilo que, segundo Dworkin, faz do direito um conceito interpretativo; vide nota 12 acima.
[12]Dworkin, assim, não advogaria a tese de que o estado-juiz não teria qualquer discricionariedade, mas a tese de que o juiz não teria a discricionariedade em sentido “forte”
[13] “É importante que os poderes de criação que eu atribuo aos juízes, para resolverem os casos parcialmente deixados por regular pelo direito, sejam bem diferentes daqueles de um órgão legislativo: não só os poderes do juiz são objeto de muitos constrangimentos que estreitam sua escolha, de que um órgão legislativo pode estar consideravelmente liberto, mas, uma vez que os poderes do juiz são exercidos para ele se libertar de casos concretos que deve resolver, não pode usá-los para introduzir reformas de larga escala ou novos códigos. Assim, os seus poderes são intersticiais, e também estão sujeitos a muitos constrangimentos substantivos.”. Obra citada.HLA Hart.
Entretanto, haverá pontos em que o direito vigente não consegue ditar qualquer decisão que seja correta e, para decidir os casos em que tal ocorra, o juiz deve exercer os seus poderes de criacão do direito. Mas não deve fazer isso de forma arbitrária: ou seja, deve sempre ter certas razões gerais para justificar sua decisão e deve agir como um legislador consciencioso agiria, decidindo de acordo com as suas próprias crenças e convicções. Mas se ele satisfizer estas condições, tem o direito de observar padrões/ razões para a decisão, que não são ditadas pelo direito e podem diferir daqueles seguidos por outros juízes confrontados com casos difíceis semelhantes.” (HART, Herbert L. A. O conceito de direito. 2. ed. Tradução de A. Ribeiro Mendes, Lisboa: Fundação CalousteGubenkian, 1994), p. 336.
[14]Nesta seara, são deveras fortes os argumentos expendidos por Dworkin:“Sem dúvida, é verdade, que em uma democracia o poder está nas mãos do povo. Mas é por demais claro que nenhuma democracia proporciona a igualdade legítima de poder político. Vários cidadãos, por um ou outro motivo, são destituídos de privilégios. O poder econômico dos grandes negócios garante poder político especial a quem os confere... devemos, assim, levar em conta ao julgar quanto os cidadãos realmente perdem de poder político sempre que uma questão sobre direitos individuais é retirada do legislativo e entregue aos tribunais. Alguns perdem mais que outros apenas porque têm muito mais a perder...”. DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípios. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 27.
[15] “Dessa forma, não é anti-democrático, mas parte de uma combinação estrategicamente arguta para garantir a democracia, estabelecendo um controle judicial sobre o que o Legislativo prioritariamente decide, garantindo-se que os direitos individuais, que são pré-requisitos de sua legitimidade, não serão violados. É natural que os juízes, assim como os legisladores, podem cometer erros em relação aos direitos individualmente considerados. Mas a junção de legisladores majoritários, revisão judicial e nomeação dos juízes pelo Poder Executivo mostrou ser um dispositivo valioso e democrático para reduzir a injustiça política no longo prazo.” DWORKIN, Ronald. Juízes políticos e democracia. O Estado de São Paulo, 26 abril de 1997. Coluna “Espaço Aberto”.
[16] Aliás, é de bom alvitre ressaltarmos que o sistema judicial norte-americano difere muito daquele adotado no Brasil, pois o modelo ianque prevê um ordenamento jurídico baseado na jurisprudência, em casos concretos (Common Law), ao passo que o adotado aqui é o baseado em leis (Civil Law).
[17]DWORKIN, Ronald. O império do direito: O que é o direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
[18]Ambos artigos são do Código de Processo Civil:
Art. 126 - O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito. (Alterado pela L-005.925-1973).
Art. 335 - Em falta de normas jurídicas particulares, o juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e ainda as regras da experiência técnica, ressalvado, quanto a esta, o exame pericial.
[19] Ambos da Lei de Introdução ao código civil:
Art. 4º - Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
Art. 5º - Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.
[20]Embora seja denominada Lei de Introdução ao Código Civil, o Decreto-lei n. 4.657/ 42 não integra o Código Civil, não está a ele vinculado. A LICC é muito mais ampla do que seu nome indica. É uma lei autônoma, com vida própria e desvinculada de qualquer diploma legal. Tanto é verdade que ela continua vigendo e eficaz mesmo após a revogação do Código Civil de 1916.
Diferentemente das demais normas que regem relações sociais, a LICC elenca normas jurídicas, e indica a forma como se deve interpretá-las e aplicá-las, determinando-lhes sua vigência e eficácia, assim como sua dimensão temporal e espacial. Em razão disso, a LICC é indicada pela doutrina majoritária como uma “norma sobre normas”. Ou ainda, é denominada “lexlegum”, “superdireito”, “sobredireito”.
É também conhecida como “Código de Direito Internacional Privado”, à medida que aponta critérios de solução de conflito entre o direito nacional e o direito estrangeiro, no que tange aos direitos sobre as pessoas, as obrigações, as sucessões e as coisas.
[21]DWORKIN, Ronald. O império do direito: O que é o direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.66 e 329.
Procurador Federal. Mestre em Ciências Jurídico-Econômicas pela Universidade do Porto/PT.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BASTOS, Bruno Medeiros. Da relação entre a interpretação e a discricionariedade judicial, dentro do contexto da discussão travada entre Dworkin e Hart Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 dez 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42102/da-relacao-entre-a-interpretacao-e-a-discricionariedade-judicial-dentro-do-contexto-da-discussao-travada-entre-dworkin-e-hart. Acesso em: 23 dez 2024.
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