Resumo:Trata-se de artigo que investiga o percurso histórico do princípio da boa-fé, passando pela antiguidade até período mais recente, que influenciou as codificações atuais.
Palavras-chaves: Princípio da boa-fé. Percurso histórico.
Introdução
Partindo de uma perspectiva histórica, este artigo aborda o surgimento da ideia de boa-fé, a qual nasceu sobre o nome de fides e tinha como cenário de atuação o mundo jurídico romano. Assim como Roma, o conceito de fides sofreu inúmeras transformações. Partindo de uma ideia de “garantia da palavra dada” em uma relação de subordinação entre cliens em relação ao pater. Posteriormente vigorou como pública fides nos contratos internacionais, garantindo que a coletividade romana os respeitaria. E finalmente, com a bona fides deixando de ser um preceito ético para ser um preceito normativo, tornando-se algo inerente ao conteúdo econômico dos contratos.
Por fim, durante o período clássico, foi também utilizada como expediente técnico-jurídico de uso da jurisdição, auxiliando os jurisconsultos a aplicar o direito romano aos novos problemas jurídicos que não possuíam leis aplicáveis à sua solução. Era a bonafideiiudicium.
Com a queda do império romano ocorre a vulgarização de seu direito, que passa a sofrer influências germânicas. A unidade política perdida será parcialmente restabelecida com o fortalecimento da Igreja. A boa-fé passa a vigorar em um cenário que testemunha a chamada ‘vitória da fé’.
A bona fides agora é vista pelo direito canônico como uma “ausência de pecados”, o inverso da má-fé. Com a valorização do instituto da promessa pelo direito canônico, que a atribuía um valor moral, a bona fides passa a outorgar força obrigatória à vontade dos contratantes. Assim o consensualismo deixa de ser uma exceção e passa a ser um princípio geral. O direito canônico teve o mérito de transformar a conotação técnica da bonafideiiudicium romana em um instituto com o caráter de princípio geral do direito.
A unidade política e social, fragmentada em poderes locais durante todo o período medieval, foi resgatada pelo Estado Moderno. Os progressos alcançados com o desenvolvimento do comércio nestes novos Estados, apresenta como principal beneficiário a burguesia, que apesar de ainda não ter o poder político que está nas mãos da nobreza, possui o poder econômico.
Durante o século XVIII, com uma maior consciência de classe, a burguesia volta-se contra o absolutismo estatal, que anteriormente apoiara, colocando-se no controle do poder político: O Estado Absolutista transmuta-se em Estado de Direito Liberal.
Este novo Estado é chamado de liberal por ser composto por um corpo mínimo de direitos e garantias individuais, elencados pela burguesia e contidos na Constituição. Com o objetivo de afastar toda a arbitrariedade existente no Ancient Regime, surge o princípio da legalidade, dando início ao chamado ‘primado da lei’. Ocorre também a tripartição dos poderes, que tem por consequência a separação entre a elaboração e a aplicação da lei. Essa aplicação deixa de espelhar a vontade popular e possa a restringir-se ao estritamente contido na lei.
Em decorrência desse processo, temos o esvaziamento da boa-fé contratual, uma vez que, com o formalismo extremado existente e o mito da neutralidade do juiz, aquilo que foi livremente estabelecido pelas partes não pode sofrer qualquer tipo de intervenção estatal.
Na busca por ‘eternizar’ seus valores, a burguesia cria um conjunto de leis que resultariam em um Direito certo. Com as codificações, todas as arbitrariedades e incertezas restariam dissipadas. Estabelecendo-se em lei a medida de todos os comportamentos, a atividade judicante estaria finalmente controlada.
Nas codificações a boa-fé é tratada com a mesma perspectiva do direito canônico. Passando a ser uma matéria de ‘foro íntimo’, existe sobre a forma de regra moral, é uma consequência dos ditames do ‘amor ao próximo’. A boa-fé atua assim, como mero reforço ao princípio da obrigatoriedade do pactuado.
É necessário compreender que para um sistema jurídico que reduzia o diálogo entre o intérprete e o texto legal, a boa-fé era um problema, pois atuaria como um elemento de imprecisão do sistema, gerando continuamente novos deveres aos contratantes, indo contra os princípios da segurança jurídica e previsibilidade alcançados pela revolução burguesa e transformando-se em espaço aberto a modificação de valores contratuais.
Nem todos os códigos trataram a boa-fé da mesma forma. Por ter sido escrito um século depois o BGB alemão apresenta muitas diferenças em relação ao Codefrancês. Influenciado pela Escola Histórica, este documento foi escrito sobre o pressuposto de que diversamente do positivismo científico francês, o Direito não seria simplesmente o resultado da atividade racional de um legislador, mas sim uma síntese do espírito do povo.
Esta diversa forma de ver o Direito refletiu-se de alguma maneira na boa-fé. Inspirada nas práticas comerciais, a boa-fé é captada em sua dualidade possessória e obrigacional, sob a forma de cláusula geral. Infelizmente a prática jurisprudencial alemã que seguiu a criação do Código, não permitindo que esta cláusula geral atua-se com toda a sua pontencialidade.
No início do século XX a codificação começa a viver uma grave crise. O fosso que sempre existiu entre os fatos escolhidos livremente pelo legislador para receber aspectos de juridicidade e os reais anseios e preocupações da sociedade se agrava. Com a ocorrência de tais acontecimentos inicia-se uma certa flexibilização do perfil rígido das normas do Código Civil, extinguindo-se assim, um dos principais pressupostos do formalismo conceitual do século XIX.
A boa-fé na antiguidade
Uma das primeiras raízes do que hoje conhecemos por boa-fé, pode ser identificada no cenário jurídico romano pelo nome de fides. Instituto de grande importância criado pelos próprios romanos, seu significado sofreu uma notável expansão e variou conforme as influências filosóficas recebidas pelos juristas romanos e consoante o campo do direito onde instalada.[1]
A boa-fé foi primeiramente utilizada nas relações de clientela, em que existia um contexto de desigualdade jurídica. Os cliens estavam sujeitos ao poder dos pater e ocupavam a posição entre cidadãos livres e escravos, trocando sua lealdade e obediência por proteção.[2] A fides possuía aqui um papel duplo, era tanto o dever de fidelidade do cliens em relação ao pater, quanto e principalmente, uma garantia de proteção do pater ao cliens. E é justamente sobre a forma de promessa, que a fides vai evoluir, tendo como um dos vários institutos promissórios derivados desta, o da garantia da palavra dada.[3]
É na área das relações internacionais que a expressão fides aparece relacionada aos contratos. Em um tratado entre Roma e Cartago, cada uma das partes contratantes prometia sobre a própria fé – pública fides, ou seja, sobre a fé que liga a coletividade ao respeito das convenções publicamente pactuadas - a assistência ao cidadão da outra cidade para a proteção dos interesses nascidos dos negócios privados.[4]
Judith Martins Costa entende que este tratado demonstra que a fides fazia parte do núcleo normativo contratual romano, seja dos contratos entre as cidades como dos contratos de direito privado, já que no mundo romano “a diferença entre os contratos de direito internacional e os contratos de direito privado interno não residia na estrutura de ambos, mas no diverso mecanismo protetivo que é próprio de cada um deles”.[5]
A utilização do instituto da fides em áreas tão diversas como a clientela e os contratos externos e internos, deu origem a duas vertentes que fizeram história na experiência jurídica romana. Judith Martins Costa, aponta a denominação utilizada por Paolo Frezza para classificar estas duas vertentes em relações intrasubjetivas– as relações de clientela – e relações intersubjetivas – relações entre sujeitos pertencentes à coletividade. Define a autora “nas relações intrasubjetivas tem função de autolimitação (fides promessa) e intento protetivo. Já nas relações intersubjetivas a função é a da garantia do respeito à palavra dada (fit quod dicitur). Observa-se aí a transmutação do campo semântico, de um prisma primeiramente conotado à esfera das relações de clientela às relações negociais privadas, transmutação essa, contudo, que vai adquirir especial colorido. “Valho-me ainda do estudo de Paolo Frezza que, por suas observações e conclusões, ilumina as razões de uma especialíssima conotação que atingirá posteriormente o termo”.[6]
Este é o momento da passagem da fides à bona fides, deixando de ser um preceito ético para ser um preceito normativo. Este preceito transpassa as barreiras do primitivo formalismo romano, fundado no mundo mágico da forma; e passa a reger os negócios mais relevantes do ponto de vista da prática cotidiana, como a compra e venda, a locação e o contrato de sociedade, por exemplo.
A fides tornou-se portanto, algo inerente ao conteúdo econômico dos contratos e sua utilização estendeu-se do iuscivili ao iusperegrini com a aceleração do tráfego jurídico entre cives e perigrini.
Traço saliente dos bonaefideiiudicia constitui, nos dizeres de muita doutrina, a sua aplicabilidade a cives e a peregrini: seriam iudicia universais. A afirmação desta universalidade surge natural, por se ligar a explicações globais: a fides seria um dado extrajurídico, ético-social, ditado pela vida e, como tal, insensível às restrições prórpias do iuscivile; por natureza, implicaria todas as pessoas que, honestamente, se adstrigissem a certa conduta; senda a sua recepção, em esquemas jurídicos, precedida da criação do praetorperegrinus, nada mais razoável do que esperar um âmbito geral de incidência.[7]
Durante o período clássico, com a influência do direito pretoriano, a fides bonadeixa de atuar nas relações negociais privadas romanas para atuar no expediente técnico-jurídico de uso da jurisdição[8], como resultado deste fenômeno surge a bonafideiiudicium.
O sistema jurídico romano era totalmente assentado no princípio da tipicidade e essencialmente processual. Com a evolução econômico-social romana, novos problemas jurídicos começaram a aparecer, dificultando em muito o trabalho dos jurisconsultos que indagados pelos interessados deveriam indicar uma fórmula típica ao problema jurídico posto. Posteriormente esta formula seria concedida ou não pelo pretor. O caminho para a resolução desta ausência de leis para regular novos conflitos foi a bonafideiiudicium“o demandante apresentava uma fórmula especial, cujo intentio, à falta de lex, baseava-se na fides. Nessa perspectiva, revela-se o papel criador do pretor romano, levando a efeito uma atividade de interpretação causuística do Direito: por meio da bona fides solucionavam problemas que lhes eram apresentados segundo as exigências da vida e o sentido de justiça”.[9]
Enquanto bonafideiiudicium a fides possuía uma acepção objetiva, com seu desenvolvimento ainda no período clássico, ela desenvolve um sentido subjetivo. Como exemplo disso temos a projeção da bona fides para a usucapio, que possuía como um dos seus requisitos a ignorância do possuidor quanto aos vícios que obstavam a aquisição do direito de propriedade.
Portanto, o conceito de boa fé traduzia situações jurídicas diferentes em um mesmo período histórico. Assim pronunciou-se Menezes Cordeiro a esse respeito:
Este estádio foi alcançado, em parte, mercê de dois fenômenos, que importa rememorar: a difusão horizontal e a difusão vertical. Na difusão horizontal, uma expressão qualificativa de um instituto jurídico concreto, comunica-se a um princípio de direito, passando também, a traduzi-lo (...) finalmente, a evolução do bonun et aequum e da equitaslevá-los-ia, de expressões técnicas, a princípios de grande extensão, acabando por mesclá-los com a bona fides que, a partir de então, traduz, também, justiça, honestidade e lealdade (difusão vertical).[10]
Com a queda do império romano ocorre a vulgarização de seu direito, pois este uma vez distante de suas fontes clássicas, passa a existir ao lado dos costumes locais trazidos pelos povos germânicos, vigorando assim uma pluralidade de ordens jurídicas.
Com o Direito Romano vulgar, a boa fé apresenta-se diluída em uma ambivalência de sentidos, que não obstante ter servido como arma de combate ao formalismo pelo pretor, acaba por reduzir-se a mero tópico formal, destituída de conteúdo ao lado de outras referências.[11]
A Transferência Cultural entre a Boa-fé Romana e Canônica
Com a fragmentação do Império Romano, a Europa tornou-se uma pluralidade de comunidades regionais distintas umas das outras. A unidade política perdida será parcialmente restabelecida com o fortalecimento da Igreja. Nessa nova sociedade de racionalidade teocêntrica, em que o poder temporal era destituído de autoridade, existiu a chamada vitória da fé. O Direito positivo possuía uma legitimação assentada em valores sobrenaturais, incorporando a metafísica ao pensamento jurídico, da qual este não se destituiria até o século XIX.
Aparentemente o direito canônico trata da boa-fé no mesmo campo em que esta era abordada pelo direito romano, vale dizer, na questão da tutela da usucapião e dos contratos consensuais. No entanto, o significado de bona fides será totalmente diverso.O direito canônico introduz um poderoso polo de significados - a boa-fé é vista como “a ausência de pecado”, vale dizer, como estado contraposto à má-fé. Segundo Geraldo Broggini, a “boa-fé ética” e a boa-fé jurídica, juntam-se à boa-fé teológica.
O direito canônico atribuía um valor moral à promessa, cuja quebra seria um pecado. Como consequência disso, a bona fides passa a guardar consigo o mérito de outorgar força obrigatória à vontade dos contratantes, elevando o consensualismo do lugar de exceção ao de princípio geral. Segundo Menezes Cordeiro:
No Direito romano a boa-fé apareceria como um conceito e um alcance substancialmente diferentes, consoante aplicada às obrigações ou à posse (...) No Direito canônico, pelo contrário, teria ocorrido uma velha aspiração dos estudiosos da boa-fé: a sua unificação conceptual. Na linha dos valores próprios do Direito da Igreja, a boa-fé dependeria sempre da consideração do pecado: na praescriptio, a mala fides superveniens, traduzindo uma situação de scientiana constância do direito alheio, corporizaria um factor de conscientia, obstáculo ao seu funcionamento; por isso foi alterado o brocardo romano mala fides superveniens non nocet. Nos muda pacta, a idéia de pecado teria sido, também decisiva: o respeito pela palavra dada impõe-se, sob pena de violação dos valores transcedentais.[12]
A boa-fé perde assim a conotação técnica que existia na fideibonaiudiciae passa a ter o caráter de princípio geral.
A boa-fé nas codificações oitocentistas
Cumpriu ao Estado Moderno a tarefa histórica de resgatar a unidade política e social fragmentada em poderes locais desde a queda do Império Romano. Coube a este Estado abstrato e impessoal a transição para uma maior concentração de poderes, valendo-se da premissa de que quanto mais concentrado mais forte seu poder. O Estado moderno erige-se como nação soberana, estendendo seus poderes até os limites de seu território e não mais, aos fragmentados poderes regionais.
De todas as transformações sofridas pelos Estados Modernos, a mais profunda ocorreu no século XVIII. A burguesia tem seu poder aumentado pelos progressos alcançados com o desenvolvimento do comércio, no entanto, um maior poder econômico não era traduzido em poder político, que permanecia nas mãos da nobreza. Com uma maior consciência de classe, a burguesia volta-se contra o absolutismo estatal, que anteriormente apoiara, colocando-se no controle do poder político. O Estado Absolutista transmuta-se em Estado de direito liberal.[13]
Este novo Estado é chamado de liberal porque é composto por um corpo mínimo de direitos e garantias individuais contidos na Constituição. Conjunto de normas este que elege como prioridades os valores escolhidos pela burguesia, para a regência deste novo Estado, procedendo-se ao que por muitos é chamado de uma ditadura econômica. Para Pietro Barcellona o Estado converte-se em instrumento de sustentação do desenvolvimento capitalista.[14]
Este autor também estabelece aquilo que seriam os postulados do Estado de direito liberal e por conseguinte os postulados do Direito Privado moderno:
1) primado da lei;
2) abstração e generalidade das normas;
3) divisão dos poderes;
4) distinção entre Direito Público e Direito Privado.
Junto com o chamado ‘primado da lei’ nasce o princípio da legalidade, afirmando que todos os poderes do Estado derivam da lei. Esta é uma clara tentativa de afastar toda a arbitrariedade que existia no Ancien Regime. Com o princípio da legalidade, também entra em cena a tripartição dos poderes idealizada por Montesquieu, e uma das consequências dessa tripartição é a exclusividade do poder legislativo em expressar a vontade popular, já que eleito pelo povo, em forma de leis que seriam a corporificação de uma razão universal.[15]
Com a tripartição dos poderes ocorre a separação entre a elaboração e a aplicação da lei, surge o mito da neutralidade do juiz que distancia-se da vontade popular e passa a aplicar tão somente o contido em lei. Com o passar do tempo essa neutralidade acentuada vai resultar em um direito abstrato, aplicado de maneira ineficiente e afastado da realidade social.
Ocorre também o esvaziamento da boa-fé contratual, já que com a valorização do mito contratualista aquilo que foi livremente estabelecido pelas partes não pode sofrer qualquer tipo de intervenção do Estado.
A Vontade Burguesa Codificada
A codificação foi uma reação da burguesia contra o pluralismo jurídico e a valorização dos costumes que imperaram na Idade Media, resultando desigualdade e arbitrariedade. O monismo jurídico e a codificação seriam uma garantia de igualdade e segurança jurídica.
Houve um tempo em que os juristas aderiram firmemente à opinião de que deveria ser possível estabelecer uma clareza e segurança jurídica absolutas através de normas rigorosamente elaboradas e especialmente garantir uma absoluta univocidade a todas as decisões judiciais e a todos os atos administrativos.[16]
A codificação é um reflexo do exercício da soberania nos novos Estados nacionais, para cada Estado deveria existir um código. No entanto foi o Iluminismo um dos maiores responsáveis pelo advento da codificação. A lei passou a ser considerada como um produto da razão, caberia somente ao Estado definir o Direito Contemporâneo. O Iluminismo e também o Jusracionalismo defendiam a construção de um direito sobre uma base de princípios e regras fundadas na razão, reconhecia ao indivíduo liberdades e direitos que seriam inerentes a sua natureza. E, ainda, por sua tendência à unificação e ao refundimento completo do conteúdo do direito sobre a base do individualismo e da relevância atribuída à vontade humana como fonte criadora de vínculos jurídicos.[17]
O Estado Liberal caracterizou-se por uma postura resumida no brocardo laissez-faire, laissez-passer. Para que se assegurasse o livre desenvolvimento das potencialidades individuais, o Estado não deveria interferir nas relações sociais da vida civil, pressupondo-se que a sua atuação era inevitavelmente sufocante, tendendo a esmagar e a espoliar os particulares. Basicamente, o aparato estatal só era autorizado a agir para defender o espaço em que se realizava a Liberdade, qual seja, a Propriedade Privada: com efeito, o centro do Estado de Direito Liberal era a garantia da propriedade privada, para qual se construiu toda uma máquina repressiva.
Sob o comando genérico e abstrato das normas jurídicas, o Estado de direito liberal limita-se a estabelecer as “regras do jogo” da sociedade moderna, que é levada a se reconhecer na “tábua de valores” de uma única classe: a burguesia. Nesta perspectiva, as codificações traduzem um Direito certo, e toda arbitrariedade e incerteza restariam dissipadas, ao se inscrever na lei a medida dos comportamentos e na atividade judicante, seu controle.[18]
O tratamento dado à boa-fé nas codificações oitocentistas é contraditório. Ao mesmo tempo em que o Código é fruto de uma luta revolucionária e sintetiza princípios jusnaturalistas e de um Estado Unitário, ou seja, uma ruptura em relação ao Estado Absolutista; ela apresenta algumas permanências, como bem expôs Rosalice Fidalgo Pinheiro “Ao mesmo tempo em que o Code espelha rupturas, revela permanências: como depositário do direito natural, traz consigo valores conquistados pela Revolução e propalados pelo Iluminismo, mas vale-se do Direito esboçado sob a égide do Ancien Regime.”[19]
Nas codificações a boa-fé é tratada com a mesma perspectiva do direito canônico e não como instituto jurídico. Subjetivada, a boa-fé passa a ser uma matéria de “foro íntimo”, existe sobre a forma de regra moral, e na mesma perspectiva do direito canônico é uma consequência dos ditames do “amor ao próximo”, de uma pretensa “ausência de pecado”. A boa-fé atua, assim, como mero reforço ao princípio supremo da obrigatoriedade do pactuado.
Outro elemento que se configurou castrador das potencialidades da boa-fé foi o caráter positivista introduzido pela Escola da Exegese. Essa assentava seu postulado fundamental na vinculação à lei, reduzindo o diálogo entre o intérprete e o texto legal. Neste contexto, a boa-fé passa a ser um problema, já que atuaria como um elemento de imprecisão no sistema, gerando continuamente novos deveres aos contratantes, indo contra os princípios de segurança jurídica e previsibilidade alcançados pela revolução burguesa e transformando-se em espaço aberto para a modificação de valores contratuais.
A ausência da boa-fé foi sentida principalmente no espaço jurídico francês, em que atuou de maneira mais severa a Escola da Exegese. No entanto, seu espaço foi ocupado por outras figuras jurídicas, como a equidade por exemplo que constava no artigo 1135. Isto explica o motivo de o direito francês até nos dias de hoje, reduzir a boa-fé à mera manifestação de equidade. [20]
Aspectos Diferencias da Codificação Alemã
Assim Menezes de Cordeiro, retrata o Código Civil alemão:
O Código Civil alemão corresponde ao ponto terminal de intensa actividadejuscientífica do pandectismo, que se prolongou por todo o século XIX. Na base de um estudo aturado do Direito comum – o direito romano, com determinadas adaptações e em certa leitura – os pandectistas foram levados a confeccionar todo um sistema civil: as proposições jurídicas singulares, os institutos, os princípios e a ordenação sistemática sofreram remodelações profundas, aperfeiçoando-se, evitando contradições e desarmonias e multiplicando o seu tecido regulativo de modo a colmatar lacunas.[21]
O BGB alemão apresenta muitas diferenças em relação ao Code, principalmente por se tratar de um código escrito um século após o francês. Esta “demora” deve-se principalmente a unificação tardia da Alemanha, mas as diferenças existentes entre os dois códigos são também em muito devida a influência da Escola Histórica.
A Escola Histórica compreendia o Direito como um produto histórico, diversamente do positivismo científico francês, o Direito não seria simplesmente o resultado da atividade racional de um legislador, mas sim uma síntese do espírito do povo. Portanto, a codificação alemã foi precedida por uma diversa bagagem doutrinária, e de um diverso modo de formulação do raciocínio jurídico.[22]
Foi sentido também na boa-fé o reflexo destas mudanças, esta não se inspirava nem na doutrina nem no código, sim nas práticas comerciais. Para Menezes Cordeiro o motivo da adoção da boa-fé objetiva pelo direito comercial alemão ainda é um enigma:
Este quadro é surpreendente. Sabe-se, pelas regras que norteiam a evolução o Direito, como fenômeno de cultura, que este não surge sem uma aprendizagem prévia. Ora, não obstante os contributos respectivos, já explanados, não se vislumbra nem na tradição romanística, nem no jusnaturlismo, nem na pandesctística, uma elevação da boa fé, ainda para mais no seu entendimento objetivo, que permitisse tal desenvolvimento.[23]
Alguns autores justificam este “enigma” afirmando que o direito comercial seria um direito mais flexível, mais ligado aos usos, à prática comercial de uma atividade específica, setorizada. Ao contrário do direito civil que abarca setores diversos da sociedade e apresenta uma maior complexidade em suas normas. Ainda segundo Menezes Cordeiro, o direito comercial seria um direito recente, não remontando ao Corpus JuisCivilis, e sim as práticas mercantis das cidades no início do mercantilismo.[24]
Enquanto no Code, a boa-fé contratual é traduzida como presença do direito natural, o BGB apropria-se de toda rejeição kantiana ao jusnaturalismo, e fecha-se nas contribuições de um direito histórico, o Direito Romano ainda em vigor na Alemanha.[25] Assim a boa-fé é captada em sua dualidade: possessória e obrigacional. No parágrafo 242 a boa-fé postula um juízo de valor contrário a toda rejeição antimetafísica do conceitualismo positivista, sob a forma de cláusula geral.[26]
Na prática verifica-se um conjunto de similitudes entre a boa-fé no direito francês e no alemão. No primeiro, a boa-fé era um espaço aberto ao jusnaturalismo cujas potencialidades logo são fechadas pelo legalismo da Exegese. Já no segundo, a um desenvolvimento tópico da boa-fé pela jurisprudência alemã, no entanto, suas potencialidades foram rechaçadas pelo conceitualismo. Este fenômeno é justificado por Rosalice Fidalgo Pinheiro, por uma aproximação entre os Pandectístas e o liberalismo, ao se adotar uma interpretação adequada ao laisse-fairefoi preservada a liberdade individual no topo da pirâmide, excluindo assim qualquer perspectiva de solidarismo.[27]
Considerações finais
O sopro de novos ventos fará com que, no século vinte, modifique-se a interpretação das cortes alemãs sobre a cláusula geral de boa-fé.
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[1] MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 111.
[2] PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Percurso teórico da boa-fé e sua recepção jurisprudencial no direito brasileiro. Curitiba, 2004. 375 f. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal do Paraná, f.23.
[3] FRITZ SCHULZ, In: Princípios del derecho romano, esclarece: “La fides se define en la antigüidade como ser de, tener palabra: fitquoddicitur.(...) Fides es (...) lasujeción a lapalabra dada, elsentirse ligado ala própria declaración”. Este significado é reforçado, segundo o autor, porque os romanos se vangloriavam de sua fidelidade , contrapondo orgulhosamente a fidelidade romana à púnica e a grega. “Ser fiel era uno de sus princípios vitales.” (Martins- Costa, 1999, p. 243-244)
[4] FREZZA, Paolo. Fides Bona. Studi sullabuona fede, publicação da FacoltàdiGiurisprudenzadellaUniversiàdi Piza. Milão: Giuffrè, 1975. p. 4.
[5] MARTINS-COSTA, op. cit.,p.113.
[6] Ibid., p.114.
[7] CORDEIRO, Antônio Menezes. Da boa fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 1997, p.82 e 83.
[8] MARTINS-COSTA, op. cit., p.117.
[9] PINHEIRO, op. cit., f.26.
[10] CORDEIRO,op. cit., p.128.
[11] PINHEIRO, op. cit., f. 37.
[12] CORDEIRO,op. cit., p. 153-154.
[13] PINHEIRO, op. cit., f.32.
[14] BARCELLONA, Pietro. Dirittroprivato e società moderna. Napoli: Jovene Editore, 1996, p.112.
[15] NOVAES, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de Direito. Do Estado de Direito Liberal ao Estado social e democrático de Direito. Separata de: Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Coimbra, v. 24, 1987, p. 68.
[16] ENGISCH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico. 3. ed., Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 1964, p. 170
[17] MARTINS-COSTA, op. cit., p.174.
[18] HESPANA, António Manuel. Prática social, ideologia e direito nos séculos XVII a XIX. Separata de: Vértice, Coimbra, n. 340 e 341-342, 1972, p.10.
[19] PINHEIRO, op. cit., f.108.
[20] PINHEIRO, f. 113.
[21] CORDEIRO, Antônio Menezes. Introdução à edição portuguesa do livro Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. In:CANARIS, Claus Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 1989.p. XCII.
[22] MARTINS-COSTA, Judith. op. cit., p.207.
[23] MENEZES CORDEIRO, Da boa fé..., p. 315.
[24] MARTINS-COSTA, op. cit., p.209.
[25] PINHEIRO, op. cit., f. 114.
[26] Ibid., f.115.
[27] Ibid., f.116.
Procuradora Federal. Especialista em Direito Previdenciário pela Universidade Anhanguera-Uniderp.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SARTURI, Claudia Adriele. O percurso histórico do princípio da boa-fé Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42123/o-percurso-historico-do-principio-da-boa-fe. Acesso em: 23 dez 2024.
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