A extinta Secretaria de Previdência Complementar – SPC havia editado em 21 de maio de 2009 sua Instrução de nº 31, voltada a disciplinar operações por meio de negociação privada, regulamentando o inciso VII do art. 65 do anexo da Resolução nº 3.456, de 1º de junho de 2007, do Conselho Monetário Nacional – CMN, que dispunha sobre diretrizes acerca da aplicação dos recursos garantidores dos planos de benefícios administrados pelas entidades fechadas de previdência complementar – EFPC.
Ocorre que posteriormente entrou em vigor a Resolução CMN nº 3.792, de 24 de setembro de 2009, dispondo sobre o mesmo assunto e revogando expressamente a Resolução CMN nº 3.456, de 1º de junho de 2007.
Propõe-se, na presente abordagem, verificar se a mencionada Instrução SPC nº 31/2009, a despeito de ter se fundamentado em dispositivo revogado, foi recepcionada pela norma atualmente em vigor.
Inicialmente há que se fazer um esclarecimento geral em relação a todos os atos normativos infralegais editados no âmbito da previdência complementar fechada.
A PREVIC, por força do disposto no art. 55 da Lei nº 12.154, de 23 de dezembro de 2009, herdou as competências atribuídas à extinta SPC (sucedida pela nova autarquia):
“Art. 55. As competências atribuídas à Secretaria de Previdência Complementar do Ministério da Previdência Social, por meio de ato do Conselho de Gestão da Previdência Complementar, do Conselho Monetário Nacional e de decretos, ficam automaticamente transferidas para a Previc, ressalvadas as disposições em contrário desta Lei”
Nessa conformação legal, o art. 5º do Decreto nº 7.075, de 26 de janeiro de 2010 (Regulamento da PREVIC), em atenção ao princípio da segurança jurídica, determinou que os atos normativos e operacionais da SPC em vigor na data de sua publicação ficariam mantidos, até sua revisão ou revogação:
Art. 5º Ficam mantidos, até a sua revisão ou revogação pela PREVIC, observadas as competências da autarquia, os atos normativos e operacionais da Secretaria de Previdência Complementar do Ministério da Previdência Social, em vigor na data de publicação deste Decreto.
Parágrafo único. As referências à Secretaria de Previdência Complementar ou ao órgão fiscalizador ou supervisor das atividades das entidades fechadas de previdência complementar contidas na legislação em vigor devem ser entendidas, a partir da publicação deste Decreto, como referências à PREVIC. (grifado)
Desse modo, verifica- que, em princípio, a Instrução SPC nº 31, de 2009, bem como os demais atos editados pela então SPC, os quais não foram expressamente revogados, tiveram a respectiva vigência reafirmada pelo aludido Decreto nº 7.075, de 2010.
Contudo, tal verificação, por si só, não é suficiente para o deslinde da questão, ante a possibilidade de ter havido uma revogação tácita.
Em relação a esse aspecto, no intuito de contextualizar a matéria, cumpre tecer algumas considerações, ainda que brevemente, sobre a forma de regulamentação legal das aplicações dos recursos garantidores dos planos de benefícios das EFPC.
A Lei Complementar nº 109, de 29 de maio de 2001, Lei Geral da Previdência Complementar, estabelece, em seu art. 9º, que “as entidades de previdência complementar constituirão reservas técnicas, provisões e fundos, de conformidade com os critérios e normas fixados pelo órgão regulador e fiscalizador”.
O § 1º do referido dispositivo determina que “a aplicação dos recursos correspondentes às reservas, às provisões e aos fundos de que trata o caput será feita conforme diretrizes estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional”.
Embora já destacado anteriormente, vale reiterar que as diretrizes em tela, sobre a aplicação dos recursos dos planos de benefícios das entidades fechadas, estão atualmente previstas na Resolução nº 3.792, de 24 de setembro de 2009, do Conselho Monetário Nacional – CMN.
Com efeito, a citada Resolução fixa as diretrizes prudenciais que buscam nortear o sistema de investimentos das EFPC, a fim de garantir, entre outros aspectos, a solvência e higidez do sistema (art. 4º), monitorar constantemente os riscos existentes (art. 9º), avaliar a capacidade técnica e potenciais conflitos de interesses dos seus prestadores de serviços (art. 10), estabelecer limites mínimos de alocação de recursos conforme o segmento de aplicação ou o volume próprio de recursos (arts. 35 a 40).
No que diz respeito especificamente ao objeto desta análise, isto é, sobre a recepção ou não da Instrução SPC nº 31, de 2009, pela Resolução CMN nº 3.792, de 2009, cumpre, primeiro, demonstrar de que modo os dois atos normativos se relacionam entre si.
A revogada Resolução CMN nº 3.456, de 2007, assim dispunha em relação ao tema da negociação privada, prevendo-a como exceção às vedações fixadas às EFPC:
Art. 65. É vedado às entidades fechadas de previdência complementar:
(...)
VII - realizar operações com ações por meio de negociações privadas, ressalvados os casos expressamente previstos neste regulamento e na regulamentação em vigor e aqueles previamente autorizados pela Secretaria de Previdência Complementar do Ministério da Previdência Social; (grifado)
Em razão da ressalva contida na segunda parte do dispositivo acima, é que foi editada a Instrução SPC nº 31, de 2009, conforme é possível extrair de seu art. 1º:
Art. 1º As Entidades Fechadas de Previdência Complementar - EFPC, para a solicitação de autorização prévia à Secretaria de Previdência Complementar - SPC para realizar operações, por meio de negociações privadas, com ações de emissão de companhias abertas negociadas em bolsa de valores ou admitidas à negociação em mercado de balcão organizado por entidade autorizada pela Comissão de Valores Mobiliários, nos termos do inciso VII do art. 65 do Regulamento anexo à Resolução CMN nº 3.456, de 1º de junho de 2007, devem observar o disposto na presente Instrução. (grifado)
Verifica-se, desse modo, que a Instrução editada pela SPC buscou colmatar o comando normativo constante da regulamentação então vigente do CMN, no sentido de disciplinar a realização de operações por meio de negociações privadas, nos termos do artigo acima transcrito. Nesses termos, trata-se de norma hierarquicamente subordinada à regulação exercida pelo Conselho Monetário Nacional, devendo com ela compatibilizar-se.
Por seu turno, no âmbito da novel Resolução CMN nº 3.792, de 2009, verifica-se que, em dispositivo semelhante ao da norma revogada, também foram estabelecidas vedações às EFPC, no que diz respeito à aplicação dos recursos garantidores dos planos de benefícios por elas operadas. É o que consta do art. 53 da Resolução CMN nº 3.792, de 2009:
Art. 53. É vedado à EFPC:
(...)
VIII – realizar operações com ações fora de bolsa de valores ou mercado de balcão organizado por entidade autorizada a funcionar pela CVM, exceto nas seguintes hipóteses:
(...)
a) distribuição pública de ações;
b) exercício do direito de preferência;
c) conversão de debêntures em ações;
d) exercício de bônus ou de recibos de subscrição;
e) casos previstos em regulamentação estabelecida pela SPC; e
f) demais casos expressamente previstos nesta Resolução.(grifado)
Percebe-se, da leitura de ambas as Resoluções do Conselho Monetário Nacional, editadas sucessiva e substitutivamente, que, ao regulamentar o § 1º do art. 9º da LC nº 109, o referido órgão colegiado, tanto num quanto noutro normativo, admite a negociação privada como exceção no âmbito das operações de aplicação em ações.
Consoante o dispositivo acima referido, as EFPC só podem realizar negociações privadas de ações quando houver (a) distribuição pública de ações; (b) exercício de direito de preferência; (c) conversão de debêntures em ações; (d) exercício de bônus ou de recibos de subscrição; (e) casos previstos em regulamentação estabelecida pela SPC; e (f) demais casos expressamente previstos na Resolução.
Assim, a partir da constatação de que o normativo vigente optou por manter a negociação privada como procedimento admissível – da mesma forma como fora na regra anterior (com algumas mudanças) –, como exceção à regra geral de vedação, e que esse mesmo normativo estabelece que os casos previstos em regulamentação estabelecida pela SPC estão entre as exceções admitidas, é possível afirmar que a Instrução SPC nº 31, de 2009, não é incompatível com a atual Resolução CMN nº 3.792, de 2007.
Ante a inexistência de incompatibilidade entre uma norma e outra, considerando a justaposição entre ambas, como normas hierarquicamente interligadas, é possível afirmar que não houve revogação tácita da Instrução SPC nº 31, de 2009, pela Resolução CMN nº 3.792, de 2009, e consequentemente, que aquela foi recepcionada por esta.
Esclareça-se, por oportuno, que não se está a realizar interpretação extensiva do disposto nas normas em questão. A Instrução SPC nº 31, de 2009 se consubstancia, ela mesma, em uma exceção, regularmente prevista, à vedação constante do art. 53, VIII, da Resolução CMN n. 3.792, de 2009, nos termos da letra “e” desse último dispositivo.
E como bem ensina Carlos Maximiliano (Hermenêutica e Aplicação do Direito, 19ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 167), “é estrita a interpretação das leis excepcionais, das fiscais e das punitivas”. Ou seja, a própria norma deve prever a exceção, como de fato ocorre no caso vertente.
A fim de corroborar o posicionamento ora defendido, vale destacar a seguinte lição da ilustre Professora Maria Helena Diniz (Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro interpretada, 7ª ed. São Paulo, Saraiva, 2001, pp. 67-68):
A revogação poderá ser, ainda:
(...)
b) tácita, quando houver incompatibilidade entre a lei nova e a antiga, pelo fato de que a nova passa a regular parcial ou inteiramente a matéria tratada pela anterior, mesmo que nela não conste a expressão “revogam-se as disposições em contrário”, por ser supérflua. A revogação tácita ou indireta operar-se-á, portanto, quando a nova lei contiver algumas disposições incompatíveis com as da anterior, hipótese em que se terá derrogação, ou quando a novel norma reger inteiramente toda a matéria disciplinada pela lei anterior, tendo-se, então, a ab-rogação. Esse princípio da revogação tácita de lei anterior pela posterior em razão de desconformidade dos preceitos advém do direito romano, que já o previa: “non est novum, ut priores leges ad posteriores leges trahantur – sed et posteriores leges ad priores pertinent: nisi contrariae sint: idque multis argumentis probatur” (Digesto, Livro I, tít. III, De legibus, senatusque concultis, et longa consuetudine, frags. 26 e 28). Fiore, ao se referir à incompatibilidade como critério de revogação tácita, pondera que, “quando a lei nova é diretamente contrária ao próprio espírito da antiga, deve entender-se que a ab-rogação se estende a todas as disposições desta, sem qualquer distinção”. Mas acrescenta: “em caso contrário, cumpre examinar cuidadosamente quais as disposições da lei nova absolutamente incompatíveis com as da lei antiga e admitir semelhante incompatibilidade quando a força obrigatória da lei posterior reduz a nada as disposições correspondentes da lei anterior: posteriores leges ad priores pertinent nisi contrariae sint. E sendo duvidosa a incompatibilidade, as duas leis deverão ser interpretadas por modo a fazer cessar a antinomia, pois as leis, em regra, não se revogam por presunção”. Assim, havendo dúvida, dever-se-á entender que as leis “conflitantes” são compatíveis, uma vez que a revogação tácita não se presume. A incompatibilidade deverá ser formal, de tal modo que a execução da lei nova seja impossível sem destruir a antiga.
Convém, ainda, lembrar, como já o fizemos em páginas anteriores, que nem sempre o desaparecimento dos motivos legais determinantes da publicação de uma lei conduz à sua revogação tácita, não sendo possível afirmar-se que uma lei, determinada por fatos especiais e transitórios, deixe de ser aplicada, quando as razões em que se inspirou vierem a cessar. (grifado)
Cabe salientar, ademais, que a eventual existência de especificidades, a depender da situação verificada, pode recomendar a decisão de utilização ou não da norma de exceção pelo órgão competente, o qual, frente à análise técnica de cada caso concreto, deve avaliar a presença ou não de situações especiais em que se deva permitir, sempre com enfoque na proteção dos interesses dos participantes e assistidos da entidade interessada, a operação pretendida, a qual, por absoluta impossibilidade, não tenha sido casuisticamente listada em regulamento.
CONCLUSÃO
Diante do exposto, conclui-se que os procedimentos a serem observados pelas entidades fechadas de previdência complementar para realizar operações, por meio de negociações privadas, com ações de emissão de companhias abertas negociadas em bolsa de valores ou admitidas à negociação em mercado de balcão organizado permanecem sujeitos à disciplina da Instrução SPC nº 31, de 2009, uma vez que tal normativo não foi revogado pela Resolução CMN nº 3.792, de 2009.
REFERÊNCIAS
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 19ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro interpretada, 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001.
Procurador Federal. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Brasília - Uniceub. Bacharel em Administração de Empresas pela Universidade de Brasília - Unb. Procurador Federal em atuação no Departamento de Consultoria da Procuradoria-Geral Federal<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ROCHA, Leonardo Vasconcellos. Negociação privada de ações na previdência complementar fechada: considerações acerca da vigência dos parâmetros regulamentadores Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42182/negociacao-privada-de-acoes-na-previdencia-complementar-fechada-consideracoes-acerca-da-vigencia-dos-parametros-regulamentadores. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Maurício Sousa da Silva
Por: Maurício Sousa da Silva
Por: Maurício Sousa da Silva
Por: DESIREE EVANGELISTA DA SILVA
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