RESUMO: Breves apontamentos sobre o pagamento do reajuste instituído pela Lei n.º 10.698/03 aos servidores públicos federais no ano de 2003. O presente artigo busca apresentar uma explanação acerca desse polêmico assunto, que tem provocado diversas demandas judiciais, ao argumento de que se trataria de revisão geral anual disfarçada. O objetivo é contribuir para o aprimoramento da discussão sobre o tema. É um trabalho teórico, no qual se realiza pesquisa qualitativa, desenvolvida por meio de referências bibliográficas, análise de doutrina e jurisprudência.
Palavras-chave: Direito Administrativo, Administração Pública, Servidores Públicos, Reajuste, Revisão Geral Anual, Lei n.º 10.680/03.
INTRODUÇÃO
O presente artigo trata do direito à incorporação, pelos servidores públicos federais, do reajuste de R$59,87 (cinquenta e nove reais e oitenta e sete centavos) concedido pelo governo federal por força de previsão contate na Lei nº 10.698, de 02 de julho de 2003, como “revisão geral anual”.
Os defensores da tese, em sua maioria associações e sindicatos de servidores públicos federais, alegam que a referida Lei nº 10.698/03 seria inconstitucional, pois tratou como vantagem pecuniária individual o que, na verdade, seria revisão geral anual das remunerações dos servidores.
Como a revisão geral anual, por força do 37, inc. X da Constituição Federal, com redação dada pela Emenda Constitucional nº 19/98, se dá em índice percentual único, entendem que os servicores, ao invés de receber o valor nominal fixo estipulado em lei, deveriam ter recebido um reajuste de 13,23% sobre seus vencimentos.
NATUREZA JURÍDICA DO REAJUSTE CONCEDIDO PELA LEI N.º 10.698/03
Note-se que o cerne da questão posta reside no seguinte questionamento: o reajuste concedido através da Lei n.º 10.698/03 teria natureza jurídica de vantagem pecuniária individual ou de revisão geral anual?
Caso se considere correta a interpretação dada pelo governo federal, trata-se de vantagem pecuniária individual, concedida em parcela fixa e valor nominal a todos os servidores abrangidos pela lei instituidora, cumulativamente com as demais vantagens que compõem a estrutura remuneratória, sem servir de base para o pagamento de qualquer outra vantagem e sobre a qual incidirão, a seu tempo, as revisões gerais anuais previstas no artigo 37 da Constituição Federal.
Se considerada revisão geral anual, deve ser declarada a insconstitucionalidade da Lei n.º 10.698/03, devendo esse valor fixo de R$59,87 (cinquenta e nove reais e oitenta e sete centavos) ser transformado em percentual, por força do que dispõe o 37, inc. X da Constituição Federal, com redação dada pela Emenda Constitucional nº 19/98.
Ocorre que não se sabe, com clareza, de que forma se teria chegado ao índice de 13,23% pleiteado a título de revisão geral anual, o qual não consta expressamente em nenhuma das leis federais que concederam reajuste aos servidores públicos federais no ano de 2003 (Leis nº 10.697/03 e n.º 10.698/03).
Para se chegar a um índice, não basta a simples alegação no sentido de que o mesmo se refere ao maior reajuste concedido aos servidores públicos federais quando do recebimento da VPI no valor de R$ 59,87, como sustentam os defensores da tese. A ausência de indicação dos critérios utilizados e de apresentação de cálculos que comprovem o cabimento do referido percentual impõem, por si só, a impossibilidade de identificação da natureza jurídica do reajuste.
Desse modo, temos que reconhecer a impossibilidade de atribuir, ao reajuste concedido pela Lei n.º 10.698/03, a natureza jurídica de revisão geral anual.
LEGALIDADE DOS REAJUSTES CONCEDIDOS AOS SERVIDORES PÚBLICOS FEDERAIS NO ANO DE 2003, ATRAVÉS DAS LEIS N.º 10.697/03 e N.º 10.698/03
O Supremo Tribunal Federal, em vários julgados, vem admitindo a concessão de reajustes diferenciados a categorias, sem que isso represente ofensa à revisão geral anual prevista no art. 37, inc. X da Constituição Federal, conforme decisões proferidas na ADI nº 603, ADI nº 525 e RE nº 176.937.
Vejamos, a título ilustrativo, o julgamento proferido no RE nº 176.937, onde o pleito fora baseado em violação ao art. 37, inc. X da Constituição Federal por lei estadual que fixara reajustes de servidores:
“EMENTA: Sem se ter verificado revisão geral de remuneração, não se justifica a pretendida aplicação do disposto no art. 37, X, da Constituição.”
(STF – Supremo Tribunal Federal; RE 176937/RN - Rio Grande do Norte; Recurso Extraordinário; Julgamento: 11/05/1999; Órgão Julgador: Primeira Turma; Publicação: DJ 17-03-2000; PP-00028; Ement Vol-01983-03; PP-00490; Relator(a): Min. Octavio Gallotti)
No julgamento do referido Recurso Extraordinário, a matéria referente à revisão geral anual foi bem ponderada pelo Ministro Relator Octávio Gallotti, em seu relatório e voto (grifos nossos):
“(...) Em verdade, procurou o recorrido, em atenção ao conteúdo do art. 39, § 1º da Lei Maior, equiparar os vencimentos entre os cargos de atribuições iguais ou assemelhados dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Não houve, desse modo, revisão geral de vencimentos a justificar a argüição de afronta ao art. 37, X da Carta Magna.
(...)
Desse modo, como o reajuste questionado pelo recorrente não se constitui revisão geral de vencimentos, mas, tão-somente, equiparação de vencimentos entre ocupantes de cargos de atribuições iguais ou assemelhadas dos Poderes Executivos, Legislativo e Judiciário, os serventuários da justiça local não poderiam ser beneficiados com aumentos salariais nos mesmos índices fixados para os magistrados.”
Pelo que se percebe, é clara na jurisprudência a possibilidade de concessão de reajustes aos servidores públicos, sem que isso caracterize revisão geral anual, e foi justamente o ocorrido no ano de 2003, quando foram editadas duas leis: a de nº 10.698/2003 e a de nº 10.697/2003.
A Lei nº 10.698/2003 “dispõe sobre a instituição de vantagem pecuniária individual devida aos servidores públicos civis da Administração Federal direta, autárquica e fundacional.”, enquanto que a Lei nº 10.697/2003 “dispõe sobre a revisão geral e anual das remunerações e subsídios dos servidores públicos federais dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário da União, das autarquias e fundações públicas federais, de que trata a Lei nº 10.331, de 18 de dezembro de 2001, referente ao ano de 2003.”
Dessa forma, não há dúvida de que a Lei nº 10.698/2003 apenas concedeu uma vantagem pecuniária individual - VPI aos servidores públicos federais, conferindo, assim, a correção de distorções remuneratórias existentes no serviço público federal. A Lei nº 10.698/2003 não veiculou, assim, uma revisão geral de vencimentos, o que se deu em percentual idêntico a todos os servidores públicos federais por meio da Lei nº 10.697/2003.
Vale ressaltar que, na exposição de motivos da Lei nº 10.698/2003, extraída do site da Câmara dos Deputados, consignou-se expressamente que o objetivo do diploma legislativo foi o de conceder um aumento diferenciado entre os servidores públicos, com o fim de reduzir a distância entre os valores da menor e da maior remuneração, como se verifica nas seguintes passagens:
Excelentíssimo Senhor Presidente da República,
1. Submetemos à superior deliberação de Vossa Excelência anexa proposta de Projeto de Lei, conforme minuta anexa, que dispõe sobre a instituição de vantagem pecuniária individual devida aos servidores públicos federais dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário da União, das autarquias e fundações públicas federais, ocupantes de cargos efetivos ou empregos públicos, no valor de R$ 59,87 (cinqüenta e nove reais e oitenta e sete centavos).
2. O encaminhamento deste assunto reveste-se de urgência, tratando-se de medida complementar à proposta de reajuste linear, retroativo a janeiro do corrente ano por força da Lei nº 10.331, de 18 de dezembro de 2001, que tramita em paralelo com este projeto, para dar início a um conjunto de ações de correção das distorções remuneratórias verificadas ao longo dos últimos anos, em decorrência da política de concessão de reajustes diferenciados, que acabou por privilegiar segmentos dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário da União, das autarquias e fundações públicas federais, particularmente os integrantes de carreiras e cargos estruturados, comparativamente com os integrantes dos cargos isolados do Plano de Classificação de Cargos - PCC e planos diversos ou servidores de diversos níveis.
3. A presente proposta visa a reduzir a distância entre os valores da menor e da maior remuneração, por intermédio da instituição de vantagem pecuniária individual, no valor fixo de R$ 59,87 (cinqüenta e nove reais e oitenta e sete centavos), que, por ser o mesmo para todos os níveis, classes, padrões e categorias existentes, representará uma primeira aproximação entre esses valores, tendo como resultados ganhos inversamente proporcionais aos obtidos desde 1998. Embora tenha como destinatários os servidores públicos civis ativos, inativos e pensionistas dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário da União, das autarquias e fundações públicas federais, à semelhança das vantagens instituídas pelo art. 2º da Lei nº 7.706, de 21 de dezembro de 1988, pelo art. 9º da Lei nº 8.178, de 1º de março de 1991, os seus efeitos serão mais significativos no âmbito do Poder Executivo, tendo em vista as disparidades das tabelas de vencimentos existentes nos Três Poderes.
(...)
Desse modo, considerando-se a própria mens legis, não se pode admitir que a Lei nº 10.698/2003 teve por objetivo instituir a revisão geral anual consagrada constitucionalmente. De fato, verifica-se a clara vontade do legislador no sentido de que a VPI não visou à recomposição linear da remuneração dos servidores, mas, ao contrário, teve por objetivo minimizar as distorções salariais entre os valores da menor e da maior remuneração.
Vale ressaltar, inclusive, que o art. 2º da Lei nº 10.698/2003 previu expressamente que sobre a vantagem ali estabelecida incidirão as revisões gerais e anuais de remuneração dos servidores públicos federais, corroborando, assim, peremptoriamente, que a VPI possui natureza de acréscimo estipendiário decorrente da liberalidade do legislador e não de revisão de caráter geral.
Há que se considerar, ainda, que, embora editadas na mesma data, a Lei nº 10.697/2003 e a Lei nº 10.698/2003 impactaram de forma diversa na estrutura remuneratória dos servidores públicos: o primeiro diploma legal tratou da revisão geral consagrada constitucionalmente, estipulando percentual incidente sobre o somatório do vencimento e das vantagens pecuniárias permanentes estabelecidas em lei, o qual é irredutível, nos termos do §3º do art. 41 da Lei nº 8.112/90.
Já o segundo concedeu vantagem pecuniária individual, que não pode servir de base de cálculo para qualquer outra vantagem (art. 1º, par. único da Lei nº 10.698/2003) e, portanto, não pode se incorporar ao vencimento básico, o que afasta a hipótese de revisão geral não isonômica da remuneração dos servidores públicos.
DA CONSTITUCIONALIDADE DA LEI Nº 10.698/2003 E DOS EFEITOS DE UMA EVENTUAL DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE
A impossibilidade de aplicação da tese dos 13,23% também não se sustenta por outro motivo: atualmente, só poderia haver revisão do procedimento legal adotado no ano de 2003 com base em uma declaração de inconstitucionalidade da Lei nº 10.698/2003.
No entato, essa declaração de inconstitucionalidade teria que se dar no âmbito do Poder Judiciário, que teria, necessariamente, que estabelecer novo critério de reajuste (no caso, de 13,23%) em percentual não analisado nem aprovado pelo Congresso Nacional (Poder Legislativo), em afronta ao princípio da separação dos poderes.
Tal entendimento, além de contrariar totalmente a vontade do legislador ao editar a Lei nº 10.698/2003 (reduzir a distância entre os valores da maior e da menor remuneração dos servidores públicos federais), encontra óbice no regramento referente ao orçamento público (art. 167, inc. II e §1º c/c art 169 da CF/1988, arts. 16 e 21 da Lei Complementar nº. 101/2000 e art. 2º da Lei nº 10.331/2001), bem como na Súmula nº 339 do STF (“Não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores públicos sob o fundamento de isonomia”).
Diante disso, temos que eventual declaração de inconstitucionalidade só poderia ter como efeito a prolação de uma sentença declaratória da incompatibilidade da norma com a Constituição, sem promover qualquer inovação normativa com efeitos concretos.
A doutrina alemã defende, corretamente, que o papel do julgador, no controle de constitucionalidade, cinge-se ao de um legislador negativo. Nesse sentido, vale transcrever os seguintes ensinamentos extraídos do voto do Ministro Gilmar Mendes no MI 708/STF, j. 25/10/2007, p. 240:
“[Esclarece Rui Medeiros que] A diferença entre a lição alemã e o ensinamento italiano prende-se, antes de mais nada, com a delimitação dos casos em que são constitucionalmente admissíveis as decisões modificativas. Na verdade, além de o Bundesverfassungsgericht, ao contrário da Corte Constituzionale, rejeitar decisões modificativas quando a discriminação resulta do silêncio da lei, o Tribunal Constitucional italiano admite mais facilmente do que o Tribunal Constitucional Federal alemão a existência de valores constitucionais que postulem a modificação da lei. Mesmo um autor como VEZIO CRISAFULLI, que não se cansa de sublinhar que a legislação positiva criada pela Corte Constituzionale é uma legislação rime obbligate [isto é, trata-se de atividade legislativa vinculada ao poder de conformação limitado pelo gizamento constitucional estabelecido para a matéria], alude ao contraste entre a solução italiana e a solução alemã: o Bundesverfassungsgericht alemão, perante uma violação do princípio da igualdade resultante de um tratamento de favor concedido apenas a algumas das pessoas que se encontram num plano essencialmente igual, lança geralmente mão da simples declaração de incompatibilidade, pois entende que o poder legislativo dispõe de várias possibilidades de eliminação do vício e, entre outras opções, tanto pode estender a norma de favor aos até aí excluídos, como revogá-la para todas; pelo contrário, em situações deste género, a Corte italiana adopta uma sentença manipulativa, anulando a disposição nella parte in cui (ainda que implicitamente) esclude do beneficio a categoria preterida, estendendo assim o tratamento mais favorável” – (MEDEIROS, Rui. A Decisão de Inconstitucionalidade, p. 461).
De fato, cabe ao Poder Legislativo, e somente a ele, definir os limites dos aumentos remuneratórios concedidos aos servidores públicos, observando-se a política orçamentária definida pelas leis correspondentes.
Em conclusão temos que, mesmo que fosse declarada a inconstitucionalidade da Lei nº 10.698/2003, não se podeeia conceder judicialmente um aumento de 13,23% a todos os servidores públicos federais, a título da revisão geral anual prevista no art. 37, inc. X da Constituição Federal, como pretendido pela parte autora, pois uma norma tida por inconstitucional não pode produzir efeitos, muito menos efeitos diversos dos pretendidos pelo legislador.
A consequência seria, então, de ordem negativa para os servidores públicos, que não poderiam ter se beneficiado de aumento remuneratório concedido por lei inconstitucional.
CONCLUSÃO
Diante dos argumentos acima expendidos, podemos concluir claramente pela legalidade do reajuste concedido aos servidores públicos federais no ano de 2003, através da da Lei nº 10.698/2003.
Esse entendimento atende ao princípio da isonomia, na medida em que trata igualmente as pessoas em mesma situação jurídica, e desigualmente àqueles em situação distinta, o que nos parece um bom argumento de justiça.
BIBLIOGRAFIA
Constituição Federal de 1988
Lei 8112/90
Site da Câmara dos Deputados: http://www.camara.gov.br/sileg/integras/135235, consultado em 01/12/2014.
Procuradora Federal há 7 (sete) anos e atualmente trabalha na defesa judicial de mais de uma centena de entes da administração pública, em questões ligadas a servidores públicos, licitações, contratos, concursos públicos, patrimônio público, tributário, dentre outras. É pós graduada em Direito Previdenciário, Direito Administrativo e Direito Processual Civil e autora de outras publicações na área jurídica.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FLORENCIO, Renata Cordeiro Uchoa. Concessão do percentual de reajuste de 13,23% a todos os servidores públicos federais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42222/concessao-do-percentual-de-reajuste-de-13-23-a-todos-os-servidores-publicos-federais. Acesso em: 23 dez 2024.
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