Sabe-se que a Seguridade Social, cujas disposições gerais encontram-se elencadas nos arts. 194 e 195 da CF/88, é composta pela Saúde, de caráter universal e gratuito; pela Assistência Social, caracterizada também pela gratuidade, mas de acesso restrito aos necessitados, nos termos do art. 203 da Constituição Federal e da Lei 8.742/93 (LOAS); e pela Previdência Social.
Tratada nos arts. 201 e 202 da CF/88, a Previdência Social diferencia-se da Saúde e da Assistência, primordialmente, pelo caráter contributivo e pela filiação obrigatória. Isso significa que é compulsória a filiação ao regime de previdência social aos trabalhadores que exercem atividade remunerada lícita, e que para ter direito aos benefícios previstos na Lei 8.213/91 é obrigatória a contribuição para o sistema.
Embora seja um direito fundamental de segunda geração, é inegável o caráter securitário do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), do qual me ocuparei neste artigo.
Esse caráter fica mais evidente nos chamados benefícios por incapacidade (auxílio-doença, aposentadoria por invalidez e auxílio-acidente), na pensão por morte, no auxílio-reclusão. Isso resultou, obviamente, na redução ou isenção dos períodos de carência necessários à obtenção destes benefícios, uma vez que o fato gerador de sua concessãoé imprevisível, seja ele algum infortúnio de saúde ou o recolhimento ao cárcere.
A questão em foco neste trabalho diz respeito exatamente ao desvirtuamento deste que foi o objetivo do legislador ao reduzir ou isentar o período de carência para a obtenção de um benefício por incapacidade.
Sabe-se que a pirâmide etária mudou drasticamente nos últimos anos no Brasil, graças aos avanços da medicina, o que aumentou significativamente a população idosa, e ao controle de natalidade, que reduziu o número de filhos por família. Obviamente isso resulta numa diminuição proporcional da população laborativamente ativa e no aumento da população aposentada.
Não foi outra a razão de ter sido criado o fator previdenciário para desestimular aposentadorias precoces, já que é cediço que os gastos obrigatórios tornam a pasta da Previdência Social o mais oneroso Ministério.
Uma prática que tenho observado frequentemente, enquanto Procurador Federal responsável pela representação jurídica do INSS, e que contribui de forma incisiva para desequilibrar ainda mais essa balança, consiste no fato de pessoas idosas, que jamais recolheram sequer uma contribuição, iniciarem, muitas vezes após os 60 anos, a necessária sequência de 12 contribuições, com o único e exclusivo intuito de cumprir a carência dos benefícios por incapacidade para, ato contínuo, requerê-los.
O RGPS foi arquitetado pelo legislador de modo a proteger o trabalhador do sinistro representado pela idade avançada com a aposentadoria por idade, a aposentadoria por invalidez e, com algumas peculiaridades, pela aposentadoria especial, as quais, exatamente por isso, tem o mais longo período de carência previsto da Lei de Benefícios: 180 meses, fora os seus outros requisitos, os quais também são igualmente rígidos.
Parece evidente a lógica: após a aposentadoria, com o aumento da expectativa de vida, o segurado gozará de seu benefício por muitos anos, e, se tiver dependentes, ainda lhes instituirá uma pensão por morte.
No entanto, este não é o ponto principal.
Na ADI 3.105, onde ficou assentada a constitucionalidade da incidência de contribuição previdenciária sobre a aposentadoria dos servidores públicos, o STF, em sua fundamentação, entendeu que o regime previdenciário pauta-se pelo princípio da solidariedade.
O princípio da solidariedade justifica, por exemplo, que um segurado passe toda sua vida contribuindo sem receber de qualquer benefício por incapacidade, enquanto outro, que trabalhou por apenas 3 meses e sofreu um acidente que o invalidou, passe o resto de sua vida recebendo uma aposentadoria por invalidez. Significa, em última análise, que não se contribui apenas para usufruir de benefícios, mas também para sustentar um regime que reverte em prol da sociedade.
Ora, tendo tudo isso em vista, causa espécie a proliferação de casos em que pessoas com 60 ou 70 anos, após recolherem 12 contribuições, e, obviamente, já acometidas pelos problemas de saúde que atingem a maior parte da população nessa faixa etária, estejam obtendo, muitas vezes através de decisões judiciais, benefícios por incapacidade, que terminam por tornarem-se vitalícios, e, ainda por cima, geraram uma pensão por morte.
Esse tipo de expediente aproveita-se, além da carência reduzida para os benefícios por incapacidade, da vedação constitucional de que benefícios que substituam o salário de contribuição ou a o rendimento do trabalho do segurado tenham valor inferior ao salário mínimo (art. 201, § 2º).
Imagine-se a seguinte situação: o sujeito “A”, que tendo durante toda sua vida recebido o salário mínimo e trabalhado com sua CTPS assinada, após 35 anos de contribuição, obtém sua aposentadoria, obviamente, no valor do salário mínimo, já que a alíquota da contribuição previdenciária incidiu sobre esse salário de contribuição.
Já o sujeito “B” optando, como uma imensa parte dos brasileiros, por manter-se durante toda a sua vida na informalidade, guardando para sio valor do tributo que reverteria ao custeio do sistema, aos 65 anos resolve recolher 12 contribuições, e, aos 66, com diversos males de saúde próprios da idade avançada, obtém uma aposentadoria por invalidez, exatamente no mesmo valor que a aposentadoria do sujeito “A”.
Pela letra fria da Lei, essa manobra seria legal, uma vez o fato gerador dos benefícios em espeque é a incapacidade laborativa, não importando se ela é oriunda da idade avançada ou não. Há apenas a vedação de que a incapacidade preceda o vínculo com o RGPS, mas a experiência, na prática jurídica, demonstra que é muito difícil comprovar a preexistência da incapacidade, por duas razões:
a) A Lei permite a concessão do benefício quando a incapacidade advenha de doença anterior à filiação, que tenho sido gerada por agravamento posterior a esta. Essa progressão, nos casos de doenças degenerativas típicas da idade, como osteoporoses e lombalgias, é lenta, tornando difícil fixar o marco inicial da incapacidade;
b) Como é muito difícil mesmo para os peritos fixar uma data de início da incapacidade, eles se baseiam, para tanto, em atestados trazidos pelo próprio periciando. Ora, na maioria das vezes, estes, já orientados por advogados, não trarão atestados anteriores ao cumprimento da carência.
Vê-se, portanto, que se trata de problema de difícil solução, e, diga-se, de consequências catastróficas para a higidez do equilíbrio financeiro do sistema previdenciário e da própria economia brasileira, uma vez que o Ministério da Previdência responde por 22% do Orçamento Federal (jornal O Globo, edição de 01.12.2014), como pagamento de benefícios que superam os 400 bilhões de reais anuais.
Deste modo, a solução não passa pela análise fria dos dispositivos previstos na Lei 8.213/91, tampouco pela aplicação indiscriminada do princípio in dubio pro misero, como vêm fazendo diversos magistrados federais na prática forense nos JEF’s.
A forma de se escapar desses expedientes passa por uma filtragem constitucional da legislação previdenciária. O espírito da Lei 8.213/91 deve ser captado, aos olhos do intérprete, pelo prisma do princípio da solidariedade e pelo caráter contributivo do regime previdenciário.
O sistema previdenciário é contributivo e seletivo. A idade avançada foi selecionada como um sinistro apto a gerar a concessão de benefício vitalício. Perceba-se que as aposentadorias por tempo de contribuição e por idade e a aposentadoria por invalidez só tem em comum o nome. Esta última não foi selecionada para cobrir a idade avançada, mas sim os imprevistos da vida, que podem acontecer a qualquer um, como um acidente, um mal súbito, etc. Não há absolutamente nada de imprevisto em doenças degenerativas ortopédicas em pessoas com mais de 60 anos.
Deste modo, não se pode premiar um segurado que optou em não contribuir com o RGPS durante toda a sua vida, e, próximo ao esgotamento de suas forças, procura se inserir num nicho dos benefícios previdenciários que tem por escopo proteger aqueles que buscavam percorrer o caminho que os levaria às aposentadorias por idade avançada, mas que foram impedidos por infortúnios imprevisíveis e inesperados.
Note-se que, além da orientação principiológica constitucional que sustenta a argumentação acima, a conduta de cumprir a carência em idade avançada no intuito exclusivo de requerer benefícios por incapacidade representa, em última análise, um abuso de direito.
Não é demais lembrar que o CC/02 reputa ilícito o ato praticado em abuso de direito (“Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”, art. 187).
Ora, é óbvio que aquele que decide recolher 12 contribuições em idade avançada e já próximo ao fim de suas forças de trabalho com o único fito de receber um benefício por incapacidade, o faz fora dos limites impostos pela boa-fé e pelo seu fim econômico. Deste modo, pode-se, juridicamente, afirmar que este ato é ilícito.
Deste modo, não se pode esperar que ao praticar um ato ilícito, a requerente possa extrair deste os efeitos que emanariam de um ato lícito, qual seja, a obtenção regular de qualidade de segurada e carência anterior ao início da incapacidade.
Finalizando, é necessário ressaltar que o INSS é o líder em ações no Judiciário brasileiro, com mais de 20% do total de processos. Isso ocorre não apenas pelos erros em indeferimentos administrativos de benefícios, que ocorrem cada vez com menos frequência, mas também pelo fato dos magistrados na maioria das vezes prestigiarem teses que favorecem o segurado em detrimento da Fazenda Pública.
O termo Fazenda Pública aqui é utilizado em sentido mais amplo, não representado apenas o Erário, mas o interesse público primário. No momento em que se sabe que o déficit previdenciário é o grande ralo da economia brasileira, é necessário perceber que, ao se prestigiar individualmente com uma tese benevolente um segurado, se desprestigiam outros milhões, estes sem rosto, com a falta de recursos para investimentos.
Veja que o que defendo neste trabalho já encontra ressonância na jurisprudência pátria, como se vê no recente acórdão relatado pelo Desembargador Federal Marcelo Pereira da Silva (Proc. 0013255-52.2013.4.02.9999 – 28.01.2014):
“Por certo que, ao estabelecer o mínimo de 12 contribuições como carência para a concessão de benefícios como auxílio-doença e aposentadoria por invalidez, o legislador teve a intenção de proteger, das vicissitudes e infortúnios, o indivíduo que ingressa no RGPS com a intenção de obter aposentadoria regularmente, mas que encontra obstáculos que o impedem de prosseguir em tal mister e, não, aqueles que sequer trabalham, ou trabalham décadas na informalidade, incorporando a patrimônio próprio os valores que deixam de contribuir, e, quando a idade avançada prenuncia o declínio natural da capacidade laborativa ou, mesmo, quando já existe uma incapacidade laborativa instalada, recorrem ao sistema, que, diga-se, boicotaram uma vida inteira, a fim, tão somente, de auferir benefícios a que não fazem jus.
Importante notar, ainda, que muitos se utilizam de tal expediente, ou porque não se enquadram no perfil para o benefício assistencial, ou porque pretendem subverter as regras de regência de tal benefício, seja para receber valores mais elevados ou para contemplar dependentes na hipótese de óbito”.
Espera-se, portanto, que posicionamentos como esse proliferem pelo Brasil a fora, com a assimilação da ideia de que a Previdência Social distingue-se da Assistência Social, e que, embora seja classificada com um direito fundamental de 2ª geração, não se trata de simples caridade, muito menos de instrumento de conquista de votos ou de anestesia popular.
Procurador Federal, membro da Advocacia Geral da União, lota na Procuradoria Federal Especializada junto ao INSS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MUREB, Marcelo Di Battista. Os benefícios por incapacidade e as contribuições iniciadas em idade avançada Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 dez 2014, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42230/os-beneficios-por-incapacidade-e-as-contribuicoes-iniciadas-em-idade-avancada. Acesso em: 23 dez 2024.
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