Resumo: O estudo destina-se a investigar quais os fundamentos jurídico-constitucionais utilizados pelo STF no julgamento do Recurso Extraordinário 567.985/MT e da Reclamação 4.374/PE, uma vez que reviu seu julgamento proferido na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.232/DF, o que confirma a tendência atual de judicialização da política ou de politização do Judiciário. Para que seja possível analisar esses fundamentos, foram destacados os conceitos que dizem respeito à tensão existente entre direitos fundamentais e democracia, a assistência social como direito fundamental embasado na dignidade humana; o princípio da proteção deficiente, o mínimo existencial e a reserva do possível a fim de se analisar sua utilização à luz da doutrina.
Palavras-chave: assistência social – mínimo existencial – reserva do possível – proteção deficiente.
INTRODUÇÃO
O presente estudo se propõe ainvestigar quais os fundamentos utilizados pelo Supremo para declarar a inconstitucionalidade incider tantumsem pronúncia de nulidade do § 3º do artigo 20 da Lei 8.742/93no julgamento do Recurso Extraordinário567.985/MT e, consequentemente, julgar improcedente o pedido veiculado pelo INSS na Reclamação 4.374/PE.
Como marco inicial do estudo da jurisprudência do STF, escolheu-se a Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.232/DF e, como marco final, o Recurso Extraordinário567.985/MT e a Reclamação 4.374/PE. Tais escolhas foram propositais em virtude de que no julgamento daquela, o STF decidiu que caberia à lei, e não ao Poder Judiciário, fixar os limites objetivos para extensão do benefício da assistência social a quem dela necessitar. No julgamento destes, o Tribunal reviu sua decisão e entendeu por declarar a inconstitucionalidade do critério objetivo legal sem, todavia, pronunciar a nulidade do dispositivo.
Assim, a jurisprudência atual da Corte faz com que exista um descompasso entre as decisões do Judiciário e as da Administração Pública. Declarado inconstitucional o critério legal, cada juiz passou a julgar conforme seus próprios parâmetros subjetivos e a Administração Pública, no caso, o INSS,a (in)deferir o direito à assistência social com base na Lei, que ainda não foi alterada pelo Legislativo em que pese transcorridos mais de 6 (seis) meses da expedição da comunicação ao Senado.
Os métodos adotados para esta pesquisasãoa revisão bibliográfica e o fenomenológico-hermenêutico, poiso estudo destina-se a analisar os elementos teóricos constantes nas decisões do STF proferidas nos julgados antes referidos. Para tanto, a apresentação é dividida em 2 capítulos. O primeiro destina-se a verificar o atual estado do direito à assistência social na jurisprudência do STF. O segundo, a analisar quais os fundamentos teóricos utilizados pelo Supremo para proferir as decisões privilegiando o direito à assistência social em detrimento do princípio da reserva orçamentária, razão pela qual é analisada a invocação da tese da oposição potencial entre direitos fundamentais e princípio democrático, a dignidade humana como fundamento da assistência, os princípios da proibição da proteção deficiente, do mínimo existencial e da reserva do possível.
1 ESTADO DA ARTE DO DIREITO À ASSISTÊNCIA SOCIAL
O direito à assistência socialestáconsagrado no inciso V do artigo 203 da CRFB/88, o qual dispõe que a assistência social é prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social. Dentre seus objetivos, assegura a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de necessidades especiais e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.
Depreende-se da leitura do inciso V do artigo 203 da CRFB/88 que o dispositivo constitucional conteve a eficácia da regra do direito à assistência, pois a condicionou à edição de lei, a qual foi publicada em 7 de dezembro de 1993 – Lei 8.742. A comumente denominada LOAS – Lei Orgânica da Assistência Social – previu um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade para garantir o atendimento às necessidades básicas da população.
No artigo 20 da Lei 8.742/93 há menção aos critérios subjetivos e objetivos que devem ser atendidos pelo indivíduo a fim de que possa fazer jus ao benefício assistencial.Conforme a LOAS, o benefício corresponde a um salário mínimo mensal e é devido à pessoa portadora de impedimentos de natureza física, mental, intelectual ou sensorial de longo prazo –igual ou superior a 2 (dois) anos – ou que possua 65 (sessenta e cinco) anos ou mais desde que comprove não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família.Nos termos do § 3º do referido dispositivo, é considerada incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a ¼ (um quarto) do salário-mínimo.
Todavia,esse critério objetivo – renda mensal per capita inferior a ¼ do salário mínimo –teve sua constitucionalidade questionada em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) proposta pelo Procurador-Geral da República, que tramitou sob o número 1.232[1]. O pedido da ADI foi julgado improcedente, por maioria de votos, pelo Tribunal Pleno do STF em 27 de agosto de 1998.
O STF declarou, assim, a constitucionalidade do dispositivo frente ao disposto no inciso V do artigo 203 da CRFB/88.Entendeu o Supremoque inexistia a alegada ofensa em face do dispositivo constitucional em razão de que este reportava à lei a fixação de critérios de garantia do benefício de salário mínimo à pessoa portadora de deficiência física e ao idoso.
Portanto, o § 3º do artigo 20 da Lei 8.742/93,na visão do Supremo, não limitava nem restringia o direito garantido pela norma constitucional – inciso V do artigo 203 da CRFB/88 –, mas delimitava o direito à assistência social.Ainda, o Tribunal rechaçou o argumento trazido pela Procuradoria Geral da República de que o§3º do artigo 20 da LOAS teria instituído caso de presunção juris et de jure sem excluir a possibilidade de serem comprovados outros casos de efetiva falta de meios para que oportador de deficiência pudesse prover a própria manutenção outê-la provida por sua família.Desse modo, para o STF, o critério de ¼ do salário mínimo seria objetivo e não poderia ser conjugadocom outros fatores indicativos da miserabilidade do indivíduo e de seugrupo familiar, cabendo ao legislador, e não ao juiz na solução do casoconcreto, a criação de outros requisitos para a aferição do estado depobreza daquele que pleiteia o benefício assistencial
Em que pese a decisão do STF, na prática, diversos Tribunais e juízes entendiam que o § 3º do artigo 20 da Lei 8.742/93 não esgotava os critérios objetivos para concessão do benefício assistencial.Isso se deve ao fato de que, após a decisão proferida na ADI 1.232/DF, eclodiram diversas leis elastecendo os critérios para concessão de outros benefícios assistenciais e aumentando para ½ salário mínimo o valor padrão da renda familiar per capita.Como exemplo, citam-se a Lei 10.836/2004, que criou o BolsaFamília; a Lei 10.689/2003, que instituiu o Programa Nacional de Acesso àAlimentação; a Lei 10.219/01, que criou o Bolsa Escola; a Lei 9.533/97, queautoriza o Poder Executivo a conceder apoio financeiro a Municípios queinstituírem programas de garantia de renda mínima associados a açõessocioeducativas; e o Estatuto do Idoso (Lei 10.741/03).
Portanto, o que se tinha era a constitucionalidade em abstrato do preceito legal, consoante assentadopelo Supremo no julgamento da ADI 1.232/DF, mas a inconstitucionalidade em concreto na aplicação danorma, consideradas as circunstâncias temporais e os parâmetros fáticos do caso apresentado. Prova disso é a edição da Súmula 6 da TRU da 4ª Região, de 16 de novembro de 2004, a qual determina que o critério de verificação objetiva da miserabilidadecorrespondente a ¼ (um quarto) do salário mínimo, previsto no§ 3º do artigo 20 da Lei 8.742/93, restou modificado para ½ (meio)salário mínimo, a teor do disposto inciso I do artigo 5º da Lei 9.533/97, que autorizava o Poder Executivo a conceder apoiofinanceiro aos Municípios que instituíssem programas degarantia de renda mínima associados a ações socioeducativas, e§ 2º do artigo 2º da Lei 10.689/2003, que instituiu o ProgramaNacional de Acesso à Alimentação – PNAA.Portanto, o que se tinha era a constitucionalidade em abstrato do preceito legal, consoante assentadopelo Supremo no julgamento da ADI 1.232/DF, mas a inconstitucionalidade em concreto na aplicação danorma, consideradas as circunstâncias temporais e os parâmetros fáticos do caso apresentado.
Consequentemente, eclodiram no STF inúmeras Reclamaçõesajuizadas pelo INSS tendentes a fazer valer a autoridade da decisão proferida na ADI 1.232.Entretanto, a partir do ano de 2006, em julgados monocráticos, muitas dessas Reclamaçõesforam julgadas improcedentes[2]. Apenas o Plenário mantinha a decisão tal qual proferida na ADI 1.232[3].
O STF somente voltou a apreciar a matéria,em 18 de abril de 2013, no julgamento do RE 567.985/MT – reconhecida a repercussão geral da controvérsia em 09.02.2008[4] – e da Reclamação 4.374/PE.O objeto do RE567.985/MT era a possibilidade ou não, à luz do inciso V do artigo 203 da CRFB/88, de comprovação de miserabilidade do portador de necessidades especiais e do idoso, para fins de percepção do benefício de assistência continuada a que alude o referido dispositivo, por outro meio além do previsto no § 3º do artigo 20 da Lei 8.742/93. Por sua vez, a Reclamação 4.375/PE, ajuizada pelo INSS, tinha como objeto fazer valer o que decidido na ADI 1.232/DF.
Observe-se que entre o reconhecimento da repercussão geral e o julgamento do RE 567.985/MT, foi promulgada a Lei 12.435 em 6 de julho de 2011, que alterou diversos dispositivos da Lei 8.742/93. Não obstante, não houve alteração quanto ao § 3º do art. 20 da Lei 8.742/93, mantendo-se exatamente a mesma redação do referidodispositivo.
No julgamento do RE 567.985/MT, o Tribunal, por maioria, negou-lhe provimento e declarou incidenter tantum a inconstitucionalidade do § 3º do art. 20 da Lei 8.742/93. O STF seguiu o princípio de que o estabelecimento do benefício éatribuição do legislador, a quem compete defini-lo, com base emcritérios e estimativas próprias, desde que bem fundamentadas. Todavia, decidiu que o dispositivo, ainda que inconstitucional,deve permanecer aplicável até que nova legislação seja elaborada.Vencidos, parcialmente, o Ministro Marco Aurélio (Relator), que apenas negava provimento ao recurso, sem declarar ainconstitucionalidade da norma referida, e os Ministros TeoriZavascki e Ricardo Lewandowski, que davam provimento ao recurso. Não foi alcançado o quórum de 2/3 para modulação dos efeitos dadecisão para que a norma tivesse validade até 31.12.2015.Consequentemente, nos termos do inciso X do artigo 52 da CRFB/88, o STF comunicou formalmente o Senado Federal que no caso concreto deu pela inconstitucionalidade da norma. Todavia, até o momento, o Senado não suspendeu a executoriedade da lei.
Ao julgar a Reclamação 4.374/PE[5], o Tribunal, por maioria, conheceu-a e, no mérito, julgou-a improcedente. O Relator, Ministro Gilmar Mendes, dividiu a análise da questão constitucional em dois ramos argumentativos: (a) a omissão inconstitucional parcial em relação ao deverconstitucional de efetivar a norma do inciso V do artigo 203 da Constituição;e (b) o processo de inconstitucionalização do § 3º do artigo 20 da Lei 8.742/93.
Observa-se que a situação criada pelo STF, ao declarar a inconstitucionalidade incidental sem pronúncia de nulidade do § 3º do artigo 20 da Lei 8.742/93, é, senão pior, mais perigosa do que a que se tinha. Atualmente, o dispositivo ainda não teve sua executoriedade suspensa pelo Senado Federal. Portanto, continua a ser aplicado pela Administração Pública, no caso, o INSS, para deferir ou indeferir pedidos de benefício de prestação continuada. Por outro lado, o Judiciário reforçou sua tese de que há outros parâmetros para se aferir a miserabilidade do cidadão além daquele previsto na LOAS, o que repercute na revisão, senão de todas, da maioria das decisões administrativas, conforme os critérios individuais do julgador diante de cada concreto, refletindo a tendência atual de judicialização da política ou politização do Judiciário.
Delineado o estado atual da legislação acerca do benefício assistencial e da jurisprudência do Supremo a respeito dos critérios objetivos que devem ser preenchidos para se ter direito ao benefício de um salário mínimo mensal, cabe investigar em quais fundamentos jurídico-constitucionais se basearam as decisões proferidas pelo Tribunal no julgamento do RE 567.985/MT eda Reclamação 4.374/PE.
2 FUNDAMENTOS UTILIZADOS PELO STF NO JULGAMENTO DO RE 567.985/MT E DA RECLAMAÇÃO 4.374/PE
O julgamento do RE 567.985/MT não foi marcado pela unanimidade, assim como também não foi o da Reclamação 4.375/PE. A missão que ora se coloca é a análise de quais os elementos teóricos utilizados pelos Ministros em seus votos.Ver-se-á, no decorrer da exposição acerca dos fundamentos que embasaram a declaração de inconstitucionalidade do § 3º do artigo 20 da LOAS, que se atentou a conceitos relativos à função contra majoritária dos direitos fundamentais,dignidade humana, proibição de proteção deficiente, mínimo existencial e reserva do possível.
2.1 A tese da oposição potencial: tensão entre direitos fundamentais e princípio democrático
Dentre os fundamentos da decisão do STF, no voto do Ministro Marco Aurélio no julgamento do RE 567.985/MT, encontra-se menção à posição de garantia do Supremo, que deve ser exercida sempre em favor da sociedade, embora às vezes contra a visão das maiorias, pois a confiança cega no processo político majoritário poderia produzir resultados trágicos. Depreende-se do voto do Ministro oacolhimentoda tese da oposição potencial entre dois princípios, o democrático e o do Estado de Direito. Por fim, opta o Ministro por aquele em detrimento deste, acenando favoravelmente à possibilidade de a decisão do STF ir de encontro às escolhas maioritárias.
Para Jorge Reis Novais (2012, p. 35), defensor da tese da oposição potencial, evidencia-se, assim,o conflito entre princípio do Estado de Direito e princípio democrático à luz da concepção dos direitos fundamentais como trunfos contra a maioria.Essa tesedemonstra a prevalência da legitimidade da atuação do Poder Judiciário em detrimento da legitimidade da democracia quando em pauta a tutela de direitos fundamentais.
A legitimidade da intervenção do Judiciário é possível em razão de que o princípio democrático é dividido em diversos subprincípios que podem colidir entre si, o que é a base teórico-normativa do assim chamado paradoxo da democracia, que se refere ao antigo problema da abolição democrática (ALEXY, 2012, p. 447). No dizer de Alexy (2012, p. 447), a colisão entre o princípio democrático e os direitos fundamentais, ou seja, o problema da divisão de competências entre o legislador com legitimação democrática direta e responsabilidade e o tribunal constitucional apenas indiretamente legitimado constitucionalmente, e não destituível eleitoralmente, é necessário, inevitável e permanente.
Todavia, essa possibilidade de que o Juízo desconsidere soluções adotadas consoante o processo político majoritário e faça prevalecer as próprias convicções em substituição às adotadas pela sociedade deve estar embasada num verdadeiro fundamento constitucional relevante. Caso contrário, esse proceder acaba por retirar a legitimidade da função jurisdicional em respeito às respostas moldadas previamente pelo legislador e traz insegurança ao sistema, pois as regras foram feitas com o objetivo de reduzir a margem de incerteza na aplicação do Direito e assegurar a solução do sistema jurídico de modo isonômico.
Diferentemente era a posição do STF quando do julgamento da ADI 1.232/DF. Naquela ocasião, em que pese implicitamente se ter reconhecido a oposição entre direitos fundamentais e democracia, deu-se preferência a esta. Restou evidenciado o procedimento democrático maioritário e o princípio da separação dos poderes.O Ministro Nelson Jobim, redator para o acórdão da ADI 1.232/DF, cujo voto foi vencedor, referindo-se ao critério objetivo previsto no § 3º do artigo 20 da Lei 8.742/93, disse que se compete à lei dispor sobre a forma de comprovação e se a legislação resolveu criar outros mecanismos de comprovação, o problema seria da própria lei, pois o gozo do benefício dependeria de comprovar na forma da lei, e esta entendeu de comprovar dessa forma.Para o Ministro, não haveria interpretação conforme a Constituição possível porque, mesmo que se interpretasse dessa forma, não se trataria de autonomia de direito algum, pois dependeria da lei, da definição.
Em contrapartida à tese atual do STF é a tese da integração entre direitos fundamentais e democracia, tal qual acolhida pela CRFB/88, traduzida na ideia de Estado de Direito Democrático. Essa assimilação entre princípio do governo da maioria e garantia dos direitos fundamentais numa certa forma de organização do poder político expressa o conceito de democracia adjetivada, que pode ser substancial, deliberativa ou constitucional (NOVAIS, 2012, p. 19).
A integração, na construção filosófica de Dworkin, traduz a ideia de que nada se perderia nem cederia na perspectiva do princípio democrático quando se institui uma justiça constitucional, pois ela poderia derrotar a decisão da maioria parlamentar, pois não haveria tensão entre direitos fundamentais e democracia. Na visão do jusfilósofo americano, liberdade, igualdade e democracia não se opõem, mas vêm a par eesses conceitos só seriam valorados enquanto expressão da dignidade humana. Desse modo, quando a justiça constitucional invalida, por inconstitucionalidade, uma lei que viola um direito fundamental, não haveria uma supressão da democracia, mas a reposição de um benefício democrático, pois a existência do direito fundamental é condição da democracia, o qual teria sido posto indevidamente em causa pela decisão parlamentar.
Entretanto, conforme já observado, para o STF, os direitos fundamentais exerceriam uma função contra maioritária e, no caso concreto ora sob análise, teriam posto de lado o princípio democrático em prol do resguardo da dignidade da pessoa humana expressa na assistência social.
2.2 Direito à assistência social como direito fundamental calcado no princípio da dignidade humana
Ao expor seu voto no julgamento do RE 567.985/MT, o Ministro Relator Marco Aurélio questionou-se como deveria ser interpretada a cláusula constitucional “nãopossuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família”.A resposta foi encontrada nos objetivos do constituinte, expressos no artigo 3º da CRFB/88. Conforme o Ministro,os preceitosenvolvidos referem-se à dignidade humana, àsolidariedade social, à erradicação da pobreza e à assistência aosdesamparados.
Embora a ubiquidadepermeie o uso da dignidade humana na teoria da argumentação jurídica fazendo com que muitas vezes ela perca sua credibilidade, o MinistroMarco Aurélio refere que nesse caso particular deve ser aberta exceção. Para tanto, ele se vale da decomposição da dignidade humana em três elementos:(a)valor intrínseco, (b) autonomia e (c) valor comunitário, utilizando-se da divisão proposta por Luis Roberto Barroso (2013, p. 76-98).
O valor intrínseco do ser humano manifesta-se por meio de dois postulados: o antiutilitarista, que enxerga o homem como um fim em si mesmo, e não como um meio para realização de metas coletivas ou projetos pessoais de outros; e o antiautoritário, que se manifesta na ideia de que é o Estado que existe para o indivíduo, e não o contrário, impedindo a funcionalização do indivíduo (BARROSO, 2013, p. 77).
Aautonomia é o elemento ético da dignidade humana.A dignidade como autonomia protege o livre arbítrio dos indivíduos e lhes permite buscar, à sua maneira, o ideal de viver bem e de ter uma vida boa (BARROSO, 2013, p. 80). Entretanto, para que essa autonomia pessoal possa existir, é necessário assegurar aos indivíduos o mínimo existencial.“Para serem livres, iguais e capazes de exercer uma cidadania responsável, os indivíduos precisam estar além de limiares mínimos de bem-estar, sob pena de a autonomia se tornar uma mera ficção, e a verdadeira dignidade humana não existir. (...)” (BARROSO, 2013, p. 85).
O valor comunitário, no dizer de Barroso,representa o elemento social da dignidade (2013, p. 87), que inclui a ideia maior de solidariedade social, alçada à condição de princípio constitucional. Nas palavras de Barroso, o valor comunitário, como uma restrição sobre a autonomia pessoal busca sua legitimidade na realização de três objetivos: 1. A proteção dos direitos e da dignidade de terceiros; 2. A proteção dos direitos e da dignidade do próprio indivíduo; e 3. A proteção dos valores sociais compartilhados (2013, p. 88). Desse modo, vê-se que a dignidade como valor comunitário atua não apenas na proteção da esfera individual (autonomia), mas como limitador do exercício de direitos individuais de modo a resguardá-los coletivamente.
Desse modo, conclui o Ministro Relator que o critério objetivo trazido pelo § 3º do artigo 20 da Lei 8.742/93 é constitucional em abstrato e inconstitucional em concreto em razão denão atender aos elementos da dignidade humana, em especial, à autonomia.Refere que é inegável o reconhecimento de uma esfera de proteção material doser humano, como condição essencial à construção da individualidade e àautodeterminação no tocante à participação política. Nas palavras do próprio Ministro Marco Aurélio:
Soa inequívoco que deixar desamparado um ser humano desprovido inclusive dos meios físicos para garantir o próprio sustento, considerada a situação de idade avançada ou deficiência, representa expressa desconsideração do mencionado valor. Não consigo alcançar, nesse particular, argumentos para uma conclusão divergente. Observem que a insuficiência de meios de que trata a Carta não é o único critério, porquanto a concessão do benefício pressupõe, igualmente, a incapacidade de o sustento ser provido por meio próprio ou pela família, o que reforça a necessidade de proteção social. (RE 567.985/MT, 2013, p. 11)
Em contrapartida, o voto vencedor foi pela declaração de inconstitucionalidade do § 3º do artigo 20 da LOAS e foi proferido pelo Ministro Gilmar Mendes (Relator para o acórdão) nos autos da Reclamação 4.374/PE. Os fundamentos do Ministro Gilmar Mendes não se opõem aos do Ministro Marco Aurélio quanto ao critério objetivo fixado no § 3º do artigo 20 da LOAS.
Todavia, as opiniões dos Ministros divergem quanto à solução da questão tendo em vista que o Ministro Gilmar Mendes manifestou-se pela declaração de inconstitucionalidade sem nulidade devendo ser fixado prazo ao legislador para sanar a omissão parcial enquanto que o Ministro Marco Aurélio votava no sentido da constitucionalidade do dispositivo mas passível de adequação, na prática, pelos magistrados até que o legislador readequasse o texto legal ou suprimisse as falhas no dever de concretização da dignidade da pessoa humana.
2.3 Proibição da proteção deficiente
Antes de se adentrar no princípio da proibição da proteção deficiente, cabe fazer um breve introito a respeito dos direitos a prestações. Conforme Alexy (2012, p. 442-445), todo direito a uma ação positiva, ou seja, a uma ação do Estado, é um direito a prestação e, enquanto direitos subjetivos, todos os direitos a prestações são relações triádicas que envolvem um titular do direito fundamental, o Estado e uma ação estatal positiva.
Convém rememorar que os direitos a prestações não encerram apenas prestações em sentido estrito, mas também direitos à proteção e direitos à participação na organização e procedimento (ALEXY, 2012, p. 444; SARLET, 2006, p. 297).Ganha relevo para a análise da decisão do STF no julgamento do RE 567.985/MT e da Reclamação 4.374/PE, os direitos à prestação em sentido estrito, pois dentre elesse inclui a assistência social e é sobre eles que recai a aferição da proporcionalidade sob o viés da proibição da proteção deficiente.
A origem da vedação à proteção deficitária tem sua origem na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão (TCF), que a consagrou quando do julgamento do segundo caso a respeito da criminalização do aborto. Em 27 de julho de 1992, a Câmara Federal promulgou a Lei de Ajuda Familiar e à Gestante – SFHG, em razão da prescrição do Contrato da Reunificação de criar, até o final do prazo de transição, uma disciplina jurídica unificada para o direito de aborto. Segundo a SFHG, um aborto realizado dentro das primeiras doze semanas da gestação não eraantijurídico e com isso também não punível, se a grávida pudesse provarque tinha sido aconselhada por órgão criado para esse fim ou tambémlegalmente reconhecido e autorizado para essa tarefa(§ 219 StGB na redaçãoda SFHG – aconselhamento em uma situação de conflito ou de necessidade), eque a intervenção fora realizada por um médico.
Todavia, as disposições da SFHG a respeito do aborto em estado geral de necessidade (financeira) foram impugnadas pelos 249 membros da Câmara Federal e pelo governo da Baviera, que propuseram o controle abstrato de normas. Ao decidir, o TCF declarou nulo o § 218a I StGB na redação daSFHG, no ponto em que o dispositivo qualificava como não antijurídico oaborto não indicado por estado de necessidade depois de um aconselhamentosegundo o § 219 StGB na redação da SFHG.O § 219 StGB foi igualmente declarado nulo, porque o aconselhamento lá previsto não perseguiasuficientemente o objetivo de encorajar a mulher para o prosseguimentoda gravidez.
Na ocasião, o TCF considerou a regulamentação do pagamento pelo sistema público de saúde de abortosconstitucional tão somente dentro dos parâmetros da fundamentação dadecisão que excluía por princípio a possibilidade do pagamento estatal de abortos antijurídicos.Ou seja, entendeu que aLei Fundamentalnão permite a concessão de benefícios da Seguridade Socialpara a realização de um aborto cuja juridicidade não se verificou.
O TCF entendeuque o Estado deve adotar medidas normativas e fáticas suficientes para cumprir seu dever de tutela, que levem, considerando os bens conflitantes, ao alcance de uma proteção adequada e, como tal, efetiva, proibindo a insuficiência.Para o TCF, a proteção jurídica assiste ao nascituro também perante sua mãe e que ela somente é possível se o legislador por princípio proibir à mãe a interrupção da gestação,impondo-lhe, assim, o dever jurídico fundamental de gerar o filho até seu nascimento. Ainda, referiu o TCF que o Estado tem a plena responsabilidade sobre a realização do procedimento do plano de aconselhamento e que a participação do médico deve proporcionar, concomitantemente, a proteção da vida intrauterina, e não apenas o interesse da mulher.
O princípio da proibição da não suficiência assim como o da proibição do excesso são faces da proporcionalidade. Diferenciam-se em razão da função do direito fundamental tutelado: se tem função defensiva (negativa), caberia aplicar a proibição de excesso, se tem função protetiva (positiva) ser-lhe-ia aplicável a vedação à proteção deficiente. Em outras palavras, ele surge de um dever de proteção imputado ao Estado (Legislativo e Judiciário) e diminui, consequentemente, a discricionariedade do legislador.
Embora de utilização incipiente pelo Supremo, o princípio da proibição da proteção deficiente emerge como parâmetro de aferição de constitucionalidade da intermediação legislativa de direitos fundamentais quando do julgamento do RE 567.985/MT e da Reclamação 4.374/PE. Referido princípio radica seu fundamento no dever, atribuído ao Estado, de promover a edição de leis e ações administrativas efetivas para proteger os direitos fundamentais.
Todavia, deve-se ressaltar que o STF não explicita nem aplica as submáximas da proporcionalidade – adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito – ao trazer o princípio da vedação à proteção deficiente como fundamento da declaração de inconstitucionalidade do § 3º do artigo 20 da Lei 8.742/93.
No âmbito do julgamento do RE 567.985/MT, indaga o Ministro Marco Aurélio, ao proferir seu voto, se a concretização legislativado princípio da dignidade humana, da solidariedade social, da erradicação da pobreza e da assistência aos desamparados é suficiente pela aplicação subsuntiva do § 3° do artigo 20 da Lei 8.742/93, ao que responde negativamente.
Conforme o Ministro refere, aincidência da regra traduz falha no dever, criado pela Carta, de plena e efetiva proteção dos direitos fundamentais, resultante da eficácia positiva de tais direitos, cuja concretização é condição essencial à construção de uma sociedade mais justa e, portanto, civilizada.
Como se sabe, os direitos fundamentais tanto possuem uma faceta negativa, que consiste na proteção do indivíduo contra as arbitrariedades provenientes dos poderes públicos, quanto cria deveres de agir. Refiro-me à denominada dimensão objetiva dos direitos fundamentais, que tem como um dos efeitos a imposição de deveres permanentes de efetividade, sob pena de censura judicial. (RE 567.985/MT, 2013, p. 17).
O princípio da vedação à proteção deficiente também vem insculpido no voto do Ministro Gilmar Mendes, quando do julgamento Reclamação 4.374/PE.Refere que se omitiu o legislador parcialmente em relação ao dever constitucional de efetivar a norma do inciso V do artigo 203 da Constituição ao fixar o critério de ¼ do salário mínimo como renda mensal per capita a ser preenchido pelo indivíduo elegível ao recebimento do benefício assistencial. Para o Ministro, quando o legislador fixa o critério de ¼ do salário mínimo como parâmetro aferidor da miserabilidade para concessão de LOAS, ele viola o princípio da proibição da proteção insuficiente do direito fundamental à assistência social, pois ficou aquém do mínimo exigido constitucionalmente, razão por que caberia ao STF intervir controlando essa desproporção.
Portanto, para o Supremo, na esteira do voto vencedor do Ministro Gilmar Mendes, a lei édeficiente na regulamentação do direito fundamental à assistência social e, por isso, viola o princípio da proporcionalidade não como proibição de excesso, mas como proibição de proteção deficiente.
Por fim, constata-se que o Supremo, ao declarar que o § 3º do artigo 20 da Lei 8.742/93 é insuficiente na efetivação do direito à assistência social, não especificao que seria medida suficiente, nem apresenta os critérios objetivos para sua aferição, deixando tal tarefa a cargo do julgador e dando margem a subjetivismos e casuísmos.
2.4 Mínimo existencial
Analisando-se a legislação em vigor, verifica-se que, no Brasil,não há previsão constitucional expressa consagrando um direito geral à garantia do mínimo existencial. O fundamentoestaria calcado na existência digna, consagrada no artigo 170 da CRFB/88, o qual assegura a todos existência digna como meio de proteger a vida e promover a dignidade da pessoa humana.
No âmbito da ordem constitucional, os direitos sociais comungam da dupla fundamentalidade formal e material (SARLET; FIGUEIREDO, 2008, p. 17). Todavia, nem todos eles compõem o mínimo existencial.
Ana Paula Barcellos (2008, p. 77) define o mínimo existencial como a fração nuclear da dignidade da pessoa humana com eficácia jurídica positiva ou simétrica, que é composto dequatro elementos:três materiais eum instrumental, decompostos em educação fundamental, saúde básica, assistência aos desamparados e acesso à justiça.A afirmação de Barcellos transparece o reconhecimento da estrutura dos princípios como composta de duas partes: núcleo e área não nuclear.
Assim, o mínimo existencial compõe a área nuclear da dignidade enquanto que a área não nuclear comporta um espaço dentro do qual as maiorias políticas podem fazer suas escolhas de maneira legítima.No caso ora sob análise, por exemplo,o STF entendeu que a assistência social compõe o núcleo da dignidade humana e que os parâmetros fixados pela maioria simples para concedê-la a quem dela necessitar não estariam assegurando aos indivíduos existência digna, razão pela qual caberia ao Tribunal Constitucional intervir na política pública.
Na tentativa de definir o que seria o mínimo existencial, Sarlet e Figueiredo (2008, p. 22-26) já repelem de antemão duas constatações: o mínimo existencial não se confunde com o mínimo vital nem com o mínimo de sobrevivência e é impossível aferir apriorística e taxativamente um elenco dos elementos nucleares do mínimo existencial.
O mínimo vital ou de sobrevivência diz respeito à garantia da vida humana sem necessariamente abranger as condições para uma sobrevivência digna (SARLET; FIGUEIREDO, 2008, p. 22). Para efetivá-lo, o Estado deveria assegurar, em regra,os direitos e garantias de defesa.
No que toca à impossibilidade de aferição apriorística e taxativa de quais elementos compõem o mínimo existencial, Sarlet e Figueiredo (2008, p. 26)destacam que o mínimo existencial reclama uma análise à luz das necessidades de cada pessoa e de seu núcleo familiar caso a caso, o que não descarta a ideia de que os direitos fundamentais em geral e os direitos sociais em particular possuem um núcleo essencial. Significa que apesar de os direitos fundamentais possuírem um núcleo essencial identificado com o mínimo existencial, não significa que esse núcleo será sempre o mesmo dispensando a contextualização. Essa constatação é evidenciada no julgamento do RE 567.985/MT, em especial no voto do Ministro Marco Aurélio ao referir que:
É certo que as prestações básicas que compõem o mínimo existencial– esse conjunto sem o qual o ser humano não tem dignidade – não são asmesmas de ontem, e certamente não serão iguais às de amanhã. Assim,embora as definições legais nessa matéria sejam essencialmentecontingentes, não chegam a mostrar-se desimportantes. Fixam ospatamares gerais para a atuação da Administração Pública, além depermitir razoável margem de certeza quanto ao grupo geral defavorecidos pela regra, o que terá impactos na programação financeira doEstado.(p. 23).
Barroso (2013, p. 85) refere que o mínimo existencial ou mínimo socialestá no núcleo essencial dos direitos sociais e econômicos e existem como direitos realmente fundamentais, e não como meros privilégios dependentes do processo político.Para os indivíduos serem livres, iguais e capazes de exercer uma cidadania responsável, precisam estar além dos limiares mínimos de bem-estar. Caso contrário, a autonomia torna-se mera ficção e a dignidade humana não existe (BARROSO, 2013, p. 85). Ou seja, a eliminação da forma aguda de pobreza por meio da garantia do mínimo social é pré-condição da construção de uma sociedade verdadeiramente democrática.
Portanto, deve ser assegurada a satisfação de determinadas necessidades básicas como, por exemplo, alimentação, moradia e assistência social a fim de restar assegurado o que a doutrina denominou de mínimo existencial, com o que concordou o Ministro Marco Aurélio, ao proferir seu voto no julgamento do RE 567.985/MT. Referiu que existe certo grupo de prestações essenciais básicas que devem ser fornecidas ao ser humano para simplesmente ter capacidade de sobreviver e que o acesso a tais bens constitui direito subjetivo de natureza pública (RE 567.985/MT, 2013, p. 13-14).
Ricardo Lobo Torres constata tendência atual de redução da jusfundamentalidade dos direitos sociais ao mínimo existencial, o que reflete a maximização do mínimo existencial e minimização dos direitos sociais em sua extensão, mas não em profundidade (2008, p. 75). Essa constatação reflete-se tanto na doutrina quanto na jurisprudência do STF.
Para Sarlet (2001, p. 60-85), o mínimo existencial está imbricado na dignidade humana, pois a dignidade humana é princípio fundante tanto dos direitos de defesa quanto dos direitos sociais a prestações e a dignidade humana se abre para o jogo de ponderação com outros princípios constitucionais diante de interesses emergentes.Do mesmo modo, o jurista (SARLET, 2008, p. 42) entende que o mínimo existencial seria um princípio. Em contrapartida, Barcellos (2008, p. 77)defende a ideia de que o mínimo existencial possui eficácia jurídica positiva ou simétrica e que não seria ele um princípio, mas regra em virtude de que não admite ponderação.
Abordado o mínimo existencial, o próximo desafio é analisar como será prestado pelo Estado diante de seu aspecto limitador denominado reserva do possível ou limite orçamentário.
2.5 Reserva do possível
A doutrina, fortemente influenciada pela obra deStephen Holmes e Cass Sunstein denominada The Cost of Rights–Why liberty dependon Taxes, compartilha do entendimento de que todos os direitos têm custos, sejam eles direitos de defesa ou direitos a prestações. Jurisprudencialmente, não há notícias de o Judiciário ter negado um direito subjetivo de conteúdo negativo (direito de defesa) em razão de não possuir os recursos financeiros necessários a resguardá-lo.Por outro lado, são incontáveis as vezes em que o Judiciário não reconhece um direito subjetivo positivo sob a alegação do seu custo. Isso demonstra que a reserva do possível é invocada quando em causa a eficácia e efetivação de um direito fundamental prestacional em sentido estrito.
O princípio da reserva do possíveloriginou-se na Alemanha em 1970 no caso numerus clausus. Estava em discussão o § 17 da Lei Universitária de Hamburg, de 25 de abril de 1969,a qual determinava que a admissão para alguns cursos poderia ser restringida em vista da capacidade de absorção da universidade, as limitações da admissão seriam regulamentadas por leis de admissão, nas quais deveriam ser estabelecidas regras sobre a escolha e o número de candidatos a serem admitidos e que as leis de admissão seria estatuídas pelo Senado (Conselho Acadêmico).
Consequentemente, o Senado (Conselho) estatuiu para o semestre de verão de 1970 uma lei de admissão ao curso de medicina humana e odontologia que determinava que as vagas disponíveis para candidatos deveriam ser distribuídas na proporção de 60% segundo fatores de desempenho (currículo do candidato) e 40% segundo oprincípio do ano de nascimento; pode ainda uma parte das vagas a seremdefinidas a cada semestre ficar reservada a casos especialmente peculiares(difíceis). A escolha segundo os fatores de desempenho baseava-sefundamentalmente na nota média aferida do certificado de conclusão docurso secundário. No caso da escolha segundo o princípio doano de nascimento, eram admitidos prioritariamente candidatos que játivessem prestado o serviço militar ou um serviço civil alternativo àquele.
Ao decidir, em controle concreto de constitucionalidade, o TCFA declarou o § 17 da Lei Universitária de Hamburg, no caso de um numerus clausus absoluto, como sendo incompatível com aLei Fundamental, pois o legislador não fixou, para o caso de limitações absolutas de admissão, regras sobre o modo e a relação hierárquica dos critérios de escolha. Ainda, os fundamentos da decisão dizem respeito ao direito à livre escolha profissional e dos locais de ensino, que são garantidos constitucionalmente (Art.12 I 1 GG), assim como o princípio geral de igualdade e o princípio do Estado Social, do qual decorre o direito à admissão no curso universitário. Esse direito não é ilimitado. Todavia, as restrições apenas seriam constitucionais se fossem determinadas nos limites do estritamente necessário e se houvesse escolha e distribuição dos candidatos segundo critérios racionais com chance para todo candidato qualificado ao ensino superior e com respeito, na maior medida do possível, à escolha individual do lugar do ensino.Ouseja, o poder regulamentar, segundo o Art. 12 I GG, deve ser tão mais limitado quanto mais ele atingir também a liberdade de escolha profissional.
No âmbito doutrinário nacional, Sarlet(2006, p. 302) refere que o princípio da reserva do possível apresenta uma dimensão tríplice, que abrange (a) a efetiva disponibilidade fática dos recursos para a efetivação dos direitos fundamentais; (b) a disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos, que está relacionada à distribuição das receitas e competências; e a (c) proporcionalidade da prestação, especialmente no que tange à sua exigibilidade (2006, p. 301-302).Todavia, para o jurista (SARLET, 2006, p. 302), não prospera a afirmação de que a reserva do possível é elemento integrante dos direitos fundamentais como se fosse parte de seu núcleo essencial, como também discorda da afirmação de que faria parte do que se denomina de limites imanentes dos direitos fundamentais.
A proteção positiva do mínimo existencial, ao contrário dos direitos sociais, não se encontra sob a reserva do possível, pois sua fruição independe do orçamento e de políticas públicas (TORRES, 2008, p. 81). Entretanto, a não prevalência da reserva do possível sobre o mínimo existencial não significa que não deve ser respeitada a reserva do orçamento (TORRES, 2008, p. 83).
Ao se analisar as decisões do STF nos julgamentos do RE 567.985/MT e da Reclamação 4.374/PE, observa-se que a reserva do possível ou limite orçamentário, em que pese ter sido abordada, não foi fator impeditivo à declaração de inconstitucionalidade do § 3° do artigo 20 da Lei 8.742/93. O Ministro Gilmar Mendes, em que pese ter sido voto vencido nesse ponto, pretendeu modular os efeitos da decisão para que o legislador readequasse os critérios objetivos até 31.12.2015 sob a alegação da necessidade de adequação do orçamento da Previdência Social, ou seja, ser dada oportunidade ao Estado de prever, em seu Plano Plurianual, a verba necessária para atender às despesas emergentes(RE 567.985/MT, 2013, p. 72).
O Ministro Ricardo Lewandowski, ao proferir seu voto no RE 567.985/MT, foi mais enfático em relação ao custo dos direitos. Referiu que não caberia ao Judiciário imiscuir-se nas políticas públicas, pois, no caso do § 3º do artigo 20 da Lei 8.742/93, a política pública foi estabelecida com relação ao idoso. Boa ou má, referiu o Ministro, há política pública. Por fim, invocou o § 5º do artigo 195 da CRFB/88, o qual dispõe que “nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderáser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total". Ressaltou o Ministro que se fosse deixado ao bel prazer de cada magistrado local criar um benefício previdenciário sem observar o que dispõe o § 5º do artigo 195 da CRFB/88, sem indicar recursos, o Brasil iria à falência, iria à bancarrota (2013, p. 68).
O Ministro Marco Aurélio, em seu voto, também invocou o princípio da reserva do possível. Referiu que o orçamento, embora peça essencial nassociedades contemporâneas, não possui valor absoluto e que a naturezamultifária do orçamento abre espaço para encampar essa atividadeassistencial que se mostra de importância superlativa no contexto daConstituição de 1988 (RE 567.985/MT, 2013, p. 21).
Da análise das decisões examinadas no decorrer deste trabalho, observa-se que o STF chegou à conclusão de que o princípio da competência orçamentária do legislador não é ilimitado nem é absoluto e que os direitos sociais podem ter mais peso do que os fundamentos de política financeira. Verifica-se que, ao realizar o controle concreto de constitucionalidade, a reserva do possível não é fator impeditivo à concessão do direito à assistência social. Todavia, quando se trata de controle abstrato de constitucionalidade, o Tribunal demonstra maior preocupação com as consequências econômicas das suas decisões como, por exemplo, com o custo dos direitos, a escassez de recursos e a reserva do possível, sendo uma das razões pelas quais declarou a inconstitucionalidade do § 3° do artigo 20 da Lei 8.742/93 sem pronúncia de nulidade. Deixou a cargo do legislador a fixação dos parâmetros objetivos para o indivíduo fazer jus à assistência se dela necessitar. A mesma constatação foi feita por Daniel Wang (2008, p. 364) ao examinar o direito à educação e a diferença de tratamento dado pelo STF quando realiza o controle concreto e abstrato de constitucionalidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Analisadas as decisões do STF no julgamento do RE 567.985/MT e da Reclamação 4.374/PE e os elementos teóricos que as sustentam, verifica-se que refletem a característica atual do Supremo e do Poder Judiciário de serem ordenadores de despesas públicas, o que dificulta o planejamento orçamentário realizado pelo Executivo e pelo Legislativo.
No caso sob comento, o STF exerceu o papel de legislador negativo e positivo ao declarar a inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade do § 3° do artigo 20 da Lei 8.742/93. Negativo porque considerou que o critério legal não atende ao ditame constitucional de assegurar a todos existência digna. Referiu o Supremo que o critério de ¼ do salário mínimo deve ser revisto em razão de ter sofrido processo de inconstitucionalização no decorrer do tempo, pois teriam sido publicadas leis posteriores à Lei 8.742/93, as quais teriam fixado o critério de ½ salário mínimo por pessoa do grupo familiar como o limite objetivo para concessão do benefício assistencial.Todavia, deve-se relembrar que em 2011 foram reformulados diversos dispositivos da Lei 8.742/93 pela Lei 12.435. Por sua vez, o § 3º do artigo 20 da Lei 8.742/93 restou intacto, donde se conclui que o legislador não teve a intenção de modificá-lo não obstante as decisões judiciais tenham encontrado meios de contorná-lo.
A função de legislador positivo foi desempenhada pelo STF quando, no caso concreto, entendeu que o critério legal não gozava de presunção absoluta. A decisão do Supremo indicou que o critério objetivo fixado legalmente estava ultrapassado e naquele caso deveria ser conjugado com outros meios de prova a fim de ser aferida a renda mensal per capita do grupo familiar do solicitante do benefício de um salário mínimo mensal.
Portanto, o panorama atual demonstra que o Judiciário está deferindo os pedidos de benefícios assistenciais que foram negados pela Administração. O motivo é a diferença de critérios para aferição da miserabilidade existente entre os Poderes. Enquanto o Judiciário desconsidera o critério legal para conceder os benefícios, o INSS nega os pedidos nos quais a renda mensal per capitada família do solicitante ultrapassa ¼ do salário mínimo e faz isso porque a Administração Pública está atrelada ao princípio da legalidade estrita, não lhe cabendo, nesse caso (in)deferir benefício discricionariamente.
Desse modo, abre-se um leque de situações fáticas e jurídicas: a preterição do critério de ¼ do salário mínimo em favor de ½ salário mínimo; a perseguição do critério de ¼ do salário mínimo, porém passível de ser destituído por outros meios de prova como, por exemplo, contas de água, luz, medicamentos, aluguel, entre outros; a perseguição do critério de ¼ do salário mínimo, porém aferido o valor líquido e não o bruto. Essas situações invariavelmente serão decididas pelo Judiciário. Entretanto, não se sabe como será decidido, pois dependerá das circunstâncias fáticas e subjetivas de cada julgador, o que demonstra a ausência da ratio decidendi a permear as decisões jurídicas.
Deve-se observar que o STF ainda não pôs fim à questão. Do modo como o Supremo vem promulgando a judicialização da política ou a politização do Judiciário, invariavelmente terá que decidir se o novo critério legal a ser adotado pelo legislador terá presunção absoluta ou relativa, ou seja, se permitirá ou não a possibilidade de serem comprovados outros casos de efetiva falta de meios para que oportador de necessidades especiais ou o idosopossa prover a própria manutenção outê-la provida por sua família.
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[1] EMENTA: CONSTITUCIONAL. IMPUGNA DISPOSITIVO DE LEI FEDERAL QUE ESTABELECE O CRITÉRIO PARA RECEBER O BENEFÍCIO DO INCISO V DO ART. 203, DA CF. INEXISTE A RESTRIÇÃO ALEGADA EM FACE AO PRÓPRIO DISPOSITIVO CONSTITUCIONAL QUE REPORTA À LEI PARA FIXAR OS CRITÉRIOS DE GARANTIA DO BENEFÍCIO DE SALÁRIO MÍNIMO À PESSOA PORTADORA DE DEFICIÊNCIA FÍSICA E AO IDOSO. ESTA LEI TRAZ HIPÓTESE OBJETIVA DE PRESTAÇÃO ASSISTENCIAL DO ESTADO. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE.ADI 1232 / DF - DISTRITO FEDERAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO. Relator(a) p/ Acórdão: Min. NELSON JOBIM. Julgamento: 27/08/1998. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. REQTE.: PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA. REQDO.: PRESIDENTE DA REPÚBLICA. REQDO.: CONGRESSO NACIONAL.
[2]Rcl 4.374 MC/PE, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 01/02/2007, DJ 06/02/2007, p. 111; Rcl 3.805/SP, rel. Min. Cármen Lúcia, j. 09/10/2006, DJ 18/10/2006, p. 41; Rcl 4.280/RS, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 20/06/2006, DJ 30/06/2006, p. 42; Rcl 4.145/RS, rel. Min. Marco Aurélio, j. 30/04/2006, DJ 10/05/2006, p. 36.
[3]Rcl-MC-AgR 4.427/RS, Pleno, rel. Min. Cezar Peluso, j. 06/06/2007, DJ 29/06/2007, p. 23; Rcl 2.323/PR, Pleno, rel. Min. Eros Grau, j. 07/04/2005, DJ 20/05/2005, p. 8; Rcl-AgR 2.303/RS, Pleno, rel. Min. Ellen Gracie, j. 13/05/2004, DJ 01/04/2005, p. 5.
[4] Tema 27 - Meios de comprovação do estado miserabilidade do idoso para fins de percepção de benefício de assistência continuada.
[5] Decisão: O Tribunal, por maioria, conheceu da reclamação, vencidos os Ministros Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Joaquim Barbosa (Presidente), que dela não conheciam. No mérito, por maioria, julgou improcedente a reclamação, vencido o Ministro Teori Zavascki, que a julgava procedente. Plenário, 18.04.2013.Origem: PE – PERNAMBUCO. Relator: MIN. GILMAR MENDES. RECLTE.(S)INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL – INSS. ADV.(A/S) PROCURADOR-GERAL FEDERAL. RECLDO.(A/S) TURMA RECURSAL DOS JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS DO ESTADO DE PERNAMBUCO. INTDO.(A/S) JOSÉ SEVERINO DO NASCIMENTO. ADV.(A/S)DILMA MARIA CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE.
Mestranda em Direito, Democracia e Sustentabilidade pelo Complexo de Ensino Superior Meridional (IMED); especialista em Direito Processual Civil pela LFG - Anhanguera; especialista em Direito Público pela PUC/RS; graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM/RS); membro do grupo de pesquisa intitulado "Jurisdição e Democracia", vinculado à IMED; Procuradora Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LOSS, Marianna Martini Motta. Os fundamentos jurídico-constitucionais do direito à assistência social na análise da jurisprudência do STF Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 dez 2014, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42243/os-fundamentos-juridico-constitucionais-do-direito-a-assistencia-social-na-analise-da-jurisprudencia-do-stf. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Maurício Sousa da Silva
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