Resumo: O estudo da evolução do rol de dependentes do benefício de pensão por morte e das mudanças na sociedade como um todo nos mostra uma tendência à ampliação do benefício para abranger pessoas em menor situação de vulnerabilidade social, experiência que não pode ser ignorada nas atuais discussões acerca de eventual alteração legislativa.
A pensão por morte é um dos benefícios mais antigos do nosso ordenamento. A Lei Eloy Chaves (Decreto n. 4.682/23), considerada pela doutrina como o marco inicial da Previdência Social no Brasil, já trazia em seus artigos a previsão de concessão de pensão para os herdeiros dos ferroviários que viessem a falecer após 10 anos de serviço ou por decorrência de acidente de trabalho.
Da leitura do mencionado diploma legal percebe-se que é adotada uma visão de caráter securitário, em que o beneficiário é chamado de herdeiro e não dependente, e as contribuições poderiam ser devolvidos (embora de foram limitada) mesmo no caso do trabalhador não ter completado o período de 10 anos necessário para o recebimento da pensão¹. O beneficiário era escolhido pela ordem de sucessão.
Por outro lado, o instituto se afastava de um seguro de vida típico por estarem incluídos no art. 26 da lei apenas “ a viuva ou viuvo invalido, os filhos e os paes e irmãs emquanto solteiras, na ordem da successão legal, requerer pensão á caixa creada por esta lei” [texto original]. Ou seja, há nítida intenção de se proteger algumas pessoas em provável situação de vulnerabilidade após a perda do provedor.
Curiosamente, enquanto a lei menciona tanto a viúva quanto o viúvo inválido, apenas para a beneficiária do sexo feminino nega-se expressamente o direito no caso de divórcio (art. 33, parágrafo único). Não se olvide, no entanto, que a lei previa proteção específica para herdeiras do sexo feminino, tais como filhas e irmãs solteiras, que perderiam direito ao benefício ao contrair novo matrimônio (assim como acontecia para os viúvos inválidos). Em suma, presumia-se que com o casamento o dever de sustento passasse para o novo cônjuge, inexistindo necessidade do amparo de pensão.
O tratamento diferenciado dado à herdeiras do sexo feminino era plenamente justificado à época, em que as mulheres tinham imensas dificuldades em ingressar no mercado de trabalho (dificuldades que existem em menor grau até os dias atuais) e eram abertamente discriminadas pela legislação, que as considerava relativamente incapazes quando casadas e excluídas do “pátrio poder”.
A partir do Decreto n. 26.778/49, a legislação previdenciária acrescentou a esposa entre os beneficiários da pensão por morte, independentemente de invalidez, presumindo-se sua dependência em relação ao marido falecido:
Art. 34. Consideram-se beneficiários:
I - a esposa, o marido inválido, os filhos de qualquer condição, se menores de 18 anos ou inválidos e as filhas solteiras de qualquer condição, se menores de 21 anos ou inválidas;
II - a mãe e o pai inválido, os quais poderão, mediante declaração expressa do segurado, concorrer com a esposa ou esposo inválido;
III - os irmãos menores de 18 anos ou inválidos e as irmãs solteiras menores de 21 anos ou inválidas.
§ 1º A dependência econômica das pessoas indicadas no inciso I é presumida e a das demais enumeradas deve ser devidamente comprovada.
A Lei Orgânica da Previdência Social (Lei n. 3.807/60) seguiu o mesmo caminho, pelas mesmas razões. O rol de dependentes deixa claro que a legislação visa proteger aqueles que, em princípio, não teriam condições de assegurar por si sós seu sustento, situação na qual se inseriam agrande maioria das mulheres à época, como acima mencionado. Tal escolha já demonstra a aplicação do princípio da seletividade e distributividade, segundo os quais o legislador, ao organizar a seguridade social, deve privilegiar situações de maior necessidade social, e ao mesmo tempo limitar os benefícios aos que deles tem menor necessidade de forma a não comprometer o atendimento dos primeiros.
A legislação posterior, mesmo alterando por vezes o rol de dependentes acrescentando a companheira, pessoa designada, o menor sob guarda) manteve a mesma função protetiva que é marca da Previdência Social como um todo.
Apenas após o advento da Constituição Federal de 1988, que determinou expressamente em seu art. 5º, I, a igualdade de direitos e obrigações entre homens e mulheres, que os homens passaram a ser considerados dependentes de pensão por morte. A norma constitucional foi refletida na atual Lei n. 8.213/91, que incluiu entre os dependentes o Cônjuge ou companheiro independente de sexo (o que chegou a gerar discussões acerca da aplicabilidade imediata da norma constitucional, uma vez que o Instituto Nacional do Seguro Social chegou a negar pensão por morte a pessoas do sexo masculino em situações de óbito da esposa ou companheiro entre a promulgação da Constituição e a edição da Lei n. 8.213/91).
A equiparação do homem na condição pode ser justificada pela diminuição das diferenças entre os gêneros, tanto na legislação infraconstitucional quanto na vida social, em que as mulheres tem participação cada vez maior no mercado de trabalho (sem atingir, no entanto, até o momento, efetiva igualdade material).
Por outro lado, inclusão de cônjuge e companheiro do sexo masculino no rol de dependentes da pensão por morte marca uma mudança de paradigma em relação ao benefício. Após muitas décadas dedicada à proteção exclusivamente de grupos socialmente mais vulneráveis, que muitas vezes não tinham nenhuma outra fonte de renda, o benefício se amplia para abranger a proteção de viúvos que podem estar amparados pelo recebimento de salários ou aposentadoria.
Tal mudança de paradigma é acentuada, em especial, por quatro fatos.
Em primeiro lugar, o homem, assim como a mulher, passa a gozar de presunção de dependência em relação ao segurado falecido, sendo despicienda a prova dessa situação (ao contrário do que ocorre, por exemplo, com os pais do segurado). Embora discuta-se na doutrina e jurisprudência se tal presunção é absoluta ou relativa (sendo a tese da presunção absoluta majoritária), o próprio Instituto Nacional do Seguro Social concede o benefício sem maior análise da situação econômica do pensionista.
Em segundo lugar, a cessação da pensão por morte por causa de novo matrimônio não é prevista na Lei n. 8.213/91, o que chegou a gerar casos de recebimento de duas ou mais pensões pela mesma pessoa, após o falecimento de diversos cônjuges, situação que só foi afastada com a Lei n. 9.032/95. Ademais, a tentativa do governo de vedar a acumulação de pensão por morte e aposentadoria acabou fracassando em curto espaço de tempo (a MP nº 1.523-9/1997, que trazia a vedação, acabou revogada naquele mesmo ano).
Em terceiro lugar, a existência de mudanças sociais que geraram viúvas mais jovens e com maior acesso ao mercado de trabalho (em que pese a discriminação ainda existente) faz com que também as beneficiárias do sexo feminino, assim como os beneficiários do sexo masculino, possam encontrar-se em situação de necessidade inferior aos demais dependentes previstos em lei (que incluem crianças e inválidos, por exemplo).
Em quarto lugar, o valor da pensão por morte, que na Lei Eloy Chaves era limitado a, no máximo, cinquenta por cento do valor que seria devido ao aposentado, foi sendo alterado por sucessivas legislações até chegar nos atuais cem por cento, causando valorização desse benefício em relação a outros benefícios previdenciários tais como o auxílio-doença.
Em suma, passa-se a proteger qualquer situação de viuvez, independentemente da vulnerabilidade do dependente. A pensão por morte, de certa forma, passa a ser vista mais como uma consequência das contribuições do segurado do que necessariamente da necessidade do dependente, ao menos nos casos de cônjuge ou companheiro.
Por outro lado, a combinação dos fatores sociais, legais e demográficos acaba por fazer com que a pensão por morte gere uma crescente pressão financeira sobre o sistema previdenciário, aumentando o gasto causado por tais benefícios de R$ 77,6 bilhões, em 2013, para R$ 90 bilhões em 2014, em estimativa do Ministério da Fazenda. Isso faz com que o governo discuta medidas como cortar pela metade o valor das pensões dos viúvos e diminuir para uma fração de apenas 10% do benefício o valor pago aos filhos menores de 21 anos, entre outras propostas que enfrentam rejeição por parte significativa da população².
A evolução legislativa do benefício de pensão por morte no que diz respeito aos dependentes nos mostra que, embora o legislador tenha logrado aumentar de foram contínua o número de beneficiários, nem sempre obteve êxito em dar máxima efetividade aos princípios da seletividade e da distributividade, colocando pessoas em situação de menor vulnerabilidade social em situação de igualdade com os mais vulneráveis, como crianças, adolescentes, idosos e inválidos.
Entendemos que qualquer alteração à legislação previdenciária deve ser precedida pela reflexão não apenas sobre gastos crescentes mas também sobre a realidade social e em especial os princípios do Direito Previdenciário, sem os quais as leis perdem grande parte de seu sentido.
Notas:
¹ DERZI, Heloísa Hernandez. Equívocos da reforma previdenciária do setor público. Publicado na Revista de Direito Social nº 12, p. 55, 2003. Disponível em: <http://www.amdjus.com.br/doutrina/administrativo/101.htm>. Acesso em: 4 dez. 2014.
² CASTELANI, Clayton. Mudança no INSS pode deixar viúva sem filhos com pensão menor. Folha de São Paulo, São Paulo, 04/12/2014. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2014/12/1557358-mudanca-no-inss-pode-deixar-viuva-sem-filhos-com-pensao-menor.shtml>. Acesso em: 4 dez. 2014.
Referências:
ALENCAR, Hermes Arrais. Benefícios previdenciários. 3. ed. São Paulo: Livraria e
Editora Universitária de Direito, 2007.
SANTOS, Marisa Ferreira dos. Direito previdenciário esquematizado / Marisa Ferreira dos Santos; coord. Pedro Lenza. – 3. ed. de acordo com a Lei n. 12.618/2012 – São Paulo : Saraiva, 2013.
DERZI, Heloísa Hernandez. Equívocos da reforma previdenciária do setor público. Publicado na Revista de Direito Social nº 12, p. 55, 2003. Disponível em: <http://www.amdjus.com.br/doutrina/administrativo/101.htm>. Acesso em: 4 dez. 2014.
Procurador Federal em exercício na Procuradoria Geral Federal de Santos-SP, órgão da Advocacia-Geral da União (AGU)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AVIAN, Eduardo. Pensão por morte: evolução história, mudança de paradigma e situação atual Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42263/pensao-por-morte-evolucao-historia-mudanca-de-paradigma-e-situacao-atual. Acesso em: 23 dez 2024.
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