No contexto do regime de previdência complementar fechada, o ato de descumprir cláusula do estatuto de uma entidade fechada ou do regulamento de seus planos de benefícios é tido como conduta infracional, passível de aplicação de penalidade administrativa pelo órgão fiscalizador, no caso a Superintendência Nacional de Previdência Complementar – PREVIC.
Contudo, a existência de conduta apta a justificar a lavratura de auto de infração pela PREVIC nem sempre se coaduna com uma análise meramente cartorial da disposição estatutária ou regulamentar.
A presente abordagem dedica-se a demonstrar que não raro se constatam cláusulas absolutamente estranhas a esses tipos de documento, a demandar certo grau de flexibilização do tipo infracional descrito.
A Lei Complementar 109/2001, Lei Geral da Previdência Complementar, determina em seu art. 66 que as infrações praticadas no âmbito do regime de previdência complementar hão de ser apuradas por meio de processo sancionador disciplinado em regulamento próprio.
Eis o seu teor:
“Art. 66. As infrações serão apuradas mediante processo administrativo, na forma do regulamento, aplicando-se, no que couber, o disposto na Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999.”
Editou-se, então, o Decreto 4.942/2003, que regulamenta o processo administrativo para apuração de responsabilidade por infração à legislação no âmbito do regime da previdência complementar, operado pelas entidades fechadas de previdência complementar.
Em seu art. 90, o aludido decreto descreve a seguinte conduta, em seu rol de infrações e penalidades cabíveis:
“Art. 90. Descumprir cláusula do estatuto da entidade fechada de previdência complementar ou do regulamento do plano de benefícios, ou adotar cláusula do estatuto ou do regulamento sem submetê-la à prévia e expressa aprovação da Secretaria de Previdência Complementar.
Penalidade: multa de R$ 10.000,00 (dez mil reais), podendo ser cumulada com suspensão pelo prazo de até cento e oitenta dias.
Como se vê, entre outras condutas, tem-se por prática irregular o descumprimento de cláusula do estatuto de entidade fechada ou do regulamento de seu plano de benefícios, tipificação esta visivelmente direcionada a seus dirigentes.
Numa leitura superficial ou desavisada deste dispositivo, bastaria a comprovação da autoria, isto é, do responsável pelo descumprimento imputado, assim como da materialidade, consubstanciada na constatação da efetiva inobservância da cláusula. Assim, seria, a princípio, uma das hipóteses mais simples de lavratura de auto de infração.
Porém, uma análise mais cuidadosa, leva a crer que a realidade não é bem esta.
Isto porque a interpretação demasiadamente ampliativa dada ao disposto no art. 90 do Decreto 4.942/2003 não parece se coadunar com os ditames legais que norteiam a atuação da autarquia.
Ao contrário, conforme ensina Carlos Maximiliano, “[e]m regra, é estrita a interpretação das leis excepcionais, das fiscais e das punitivas” [1].
Ademais, como já salientado no artigo “Os limites da fiscalização exercida pela PREVIC”[2], há que se afastar a ideia de que toda e qualquer celeuma envolvendo, de alguma forma, uma EFPC deva ser dirimida pela PREVIC, sob pena de delimitar-se sua competência em razão das partes envolvidas, quando, na realidade, esta se norteia pela matéria.
Pois bem. Nos termos do art. 1º, parágrafo único, da Lei 12.154/2009, a PREVIC atuará como entidade de fiscalização e de supervisão das atividades das entidades fechadas de previdência complementar e de execução das políticas para o regime de previdência complementar operado pelas entidades fechadas de previdência complementar.
E estas atividades passíveis de fiscalização e supervisão consistem justamente na administração e execução de planos de benefícios de natureza previdenciária, conforme esclarece o caput do art. 32 da Lei Complementar 109/2001.
Posto isto, é possível fixar dois parâmetros norteadores. O primeiro deles é que, relativamente a quaisquer outros serviços alheios ao objeto de tais entidades, a atividade fiscalizatória, em regra, resume-se a uma única linha de atuação: cessar-lhes a prestação por parte das EFPCs, com esteio no parágrafo único do citado art. 32.
O segundo, este de fundamental relevância para o deslinde da presente análise, é que não compete ao órgão fiscalizador imiscuir-se em questões de mérito decorrentes de tais atividades atípicas, na medida em que não se subsumem ao conceito de administração e execução de planos de benefícios de natureza previdenciária.
Nessa linha, tem-se que a interpretação dada ao art. 90 do Decreto 4.942/2003 não deve extrapolar os limites da própria LC 109/2001. Não se pode, assim, enquadrar na hipótese ali descrita o descumprimento de toda e qualquer cláusula estatutária ou regulamentar sem antes verificar o seu conteúdo.
Em verdade, a conduta prevista no art. 90 parte da premissa de que a matéria tratada na cláusula descumprida esteja inserida no contexto legislativo do regime de previdência complementar, conforme se pode extrair dos dizeres do art. 1º do Decreto 4942/2003: “o processo administrativo para apuração de responsabilidade por infração à legislação no âmbito do regime da previdência complementar, operado pelas entidades fechadas de previdência complementar, e a aplicação das correspondentes penalidades são disciplinados por este Decreto.”
Portanto, quando a conduta em foco disser respeito a tema estranho ao regime de previdência complementar, parece clara a impossibilidade de se detectar qualquer infração a texto legal desta natureza.
E, como adiantado na introdução à presente análise, não é incomum a inserção no estatuto de uma EFPC ou no regulamento de um de seus planos de cláusulas que não lhes são próprias.
Pelo que se extrai da Resolução CGPC 8[3], de 19 de fevereiro de 2004, os elementos que devem constar no estatuto de uma EFPC são denominação, sede, foro e objeto da entidade; prazo de duração; indicação das pessoas físicas ou jurídicas passíveis de vinculação aos planos de benefícios sob sua administração e estrutura organizacional (art. 2º).
Já o regulamento deve conter glossário; nome do plano de benefícios; participantes e assistidos e condições de admissão e saída; benefícios e seus requisitos para elegibilidade; base e formas de cálculo, de pagamento e de atualização dos benefícios; data de pagamento dos benefícios; institutos do benefício proporcional diferido, da portabilidade, do resgate e do autopatrocínio; fontes de custeio dos benefícios e das despesas administrativas; e data certa dos repasses das contribuições e cláusula penal na hipótese de atraso (art. 4º).
Entretanto, esta parametrização, na prática, não é seguida com muito rigor.
Ainda que o § 2º do art. 4º da referida Resolução CGPC 8/2004 advirta que “o regulamento de plano de benefícios não deverá dispor sobre matéria estatutária, empréstimos e financiamentos a participantes e assistidos, planos assistenciais à saúde e outras matérias não relacionadas a plano de benefícios”, especialmente alguns planos de benefícios antigos, trazem em seu corpo exatamente as matérias exemplificadas como impróprias: serviços de assistência financeira e à saúde.
Portanto, nesses casos, assim como em outros eventualmente estranhos ao regime, não compete à PREVIC apreciar denúncias e por conseguinte aplicar penalidades baseadas no descumprimento a que se refere o art. 90 do Decreto 4.942/2003.
CONCLUSÃO
Por meio da presente análise, ressaltou-se a impossibilidade de uma interpretação demasiadamente ampliativa dada ao disposto no art. 90 do Decreto 4.942/2003, em vista dos ditames legais que norteiam a atuação do órgão fiscalizador.
Buscou-se demonstrar que a conduta ali descrita, alusiva ao descumprimento de cláusulas estatutárias ou regulamentares no âmbito de uma EFPC, restringe-se às hipóteses em que a matéria tratada na cláusula descumprida esteja inserida no contexto legislativo do regime de previdência complementar.
Apontou-se, ainda, exemplos de temas estranhos a esse regime serem tratados por estatutos e regulamentos, demandando um exame mais acurado de cada situação pelo intérprete da norma.
Ao final, explicitou-se que em tais situações de natureza atípica não compete à PREVIC apreciar denúncias tampouco aplicar penalidades com esteio no citado art. 90.
REFERÊNCIAS
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
ROCHA, Leonardo Vasconcellos. Os limites da fiscalização exercida pela PREVIC. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 mar. 2014. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.47467&seo=1>. Acesso em: 2 dez. 2014.
[1] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 167.
[2] ROCHA, Leonardo Vasconcellos. Os limites da fiscalização exercida pela PREVIC. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 mar. 2014. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.47467&seo=1>. Acesso em: 2 dez. 2014.
[3] “Dispõe sobre normas procedimentais para a formalização de processos de estatutos, regulamentos de plano de benefícios, convênios de adesão e suas alterações.”. Disponível em: <http://www.previdencia.gov.br/wp-content/uploads/2014/01/Colet%C3%A2nea-vers%C3%A3o-WEB.pdf >. Acesso em: 2 dez. 2014.
Procurador Federal. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Brasília - Uniceub. Bacharel em Administração de Empresas pela Universidade de Brasília - Unb. Procurador Federal em atuação no Departamento de Consultoria da Procuradoria-Geral Federal<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ROCHA, Leonardo Vasconcellos. O descumprimento de cláusulas do estatuto de entidades fechadas de previdência complementar ou do regulamento de seus planos de benefícios Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42264/o-descumprimento-de-clausulas-do-estatuto-de-entidades-fechadas-de-previdencia-complementar-ou-do-regulamento-de-seus-planos-de-beneficios. Acesso em: 23 dez 2024.
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