1. Conteúdo e significado do juiz natural
Diz a Constituição Federal, em seu art. 5º, inc. XXXVII, que “não haverá juízo ou tribunal de exceção”, e, no inc. LIII, que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. Nesses dispositivos, a Carta Magna adotou os princípios do juiz e do promotor natural.
O princípio do juiz natural, como mandamento constitucional, aplica-se somente às hipóteses de competência absoluta, vez que constitui preceito de ordem pública. Já em se tratando de competência relativa, existe, como é de sabença geral, a chamada disponibilidade privatística, já que as partes podem prorrogá-la, por acordo ou inércia de uma delas (réu) no bojo da relação processual. O que acontece é que o sistema processual civil tratou da competência relativa como sendo de interesse disponível das partes, não consistindo, portanto, preceito de ordem pública.
Como bem afirma Nelson Nery, o que se pretende coibir com a regra do art. 5º, inc. XXXVII, é “a criação de órgãos judicantes para o julgamento de questões (civis e criminais) ex post facto ou ad personam, salvo as exceções estatuídas na própria Constituição.”
Interessante perceber que o princípio do juiz natural projeta-se também no campo no direito administrativo, no sentido de determinar, por exemplo, que o servidor seja punido por ato da autoridade competente, entendida aqui como sendo aquela a quem o servidor deva subordinação funcional e hierárquica.[1]
Não é acertada a afirmação de que o juiz natural é somente aquele do lugar em que deve ser julgada a causa. “Natural é a qualificação substancial do juiz”, que pde ser aquele com competência material ou territorial previamente investido pelas leis processuais e de organização judiciária.
Costuma-se dizer que o princípio do juiz natural se traduz no seguinte conteúdo: a) exigência de determinabilidade, significando a prévia individualização dos juízes mediante leis gerais e abstratas, ou seja, a pré-constituição; b) garantia de justiça material (independência e imparcialidade dos juízes); c) fixação da competência, mediante critérios objetivos e racionais para a determinação da competência jurisdicional dos juízes; d) observância das determinações de procedimento referentes à divisão funcional interna.[2]
Como bem sintetiza Nelson Nery, com isto vedado fica o mecanismo de designação, substituição e convocação de juízes pelo Poder Executivo, tão comum em outrora, tarefa esta reservada de modo exclusivo ao Poder Judiciário, em virtude do princípio do auto governo da magistratura.[3]
No tocante ao juízo arbitral, diga-se, sem rodeios, que com a celebração do compromisso arbitral, as partes não estão renunciando ao direito de ação nem ao juiz natural. Apenas estão transferindo a jurisdição que, normalmente, é exercida por órgão oficial institucionalizado e estatal, para um destinatário privado. Como o compromisso só pode versar sobre matéria de direito disponível, é admissível que as partes assim procedam.[4] Como corretamente aponta Nelson Nery,
O que não se pode tolerar por flagrante inconstitucionalidade é a exclusão, pela lei, da apreciação de lesão a direito pelo Poder Judiciário, que não é o caso do juízo arbitral. O que se exclui pelo compromisso arbitral é o acesso à via judicial, mas não à jurisdição. Não se poderá ir À justiça estatal, mas a lide será resolvida pela justiça arbitral. Em ambas há, por óbvio, a atividade jurisdicional.
Seria inconstitucional a LArb, se vedasse à parte o acesso ao poder judiciário, instituindo, por exemplo, casos de arbitragem obrigatória. Como não o fez, não há nenhuma inconstitucionalidade em permitir às partes a escolha entre o juiz estatal e o arbitral para solucionar a lide existente entre elas.[5]
2. O promotor natural
A ideia do promotor natural surgiu, inicialmente, das propostas teóricas em prol da mitigação do poder de designação do procurador-geral de justiça, evoluindo para significar a necessidade de haver cargos específicos com atribuição própria a ser exercida pelo Promotor de Justiça, sendo proibida a designação pura, simples e arbitrária pelo Chefe do Ministério Público.[6]
Hodiernamente, no ordenamento jurídico brasileiro, mais precisamente na vigente Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei 8.625/93), está previsto que a designação de Promotor de Justiça pelo Procurador-Geral de Justiça somente é admissível nas hipóteses do art. 10, inc. X, que fixa critérios rígidos para tanto.
Na Constituição Federal da nossa República, o princípio encontra-se consagrado no art. 128, I, b.
O art. 129, I, da Carta Magna conferiu ao Ministério Público a titularidade exclusiva da ação penal pública, suprimindo, destarte, os procedimentos criminais ex officio que existiam no sistema anterior, onde o juiz e o delegado de polícia podiam dar início à ação penal mediante simples portaria.
Nesse linha de análise, extrai-se da locução “processar”, que está no art. 5º, LIII, da Constituição, o significado de que é a atribuição que se confere ao Ministério Público para mover ação judicial na seara criminal, vez que somente ele – o Parquet – pode “processar” alguém; não mais o juiz, a quem se aplica o vocábulo “sentenciar” constante da norma constitucional referida.[7]
Consoante resume Hugo Nigro Mazzili, analisando o inc. LIII, do art. 5º, da Constituição Federal,
é o mesmo princípio do promotor natural, mas agora sob uma ótica diversa. Realmente, este é o primeiro direito do acusado: não apenas o de ser julgado por um órgão independente do Estado, mas, até mesmo antes disso, o de receber a acusação independente, de um órgão do Estado escolhido previamente segundo critérios e atribuições legais, abolidos não só o procedimento de ofício e a acusação privada, como enfim e principalmente eliminada a figura do próprio acusador público de encomenda, escolhido pelo Procurador-Geral de Justiça.[8]
Registre-se, por oportuno, que em acórdão proferido em leading case, o Suprem Tribunal Federal reconheceu expressamente, em nosso sistema jurídico, o princípio do promotor natural. Nesse ínterim, o plenário do Pretório Excelso, ao julgar o HC 67759, rel. Min. Celso de Mello, proclamou a existência do princípio em exame no nosso sistema de direito positivo. Ficou entendido que é legítima a ratificação, pelo Chefe do Ministério Público, de denúncia oferecida por membro da instituição a quem se outorgaram poderes para meramente atuar na fase pré-processual da investigação criminal. A eventural atuação ultra vires do promotor designado, uma vez convalidada por deliberação superveniente e imediata do Procurador-Geral de Justiça, despoja-se de qualquer eiva de ilegalidade formal.[9]
Sob outra perspectiva, o princípio do promotor natural assume outro viés não menos merecedor de análise. Como acentua Nelson Nery,
O postulado do Promotor Natural, que se revela imanente ao sistema constitucional brasileiro, repele, a partir da vedação de designações casuísticas efetuadas pela Chefia da Instituição, a figura do acusador de exceção. Esse princípio consagra uma garantia de ordem jurídica, destinada tanto a proteger o membro do MP, na medida em que lhe assegura o exercício pleno e independente de seu ofício, quanto a tutelar a própria coletividade, a quem se reconhece o direito de ver atuando, em qualquer causas, apenas o Promotor cuja intervenção se justifique a partir de critérios abstratos e pré-determinados, estabelecidos em lei.[10]
Destarte, este princípio constitucional assenta-se nas cláusulas da independência funcional e da inamovibilidade dos membros da Instituição.
Para que o princípio seja respeitado em sua integridade, exige-se a observância concomitante de quatro requisitos, a saber: 1) a investidura regular no cargo de Promotor de Justiça; 2) a existência de órgão de execução; 3) a lotação por titularidade e inamovibilidade do Promotor de Justiça no órgão de execução, exceto as hipóteses legais de substituição e remoção; e 4) a definição legal das atribuições do órgão.[11]
3. REFERÊNCIAS
CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. O Ministério Público no processo civil e penal – promotor natural, atribuição e conflito. Rio de Janeiro, 1989;
MAZZILLI, Hugo Nigro. O Ministério Público na Constituição de 1988. 1 ed. São Paulo: Saraiva, 1989;
NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na constituição federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
[1] NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na constituição federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999
[2] Ibid.
[3] Ibid.
[4] Ibid.
[5] NERY JÚNIOR, op. cit., p. 85.
[6] Ibid.
[7] NERY JÚNIOR, op. cit.
[8] MAZZILLI, Hugo Nigro. O Ministério Público na Constituição de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 79.
[9] JSTF 180/255.
[10] NERY JÚNIOR, op. cit., p. 88.
[11] CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. O Ministério Público no processo civil e penal – promotor natural, atribuição e conflito. Rio de Janeiro, 1989.
Procurador Federal da AGU - Advocacia Geral da União. Mestrando em Direito. Especialista em Direito Constitucional. Especialista em Direito Administrativo. Especialista em Direito Processual Civil. Especialista em Ciências Criminais.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DIAS, Jorge Andersson Vasconcelos. Dos princípios do juiz e do promotor naturais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42266/dos-principios-do-juiz-e-do-promotor-naturais. Acesso em: 22 dez 2024.
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