Introdução
A Constituição Federal, em seu art. 37, inciso XXI, estabelece a regra da obrigatoriedade de licitação para a contratação com o Poder Público, corolário do Princípio da Isonomia, bem como garantia da melhor oferta para o Erário:
“XXI- ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações”.
Sobre o tema esclarece José dos Santos Carvalho Filho em sua Obra Manual de Direito Administrativo – 2007:
“Não poderia a lei deixar ao exclusivo critério do administrador a escolha das pessoas a serem contratadas, porque, é fácil prever, essa liberdade daria margem a escolhas impróprias, ou mesmo a concertos escusos entre alguns administradores públicos inescrupulosos e particulares, com o que prejudicada, em última análise, seria a Administração Pública, gestora dos interesses coletivos.
A licitação veio contornar esses riscos. Sendo um procedimento anterior ao próprio contrato, permite que várias pessoas ofereçam suas propostas e, em consequência, permite também que seja escolhida a mais vantajosa para a administração.”
Desenvolvimento
A Lei disciplinadora das normas gerais sobre licitações é a Lei nº 8.666/93, editada em face da competência atribuída à União pelo art. 22, XXVII, da CF, sendo aplicável a todos os entes da Federação, facultado aos Estados, Distrito Federal e Municípios legislar sobre questões específicas.
O aludido diploma normativo disciplinador das normas gerais sobre licitações, ressalvou algumas hipóteses em que, em função de determinadas particularidades, não se compatibilizavam com os trâmites do procedimento licitatório, motivo pelo qual, com arrimo na 1ª parte do transcrito dispositivo da Constituição Federal de 1988 (CF/88), foram elencadas hipóteses em que a Administração Pública poderá dispensar o procedimento licitatório, a depender dos critérios de conveniência e oportunidade.
Eis as lições da melhor doutrina sobre o assunto:
“As hipóteses de dispensabilidade do art. 24 constituem rol taxativo, isto é, a Administração somente poderá dispensar-se de realizar a competição se ocorrente uma das situações previstas na lei federal...
A par de exauriente, o elenco de situações em que a licitação é dispensável apresenta-se com a característica de reservar à Administração discricionariedade para decidir, em face das circunstâncias do caso concreto, se dispensa ou não o certame. Mesmo em presença em que a dispensa é autorizada, a Administração pode preferir proceder à licitação, se tal entender superiormente ao interesse público”. (in Comentários à Lei das Licitações e Contratações da Administração Pública, Jessé Torres Pereira Junior,8ª ed).
Nesse contexto, o artigo 24, da Lei nº 8.666/93 contempla as hipóteses de dispensa de licitação, prevendo, como uma de suas hipóteses:
“Art. 24. É dispensável a licitação:
omissis
II- para outros serviços e compras de valor até 10% (dez por cento) do limite previsto na alínea a, do inciso II do artigo anterior, e para alienações, nos casos previstos nesta Lei, desde que não se refiram a parcelas de um mesmo serviço, compra ou alienação de maior vulto que possa ser realizada de uma só vez;”
Ou seja, há previsão de dispensa para compras e serviços no valor até R$ 8.000,00 (oito mil reais)
Ocorre que não se pode admitir a dispensa de licitação pelo valor,caso haja o fracionamento do objeto, se utilizado com o fito de burlar o procedimento licitatório, na forma do preceituado pela doutrina, ibis idem:
“O não-fracionamento continua sendo diretriz importante na legislação licitatória, tanto que a Lei nº 8.666/93 ressalva, na hipótese de dispensabilidade do certame em razão do pequeno valor do objeto (art. 24, inciso II), a inaplicabilidade do permissivo para parcelas da mesma compra. Vale dizer que a lei proíbe a contratação direta de compra de objeto que haja sido parcelado no propósito de fracionar seu valor global e com isto evitar-se a realização do procedimento seletivo, que seria obrigatório para a contratação da integralidade. A vedação estende-se a obras e serviços por força do disposto no art. 23, §5º.
Por isto mesmo o Tribunal de Contas da União tem insistido, vigente o novo regime, na censura à prática do fracionamento, especialmente quando possa significar ladeamento do dever geral de licitar, substituição indevida de modalidade mais ampla de licitação por outra mais restrita, ou gestão imprevidente das necessidades da Administração.” (in Comentários à Lei das Licitações e Contratações da Administração Pública, Jessé Torres Pereira Junior, 8ª edição,).
Sobre o assunto em debate, o Tribunal de Contas da União já se manifestou, nos seguintes termos:
“adotar, como regra, a realização de coleta de preços nas contratações de serviços e compras dispensadas de licitação com fundamento no art. 24, inciso II, da Lei nº 8.666/93, anexando os elementos correspondentes aos respectivos processos” (Ac. 310/95, 1ª Câm., Rel. Min. Humberto Souto, DOU de 24/12/95, seção I, pág. 19.230).
“abstenha-se de realizar despesas de mesma espécie, com dispensa de licitação, cujos montantes ultrapassem o limite estabelecido pelo art. 24, inciso II, sob pena de se configurar fracionamento de despesa com fuga ao procedimento licitatório, e atente para o fato de que compras realizadas a intervalos superiores a 30 dias não descaracterizam o fracionamento e de que o art. 24, inciso XII, não ampara a aquisição de perecíveis indefinidamente” (2ª Cãm., Ac. nº 305, rel. Min. Valmir Campelo, DOU de 05/06/00, pág. 57).
Ora, da análise dos julgados acima colacionais, conclui-se queo TCU sedimentou entendimento, no sentido de considerar vedado o fracionamento de despesas para adoção de dispensa de licitação ou modalidade de licitação menos rigorosa que a determinada para a totalidade do valor do gasto.
Importante mencionar, ainda, que o TCU proferiu decisão bastante didática, determinando que a Administração Pública evite o fracionamento de despesa com a utilização de dispensa de licitação indevidamente (art. 24, II, da Lei nº 8.666/1993), quando se estiver diante de despesas previstas e contínuas, realizadas no decorrer do exercício financeiro.
Eis o teor da aludida decisão, vejamos:
Evite o fracionamento de despesa com a utilização de dispensa de licitação indevidamente fundamentada no art. 24, inciso II, da Lei nº 8.666/1993, uma vez que o montante das despesas previstas e contínuas realizadas no decorrer do exercício, a exemplo das aquisições de material de expediente, de consumo e de gêneros alimentícios, extrapola o limite de dispensa de licitação. Acórdão 2090/2006 Primeira Câmara
Nesse contexto, importante mencionar que não raras vezes, ocorre fracionamento da despesa pela ausência de planejamento da Administração. O planejamento do exercício deve observar o princípio da anualidade do orçamento.
Desta feita, não pode o agente público justificar o fracionamento da despesa com várias aquisições ou contratações no mesmo exercício, sob modalidade de licitação inferior àquela exigida para o total da despesa no ano, quando decorrente da falta de planejamento, conforme entendimento, mais uma vez, consolidado no âmbito da Corte de Contas, que proferiu orientação:
Realize planejamento de compras a fim de que possam ser feitas aquisições de produtos de mesma natureza de uma só vez, pela modalidade de licitação compatível com a estimativa da totalidade do valor a ser adquirido, abstendo-se de utilizar, nesses casos, o art. 24, inciso II, da Lei nº 8.666/1993 para justificar a dispensa de licitação, por se caracterizar fracionamento de despesa. Acórdão 367/2010 Segunda Câmara (Relação)
Conclusão
Por todo o exposto, conclui-se que não deve ser admitido o fracionamento de despesas para adoção de dispensa de licitação ou modalidade de licitação menos rigorosa que a determinada para a totalidade do valor do gasto, considerando a estimativa realizada pelo administrador público para um exercício financeiro, sob pena de privilegiar-se entendimento que venha a colidir frontalmente com a natureza do instituto da licitação e com os princípios constitucionais que norteiam as contratações realizadas no âmbito da administração pública.
Bibliografia
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 18ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2007
PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres. Comentários à Lei das Licitações e Contratações da Administração Pública.8ª ed. Rio de Janeiro: Renovar.2009.
ALEXANDRINO, Marcelo & PAULO, Vicente. Direito Administrativo Descomplicado. 22ª ed. São Paulo: Editora Método, 2014.
Procuradora Federal com atuação na Procuradoria Regional Federal da 1ªRegião - Brasília - DF
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CUNHA, Renata Maria Periquito Pontes. Dispensa de licitação em função do valor: considerações sobre o fracionamento de despesa Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42269/dispensa-de-licitacao-em-funcao-do-valor-consideracoes-sobre-o-fracionamento-de-despesa. Acesso em: 23 dez 2024.
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