RESUMO: Muito embora o contexto global do tratamento dos direitos dos grupos sociais portadores de identidade étnica e coletiva não seja uniforme, o Brasil e grande parte dos países da América Latina têm atuado no sentido de reconhecer o pluriculturalismo que compõe a sociedade. Consequências disso são: o deslocamento de disciplinas tidas como “tradicionais”; a relativização hierárquica de determinadas normas e regras consagradas; e a reafirmação e ampliação de dispositivos jurídicos internacionais de proteção de direitos humanos. Diante desse quadro, o Estado deve organizar-se no sentido de reconhecer a coexistência de fontes do direito, múltiplas e complexas, dando ao princípio da pluralidade, a mesma relevância do princípio da dignidade da pessoa humana, e contribuindo para a construção de uma política jurídica étnica.
Palavras-chave: Princípio da Pluralidade; Multiculturalismo; Política Jurídica Étnica.
1. INTRODUÇÃO:
Uma leitura dos diversos dispositivos jurídicos internacionais a respeito dos povos e comunidades tradicionais que foram “acordados”, “assinados” e “ratificados” pelo Brasil dá a exata medida do processo de luta pelo reconhecimento desses grupos.
No Brasil, verifica-se uma intensa mobilização pelo reconhecimento de direitos protagonizada pelos povos indígenas, quilombolas, seringueiros, castanheiros, quebradeiras de coco babaçu, ribeirinhos, dentre outros.
No contexto global, chama a atenção a forma como os diversos países vêm tratando essas questões, que tem oscilado entre o reconhecimento e a negação de direitos.
Em relação aos países da América Latina, vários desses países têm alterado seus dispositivos jurídicos constitucionais e infraconstitucionais no sentido de reconhecer o caráter pluricultural e multiétnico de suas sociedades, inclusive o Brasil.
O processo de reconhecimento do caráter plural e multiétnico das sociedades têm favorecido a constituição de um campo jurídico do “direito étnico”, sendo que a inversão da ordem de se pensar o direito a partir da situação vivenciada pelos povos e comunidades tradicionais leva a uma ruptura com os esquemas jurídicos preconcebidos.
Tal ruptura acarretou três movimentos no direito: 1. O deslocamento de disciplinas “tradicionais”; 2. A relativização e reorganização hierárquica de determinadas normas e regras consagradas pelos intérpretes e; 3. A reafirmação e ampliação de dispositivos jurídicos internacionais de proteção de direitos humanos.
Considerando que os direitos devem ser plenos, é imprescindível garantir aos povos e às comunidades tradicionais a sua reprodução física e social, consubstanciada numa “prática social”, que se relaciona a um modo de criar, de fazer e de viver. Ademais, importa salientar que essas práticas tradicionais destes ditos povos não se confundem com o direito consuetudinário, da forma que é concebido atualmente, citando-se como essenciais marcos normativos o art. 216, da Constituição Federal de 1988[1] e a Convenção 169 da OIT.
Deve-se admitir a coexistência dos diversos instrumentos disponíveis para a efetivação dos direitos e atribuir ao “princípio da pluralidade” o mesmo valor que é atribuído ao “princípio da dignidade humana”, o que provoca uma releitura da dogmática crítica. Assim, o esquema kelseniano deve ser afastado a fim de que o direito possa ir recuperando e atualizando seus significados no interior da “sociedade plural”, que se encontra em processo de profunda transformação.
Existe, atualmente, uma tendência mundial de “homogeneidade universal”, de conferir tratamento diferenciado aos povos tradicionais, ideia consentânea com a concepção de que o direito deve se adequar à transformação social, de forma a melhor regulá-la.
Essa tendência global evidencia a relevância dos direitos humanos, inclusive em relação à própria soberania estatal, que resta, por conseguinte, relativizada. Nesse aspecto, destaca-se a força da forma jurídica e o papel das Declarações e Convenções internacionais.
2. AS CONTRIBUIÇÕES DAS DECLARAÇÕES E CONVENÇÕES INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO RECONHECIMENTO DAS DIFERENÇAS DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS:
Não obstante os dispositivos internacionais dos direitos humanos serem universais, a existência desses instrumentos de proteção dos indivíduos revela que os indivíduos não são meros objetos, mas sim “sujeitos de direito”.
Outrossim, os recentes dispositivos internacionais alargaram e deram uma melhor qualificação do sujeito, incorporando, além da dimensão individual, uma outra dimensão de sentido coletivo e que se refere à noção de povos e de comunidades tradicionais.
As Declarações e Convenções Internacionais situam-se no interior do sistema jurídico brasileiro, servindo as Declarações como “princípios jurídicos” a serem observados na regência das relações envolvendo direitos humanos, ao passo que as Convenções, por serem tratados e possuírem cunho contratual, apresentam-se como “fonte de obrigações”, materializando obrigações diretas a serem observadas estritamente. [2]
Diploma normativo que representa grande avanço no tratamento da questão dos povos tradicionais é a Convenção 169, da OIT.
Esta convenção implicou mudanças constitucionais, no sentido de adequar os ordenamentos jurídicos ao reconhecimento das diferenças, privilegiando a diversidade cultural em conjunto com o desenvolvimento humano no alcance do tratamento com dignidade destes povos.
A Convenção 169 da OIT incluiu a noção de permanência e respeito da vida dos “povos indígenas e tribais”, afastando o caráter integracionista e assimilacionista da Convenção 107 da OIT.
Com base na Convenção 169, houve uma reformulação das Constituições dos diversos Estados Nacionais, no sentido do reconhecimento da diversidade cultural, a exemplo da Carta Magna brasileira de 1988. A partir de então, a cultura passou a ser vista como a forma de criar, fazer e viver dos povos e das comunidades tradicionais, relacionada à realização existencial das pessoas enquanto seres sociais. Além disso, a diversidade cultural se mostrou também como uma das fontes do desenvolvimento entendido no sentido amplo e há uma tendência atual de aliar a defesa da diversidade cultural e da cultura ao desenvolvimento humano.
Além de ser um tratado, a Convenção 169 da OIT possui uma especificidade por se tratar de matéria relacionada aos direitos dos “povos indígenas ou tribais”, tidos como fundamentais. [3]
Importa destacar ainda que, quando da definição dos povos tradicionais por esta convenção, utilizou-se como critério de distinção dos sujeitos o critério da consciência, ou seja, da autodefinição.
Além disso, o reconhecimento desta autodefinição fica a critério de cada país, tendo a Convenção 169 da OIT apenas oferecido instrumentos para que o próprio sujeito se autodefina, competindo a cada país a decisão sobre quais grupos sociais recai a aplicação da Convenção.
No Brasil, por exemplo, o significado de “tribal” contido na Convenção deve ser considerado “lato sensu”, envolvendo todos os grupos de forma indistinta.
Nesse diapasão, destaca-se ainda a previsão, na supracitada Convenção, de participação e de consulta envolvendo os povos e comunidades tradicionais, no sentido de o grupo definir o que quer para si e de participar de todas as discussões que lhes possam afetar direta ou indiretamente, o que implica que o Estado deverá condicionar suas políticas e programas às ações dos grupos sociais.
De qualquer sorte, os instrumentos internacionais e nacionais muitas vezes não utilizam as mesmas terminologias técnicas para se referir à questão dos povos tradicionais, tratando-se de conceitos em transição.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Os dispositivos jurídicos internacionais apresentam uma atualidade em face das situações vivenciadas pelos povos e comunidades tradicionais no Brasil.
Ademais, uma leitura das Declarações e das Convenções Internacionais possibilita o deslocamento do poder do direito de dizer o direito, na medida em que “inverte os papéis”, atribuindo aos operadores do direito um papel menos ativo nesse processo, sobretudo porque cabe ao operador reconhecer o que foi expressamente definido pelos sujeitos.
Além da releitura do processo no campo jurídico, é necessária também a construção de uma política jurídica de caráter étnico, que possa contemplar a pluralidade de povos e comunidades tradicionais que vivem no Brasil, o que vem sendo feito paulatinamente, destacando-se nesse sentido a edição do Decreto 6.040/2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais.
Dessa forma, atualmente a concepção dos povos tradicionais como sendo inferiores está cada vez mais em desuso e isso enseja que o Estado condicione políticas públicas e estruture-se diferenciadamente para atender às demandas múltiplas e complexas de sua sociedade plural.
Em suma, mostra-se imprescindível hodienarmente a realização de políticas jurídicas étnicas, contemplando toda a pluralidade brasileira, o que, por conseguinte, implica no reconhecimento das diferenças e no consequente revigoramento dos povos.
6. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
BRASIL. Decreto 6.040, de 7 de fevereiro de 2007. Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6040.htm. Acesso em: 17 de novembro de 2014.
DUPRAT DE BRITTO PEREIRA, Deborah Macedo. O Estado Pluriétnico. Além da Tutela: bases para uma política indigenista III, 2002. Acesso em: http://ccr6.pgr.mpf.gov.br/documentos-e-publicacoes-artigos-autores-deborah-m-duprat-de-britto-pereira, em 14 de novembro de 2014.
OIT, Convenção 169. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em 14 de novembro de 2014.
SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e Novos Direitos. Proteção jurídica à biodiversidade biológica e cultural. São Paulo: Petrópolis, 2005.
SHIRAISHI NETO, Joaquim. A Particularização do Universal: povos e comunidades Tradicionais face às Declarações e Convenções Internacionais. Direito dos Povos e das Comunidades Tradicionais no Brasil. Manaus: PPGAS-UFAM/NSCA-CESTU-UEA, 2010.
[1] Art. 216, caput, da CF/88: Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
[2] No Brasil, a aplicação dos tratados está sujeita a uma série de procedimentos no âmbito do Poder Legislativo e Executivo.
[3] Contudo, há duas omissões importantes nesta convenção: a falta de empenho no tratamento da propriedade intelectual e a ausência de previsão de formas de controle social.
Procuradora Federal; Mestre em Constitucionalismo, Filosofia e Direitos Humanos (UFPA), Especialista em Direito Processual: Grandes Transformações pela Rede de Ensino LFG, e; Especialista em Direito Previdenciário pela Rede de Ensino LFG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LEVY, Karine de Aquino Câmara. A importância do princípio da pluralidade no reconhecimento jurídico das diferenças dos povos e das comunidades tradicionais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42275/a-importancia-do-principio-da-pluralidade-no-reconhecimento-juridico-das-diferencas-dos-povos-e-das-comunidades-tradicionais. Acesso em: 23 dez 2024.
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