É cediço que, para obter um benefício previdenciário, especificamente um benefício por incapacidade, foco deste artigo, é necessário o atendimento conjunto de três requisitos: qualidade de segurado, carência e incapacidade para o exercício da atividade habitual que preceda a obtenção dos dois primeiros requisitos.
Como membro da Advocacia Geral da União lotado na Procuradoria Federal Especializada junto ao INSS, tenho me deparado com diversos tipos de expediente que têm por fito distorcer as normas que se extraem da interpretação das regras da Lei 8.213/91 relativas aos benefícios por incapacidade.
Os Procuradores e Magistrados que atuam na seara previdenciária certamente já se depararam com casos nos quais os autores das ações são verdadeiros clientes tanto do INSS quando do Judiciário. Trata-se de uma busca incessante pela obtenção de benefícios por incapacidade, caracterizada pelo ajuizamento sequencial de ações, muitas vezes sequer interpondo recursos, tudo em busca de encontrar o perito um pouco mais benevolente na análise da existência ou não da incapacidade.
Pois bem, esse perfil de segurado não tem, em nenhum momento, o intuito de utilizar as vias regulares dentro do RGPS para a obtenção de uma velhice segura, ou seja, não buscam as aposentadorias por tempo de contribuição ou por idade. O objetivo, pela experiência prática, é o benefício menos custoso, mas que pode igualmente perenizar-se e ter seu rendimento somado ao trabalho informal: o benefício por incapacidade.
Ora, sabe-se que os benefícios por incapacidade têm por requisito uma reduzida carência de 12 contribuições, havendo, inclusive, casos de isenção (art. 26, II, Lei 8.213/91). Trata-se de um intuito legislativo bastante óbvio e intuitivo: o fato gerador dos benefícios por incapacidade advém de infortúnios nunca planejados, de modo que a proteção previdenciária deve, igualmente, ocorrer num período célere.
Entretanto, o que se observa na prática forense é uma absoluta distorção da finalidade dessa redução dos prazos de carência para estes benefícios. O segurado que tem por verdadeira profissão a busca destes benefícios, após completar a carência de 12 meses, passa a recolher o mínimo de contribuições possível para que não haja a perda da qualidade de segurado.
Como se sabe, o art. 15 da Lei 8.213/91 disciplina o período de graça, que é o lapso temporal em que a qualidade de segurado é mantida independentemente do recolhimento de contribuições.
A ideia do período de graça é proteger o segurado que, de forma involuntária, é obrigado a cessar o pagamento das contribuições. Deste modo, o período de graça, regularmente de 12 meses após a cessação das contribuições, pode estender-se até 24 meses, em caso de desemprego comprovado, e até mesmo para 36 meses, caso se trate de um segurado assíduo que tenha recolhido pelo menos 120 contribuições.
Pois bem, tomemos um exemplo para ilustrar a problemática posta neste trabalho. O segurado recolhe 12 contribuições, sobre o teto do RGPS, e cumpre a carência necessária para a obtenção de um benefício por incapacidade. No entanto, sabedor que jamais teve intenção de se aposentar regularmente com essas contribuições, as cessa, e requer o citado benefício, que é negado, por inexistência de incapacidade. Às vésperas de perder sua qualidade de segurado, paga mais uma contribuição, novamente sobre o valor do teto, e requer novamente o benefício. Repete a manobra o número de vezes que for necessário para que algum perito o considere incapaz, e sabe-se que há doenças alegadas que são muito difíceis de serem aferidas em uma perícia, como os distúrbios psicológicos e as alegações vagas de dor, que são subjetivas.
Em algum momento, esse segurado obtém o almejado benefício por incapacidade, o qual será pago no valor máximo permitido no RGPS, uma vez que suas contribuições foram recolhidas sobre o valor do teto. Esse benefício pago no teto do RGPS pode acabar tornando-se vitalício, em uma aposentadoria por invalidez, e, após isso, uma pensão por morte, com valor idêntico ao benefício, a qual pode perdurar ainda por muitas décadas, caso, por exemplo, a companheira do segurado seja muito mais nova que ele. E, singelamente, poderemos ter um benefício no valor máximo do RGPS, pago por muitas dezenas de anos, à custa de pouquíssimas contribuições.
Uma situação como essa, obviamente, pode ocorrer dentro de um regime securitário, mas a forma absolutamente artificial como ela vem sendo perseguida, é exatamente o que se pretende demonstrar neste artigo, e o que procuro combater na atuação cotidiana na representação da autarquia previdenciária.
Veja que há um completo desvirtuamento do período de graça, um instituto que tem por finalidade proteger os trabalhadores em um momento de desamparo, e não ajudar aqueles que pensam em somar o valor de um benefício por incapacidade aos rendimentos de seu trabalho informal, ou simplesmente deixar de trabalhar em idade precoce com o recolhimento de pouquíssimas contribuições.
O grande problema é que manobras desse jaez não recebem acolhida apenas de magistrados norteados pelo formalismo simplista e pela noção equivocada de que a Previdência Social é um mero instrumento de correção de desigualdades e deve ser direcionada sempre pelo princípio in dubio pro misero. Elas são aceitas também administrativamente pelos servidores da própria autarquia, os quais devem seguir de forma literal as Instruções Normativas que os regem sob pena de sofrerem processos administrativos disciplinares.
Há, entretanto, ferramentas no direito para inibir a tentativa que sempre existirá dos mal intencionados de distorcer as regras e encontrar brechas para se beneficiar, no caso, à custa de todos os contribuintes.
O sistema previdenciário é contributivo, por mandamento constitucional. O caput do art. 201 da CF/88, prevê expressamente que devem ser “observados critérios que preservem o equilíbrio e atuarial”. Obviamente condutas como a citada acima só contribuem para que ocorra o contrário, e não podem contar com a batuta do Poder Judiciário.
O CC/02 deu novo tratamento ao abuso de direito. Embora, doutrinariamente, já houvesse, nas teorias sobre os atos jurídicos ilícitos, aqueles que albergassem sob essa rubrica o abuso de direito, o Código Reale tratou de espancar qualquer dúvida com a redação do art. 187, caput:
“Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
Ora, é óbvio que aquele que decide agasalhar-se no seio de um regime de caráter securitário e contributivo recolhendo as contribuições necessárias para não perder sua qualidade de segurado em prol unicamente de requerer benefícios por incapacidade, em detrimento de todos os contribuintes, o faz fora dos limites impostos pela boa-fé. Deste modo, pode-se, juridicamente, afirmar que este ato é ilícito.
Deste modo, não se pode esperar que ao praticar um ato ilícito, a requerente possa extrair deste os efeitos que emanariam de um ato lícito, qual seja, a obtenção regular de qualidade de segurada e carência anterior ao início da incapacidade.
Ademais, cabe ao magistrado fazer a filtragem constitucional das regras previstas na legislação, extraindo destas, após o processo interpretativo adequado, a norma aplicável ao caso concreto. Portanto, raciocinemos, tomando por base a interpretação finalística: a finalidade do período de graça é proteger o trabalhador no lapso de tempo em que ele encontra-se impossibilitado de contribuir, para que, nesse período, mantenha sua cobertura previdenciária. Ora, ao se deparar com um caso de um segurado que, ano após ano, recolhe apenas uma contribuição, normalmente na condição de contribuinte individual, o julgador deve entender que interpretar essa atitude como amoldável à situação abstratamente prevista no art. 15 da Lei de Benefícios significa, em última análise, negar a própria finalidade da regra.
É necessário perceber que o déficit na Previdência que traz reflexos na própria economia brasileira, passa, também, pela forma como os juristas da área aplicam a legislação pertinente. Muitas distorções podem ser corrigidas sem que seja necessário ao legislador espancar, uma a uma, as diversas manobras fraudulentas que sempre vão buscar as brechas na lei, as quais sempre existirão, devido ao caráter genérico do ato normativo.
Procurador Federal, membro da Advocacia Geral da União, lota na Procuradoria Federal Especializada junto ao INSS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MUREB, Marcelo Di Battista. A manutenção artificial da qualidade de segurado e o abuso de direito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42288/a-manutencao-artificial-da-qualidade-de-segurado-e-o-abuso-de-direito. Acesso em: 23 dez 2024.
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