Editada em 7 de dezembro de 1977, a Lei Federal 6.496, entre outras questões relacionadas aos profissionais de Engenharia, Arquitetura e Agronomia, autorizou a criação, pelo Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia – CONFEA, de uma Mútua de Assistência Profissional.
Vinculada diretamente ao CONFEA, dotada de personalidade jurídica e patrimônio próprios[1], é responsável pela concessão de benefícios e prestações[2] a seus associados, mediante o pagamento das contribuições que administra.
Ocorre que, além de bolsas de estudo, assistência médica, auxílios pecuniários e auxílio funeral, a aludida norma prevê, também, a concessão de pecúlio aos cônjuges supérstites e filhos menores dos associados (art. 12, inciso II).
A delimitação da superveniente antinomia desta específica previsão legal com o atual contexto normativo é o objeto da presente abordagem.
Da análise do rol de benefícios oferecidos pela Mútua, constante do já referido art. 12 da Lei 6.496/77, tem-se que foi concebida de forma híbrida no que concerne às suas finalidades.
Afinal além dos benefícios assistenciais arrolados, também é responsável pela concessão de um benefício de natureza previdenciária, no caso, o pecúlio.
Este hibridismo, quando da edição da lei em apreço, harmonizava-se com a legislação que regia o sistema de previdência complementar àquela época, qual seja, a Lei 6.435, de 15 de julho de 1977, que dispunha sobre as entidades de previdência privada.
Tal realidade, contudo, foi substancialmente alterada pela Lei Complementar 109, de 29 de maio de 2001, que atualmente disciplina o regime de previdência complementar.
Da leitura do art. 39 da Lei 6.435/77 revogada pela LC 109/2001, extrai-se que eram consideradas entidades fechadas de previdência aquelas que tinham como “finalidade básica a execução e operação de planos de benefícios”. Ou seja, o simples fato de determinada pessoa jurídica oferecer, entre outros serviços, um plano de pecúlio ou de outros benefícios de caráter complementar a seus associados não seria suficiente para classificá-la como uma entidade fechada de previdência. Para tanto, seria necessário verificar se a instituição de planos desta natureza seria sua principal razão de existir, sua função precípua.
Este mesmo dispositivo apresentava, ainda, outro parâmetro relevante para o deslinde da presente controvérsia, qual seja, o de que as entidades fechadas poderiam prestar serviços alheios ao âmbito do objeto das entidades de previdência complementar. Afinal, por ter o legislador previsto a execução e a operação de planos de benefícios como finalidade básica das entidades fechadas, abriu espaço para que outras atividades secundárias fossem por estas desenvolvidas.
A redação do art. 14 desta mesma Lei 6.435/77, ao apresentar o conceito de entidade aberta de previdência privada, corrobora este raciocínio: “as entidades abertas terão como única finalidade a instituição de planos de concessão de pecúlios ou de rendas e só poderão operar os planos para os quais tenham autorização específica, segundo normas gerais e técnicas aprovadas pelo órgão normativo do Sistema Nacional de Seguros Privados.”
Como se vê, enquanto a instituição de planos de concessão de pecúlios ou de rendas era concebida como única finalidade (art. 14) das entidades abertas, no que tange às fechadas, a execução e operação de planos de benefícios limitava-se a ser sua finalidade básica (art. 39).
É certo que, num primeiro momento, a Lei 6.435/77 (art. 1º) previa: “entidades de previdência privada (...) são as que têm por objeto instituir planos privados de concessão de pecúlios ou de rendas, de benefícios complementares ou assemelhados aos da Previdência Social”. Sua interpretação sistemática, entretanto, revela que tal objeto somente seria único no caso das entidades abertas.
Em outras palavras, se uma determinada entidade, acessível a quaisquer pessoas físicas, estivesse a operar plano de concessão de pecúlios ou rendas, seria necessariamente uma entidade aberta de previdência complementar. Isto porque, no caso de entidades abertas, este tipo de atividade não poderia se dar em conjunto com qualquer outra.
Por outro lado, o só fato de uma entidade, acessível exclusivamente a um grupo específico de empregados ou associados, como é o caso da Mútua, ofertar determinado plano de benefícios de natureza complementar não seria suficiente para identificá-la como uma entidade fechada de previdência complementar. Isto somente ocorreria após a constatação de que tal atividade seria seu principal objeto e não apenas uma atividade secundária.
Retornando ao caso em apreço, dois pressupostos do raciocínio acima desenvolvido hão de ser destacados para o seu deslinde: durante a vigência da Lei 6.435/77 (i) a operação de plano de benefícios, por instituição acessível a um grupo restrito de indivíduos, desde que não fosse sua finalidade básica, não era atividade exclusiva de entidade fechada de previdência; e (ii) às entidades fechadas de previdência complementar não era vedado prestar serviços estranhos a seu objeto principal.
Cumpre, então, rememorar o conjunto de benefícios e prestações assegurados pela Mútua, nos termos do art. 12 da Lei 6.496/77:
“Art 12 - A Mútua, na forma do Regimento, e de acordo com suas disponibilidades, assegurará os seguintes benefícios e prestações:
I - auxílios pecuniários, temporários e reembolsáveis, aos associados comprovadamente necessitados, por falta eventual de trabalho ou invalidez ocasional;
II - pecúlio aos cônjuges supérstites e filhos menores dos associados;
III - bolsas de estudo aos filhos de associados carentes de recursos ou a candidatos a escolas de Engenharia, de Arquitetura ou de Agronomia, nas mesmas condições de carência;
IV - assistência médica, hospitalar e dentária, aos associados e seus dependentes, sem caráter obrigatório, desde que reembolsável, ainda que parcialmente;
V - facilidades na aquisição, por parte dos inscritos, de equipamentos e livros úteis ou necessários ao desempenho de suas atividades profissionais;
VI - auxílio funeral.”
Como se constata, não há como atribuir à Mútua a finalidade básica de operar plano de benefícios de previdência complementar. O oferecimento de pecúlio é claramente uma atividade de natureza secundária. As prestações oferecidas, em sua grande maioria, têm relação com saúde, educação, seguro desemprego, bem como verbas indenizatórias de natureza diversa.
Sob a égide da Lei 6.435/77, em que foi concebida, não poderia ser, portanto, caracterizada como uma entidade fechada de previdência complementar, por não se amoldar ao conceito trazido em seu art. 39.
Por conseguinte, não lhe era exigida autorização de funcionamento do Ministério da Previdência e Assistência Social, restrita, nos termos do art. 37 da Lei 6.435/77, às entidades fechadas de previdência complementar.
Sua situação, portanto, harmonizava-se com o ordenamento jurídico então vigente, em atenção ao primeiro pressuposto acima destacado: a operação de plano de benefícios, por instituição acessível a um grupo restrito de indivíduos, desde que não fosse sua finalidade básica, não era atividade exclusiva de entidade fechada de previdência.
Justamente em razão desta possibilidade de se operar plano de benefícios, ainda que sem ostentar a condição de entidade fechada de previdência complementar, é que a Lei 6.496/77, ao autorizar a criação da Mútua, facultou-lhe o estabelecimento de convênios com entidades previdenciárias (art. 12, § 8º): “a Mútua poderá estabelecer convênios com entidades previdenciárias, assistenciais, de seguros e outros facultados por lei, para atendimento do disposto neste artigo”.
Sendo certo que o oferecimento de benefício de natureza previdenciária não era sua atividade básica e que, portanto, não haveria óbice legal para o exercício direto de tal atividade, a celebração de tal convênio ficaria a critério de seus gestores.
Ocorre que, com o advento da Lei Complementar 109/01, os dois pressupostos anteriormente aventados, decorrentes da aplicação da Lei 6.435/77 – de que (i) a operação de plano de benefícios, por instituição acessível a um grupo restrito de indivíduos, desde que não fosse sua finalidade básica, não era atividade exclusiva de entidade fechada de previdência; e de que (ii) às entidades fechadas de previdência complementar não era vedado prestar serviços estranhos a seu objeto principal – caíram por terra.
Na nova concepção implementada pela LC 109, a referência à finalidade básica foi abandonada.
Nos termos de seu art. 32, são consideradas entidades fechadas aquelas que “têm como objeto a administração e execução de planos de benefícios de natureza previdenciária”. A distinção estabelecida na revogada Lei 6.435/77, onde a previsão de “única finalidade” (art. 14) dizia respeito apenas às entidades abertas, não mais existe.
Quanto a esse aspecto, o parágrafo único do art. 32 da LC 109 é claro: “é vedada às entidades fechadas a prestação de quaisquer serviços que não estejam no âmbito de seu objeto, observado o disposto no art. 76.”
Em resumo, no período anterior à vigência da LC 109, o só fato de determinada instituição oferecer um benefício previdenciário não significaria necessariamente que se tratava de uma entidade de previdência complementar. Da mesma forma, o fato de uma entidade fechada de previdência complementar desenvolver outra atividade, além de executar e operar planos de benefícios, não encontrava óbice legal. Na vigência da LC 109, notadamente em razão do disposto do citado art. 32, esta realidade foi completamente alterada: (i) a atividade própria das entidades de previdência complementar lhes é exclusiva e (ii) tais entidades não podem prestar qualquer outro tipo de serviço.
Não por outro motivo, o Decreto 4.942/2003 – a quem coube regulamentar o processo administrativo para apuração de responsabilidade por infração à legislação no âmbito do regime da previdência complementar, operado pelas entidades fechadas de previdência complementar, de que trata o art. 66 da Lei Complementar 109 – previu as seguintes infrações:
“Art. 89. Prestar serviços que não estejam no âmbito do objeto das entidades fechadas de previdência complementar.
Penalidade: multa de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), podendo ser cumulada com suspensão de até cento e oitenta dias.
(...)
Art. 102. Exercer atividade própria das entidades fechadas de previdência complementar sem a autorização devida da Secretaria de Previdência Complementar, inclusive a comercialização de planos de benefícios, bem como a captação ou a administração de recursos de terceiros com o objetivo de, direta ou indiretamente, adquirir ou conceder benefícios previdenciários sob qualquer forma.
Penalidade: multa de R$ 2.000,00 (dois mil reais) a R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais) e inabilitação pelo prazo de dois a dez anos.”
De se notar, ademais, que este maior rigor adotado no atual regramento da matéria fica evidente na forma mais analítica como se deu a descrição do chamado mercado marginal.
Anteriormente, nos termos do art. 80[3] da Lei 6.435/77, havia referência tão-somente à “pessoa que atu[asse] como entidade de previdência privada”, o que demandava do aplicador da norma a imprescindível interpretação de outros de seus dispositivos, aptos a fornecer a exata noção do que seria atuar efetivamente como entidade de previdência privada.
Diversamente, o art. 67 da Lei Complementar 109/2001 prossegue na descrição da conduta: “o exercício de atividade de previdência complementar por qualquer pessoa, física ou jurídica, sem a autorização devida do órgão competente, inclusive a comercialização de planos de benefícios, bem como a captação ou a administração de recursos de terceiros com o objetivo de, direta ou indiretamente, adquirir ou conceder benefícios previdenciários sob qualquer forma...”.
Nesta nova ótica, constatada a concessão de um benefício previdenciário por entidade não autorizada pelo órgão competente – atualmente, a Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Lei 12.154, de 23 de dezembro de 2009) – está caracterizada a infração. O enquadramento da entidade como fechada ou aberta bem como o caráter primário ou secundário da atividade identificada passam a ser fatores absolutamente irrelevantes.
Sob tal perspectiva, é possível afirmar que a faculdade conferida à Mútua pelo § 8º do art. 12 da Lei 6.496/77 de celebrar convênios com entidades previdenciárias foi tacitamente revogada pela LC 109, na medida em que, por força desta última, trata-se, agora, de uma obrigação.
A fim de corroborar o posicionamento ora defendido, vale destacar a seguinte lição da ilustre Professora Maria Helena Diniz (Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro interpretada, 7ª ed. São Paulo, Saraiva, 2001, pp. 67-68):
“A revogação poderá ser, ainda:
(...)
b) tácita, quando houver incompatibilidade entre a lei nova e a antiga, pelo fato de que a nova passa a regular parcial ou inteiramente a matéria tratada pela anterior, mesmo que nela não conste a expressão ‘revogam-se as disposições em contrário’, por ser supérflua. A revogação tácita ou indireta operar-se-á, portanto, quando a nova lei contiver algumas disposições incompatíveis com as da anterior, hipótese em que se terá derrogação, ou quando a novel norma reger inteiramente toda a matéria disciplinada pela lei anterior, tendo-se, então, a ab-rogação. Esse princípio da revogação tácita de lei anterior pela posterior em razão de desconformidade dos preceitos advém do direito romano, que já o previa: “non est novum, ut priores leges ad posteriores leges trahantur – sed et posteriores leges ad priores pertinent: nisi contrariae sint: idque multis argumentis probatur” (Digesto, Livro I, tít. III, De legibus, senatusque concultis, et longa consuetudine, frags. 26 e 28). Fiore, ao se referir à incompatibilidade como critério de revogação tácita, pondera que, ‘quando a lei nova é diretamente contrária ao próprio espírito da antiga, deve entender-se que a ab-rogação se estende a todas as disposições desta, sem qualquer distinção”. Mas acrescenta: “em caso contrário, cumpre examinar cuidadosamente quais as disposições da lei nova absolutamente incompatíveis com as da lei antiga e admitir semelhante incompatibilidade quando a força obrigatória da lei posterior reduz a nada as disposições correspondentes da lei anterior: posteriores leges ad priores pertinent nisi contrariae sint. E sendo duvidosa a incompatibilidade, as duas leis deverão ser interpretadas por modo a fazer cessar a antinomia, pois as leis, em regra, não se revogam por presunção’. Assim, havendo dúvida, dever-se-á entender que as leis ‘conflitantes’ são compatíveis, uma vez que a revogação tácita não se presume. A incompatibilidade deverá ser formal, de tal modo que a execução da lei nova seja impossível sem destruir a antiga.
Convém, ainda, lembrar, como já o fizemos em páginas anteriores, que nem sempre o desaparecimento dos motivos legais determinantes da publicação de uma lei conduz à sua revogação tácita, não sendo possível afirmar-se que uma lei, determinada por fatos especiais e transitórios, deixe de ser aplicada, quando as razões em que se inspirou vierem a cessar.” (grifado)
Em síntese, no atual contexto normativo, o oferecimento do benefício previdenciário constante do art. 12 da Lei 6.496/77 não pode ser realizado diretamente pela Mútua, tal como fora antes da vigência da Lei Complementar 109 de 2001.
CONCLUSÃO
Por meio desta sintética exposição, buscou-se esclarecer que, por ser o pecúlio assegurado pela Mútua a cônjuges supérstites e filhos menores de seus associados (inciso II do art. 12 da Lei 6.496/77) um benefício de natureza previdenciária não pode mais ser oferecido diretamente por esta pessoa jurídica, na medida em que não ostenta a condição de Entidade Fechada de Previdência Complementar.
Nesse sentido, a previsão constante do § 8º do art. 12 da Lei 6.496/77 – de que a Mútua poderia estabelecer convênios com entidades previdenciárias para atendimento do disposto neste artigo –, por denotar um caráter tão-somente facultativo, não mais se aplica a esse benefício, em atenção ao do disposto na LC 109/2001.
O que antes lhe era facultado, tal como fora na vigência da Lei 6.453/77, tornou-se obrigatório, ante a explicitada mudança do cenário legislativo.
REFERÊNCIAS
DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro interpretada, 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001.
[1] “Art 4º - O CONFEA fica autorizado a criar, nas condições estabelecidas nesta Lei, uma Mútua de Assistência dos Profissionais da Engenharia, Arquitetura e Agronomia, sob sua fiscalização, registrados nos CREAs.
§ 1º - A Mútua, vinculada diretamente ao CONFEA, terá personalidade jurídica e patrimônio próprios, sede em Brasília e representações junto aos CREAs. (...)”.
[2] “Art 12 - A Mútua, na forma do Regimento, e de acordo com suas disponibilidades, assegurará os seguintes benefícios e prestações:
I - auxílios pecuniários, temporários e reembolsáveis, aos associados comprovadamente necessitados, por falta eventual de trabalho ou invalidez ocasional;
II - pecúlio aos cônjuges supérstites e filhos menores dos associados;
III - bolsas de estudo aos filhos de associados carentes de recursos ou a candidatos a escolas de Engenharia, de Arquitetura ou de Agronomia, nas mesmas condições de carência;
IV - assistência médica, hospitalar e dentária, aos associados e seus dependentes, sem caráter obrigatório, desde que reembolsável, ainda que parcialmente;
V - facilidades na aquisição, por parte dos inscritos, de equipamentos e livros úteis ou necessários ao desempenho de suas atividades profissionais;
VI - auxílio funeral.”.
[3] “Art. 80. Qualquer pessoa que atue como entidade de previdência privada, sem estar devidamente autorizada, fica sujeita à multa, nos termos do artigo 78 desta Lei, e à pena de detenção de 1 (um) a 2 (dois) anos. Se se tratar de pessoa jurídica, seus diretores e administradores incorrerão na mesma pena.”
Procurador Federal. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Brasília - Uniceub. Bacharel em Administração de Empresas pela Universidade de Brasília - Unb. Procurador Federal em atuação no Departamento de Consultoria da Procuradoria-Geral Federal<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ROCHA, Leonardo Vasconcellos. A derrogação da Lei 6.496/77: considerações acerca da previsão alusiva ao benefício de pecúlio por morte, à luz da lei geral da previdência complementar Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42292/a-derrogacao-da-lei-6-496-77-consideracoes-acerca-da-previsao-alusiva-ao-beneficio-de-peculio-por-morte-a-luz-da-lei-geral-da-previdencia-complementar. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Maurício Sousa da Silva
Por: Maurício Sousa da Silva
Por: Maurício Sousa da Silva
Por: DESIREE EVANGELISTA DA SILVA
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