É sabido que o Brasil é um dos únicos países do mundo que ainda possui em sua legislação a previsão de pensão por morte paga independentemente de carência. Basta que o falecido possua, à época do óbito, qualidade de segurado para que seus dependentes façam jus ao benefício, vitalício no caso dos filhos inválidos e dos cônjuges ou companheiros (as).
A generosidade da legislação não para por aí: ainda que divorciados ou separados judicialmente, caso recebessem pensão alimentícia ou auxílio financeiro de qualquer espécie à época da morte do segurado, os cônjuges têm o direito de dividir o benefício com as companheiras que estavam ao lado do de cujus quando do óbito (art. 76,§ 2º, da Lei 8.213/91).
A ausência de carência e a vitaliciedade do benefício com presunção de dependência econômica para os dependentes arrolados no art. 16, I, da Lei de Benefícios são fatores que levam o INSS a pagar mais de 60 bilhões de reais anualmente somente em pensões por morte.
Apesar desse cenário já bastante negativo criado pela própria legislação, tenho observado na prática, representando o INSS judicialmente, alguns artifícios que colaboram ainda mais para que este seja o mais oneroso dos benefícios ao Erário.
As manobras citadas acima consistem no pagamento, por vezes de apenas uma contribuição, no valor do teto do RGPS, por segurados que jamais contribuíram, já em seu leito de morte, com o intuito de que seus dependentes não fiquem desamparados na ocorrência do já iminente e inevitável evento.
Esse trabalho tem por finalidade demonstrar que a isenção de carência para a pensão por morte é uma norma que não tem por finalidade burlar o caráter securitário do RGPS e proteger os dependentes daquele que jamais pensou em contribuir para o financiamento de um sistema calcado no princípio da solidariedade.
Para facilitar a exposição, trago a baila dois exemplos ocorridos em processos nos quais atuei:
1) No primeiro caso, com o indivíduo já em coma, devido a um acidente automobilístico, seu dependente recolheu apenas uma contribuição, no teto do RGPS, obviamente, por sua própria iniciativa, mas em nome do doente terminal, apenas alguns dias antes de sua morte;
2) Já no segundo caso, o indivíduo com câncer terminal, mas ainda lúcido, tomou a iniciativa de recolher algumas contribuições, o que jamais havia feito em mais de 60 anos de vida, com a certeza médica de que não tinha mais do que alguns meses, embora tivesse muitos dependentes.
O primeiro caso é de deslinde mais tranquilo.
Há determinadas questões em que, concessa vênia, sequer se necessita de uma abordagem jurídica para a elucidação. Basta apenas uma análise eivada de bom senso.
O indivíduo, por livre e espontânea vontade, optou por deixar de contribuir com o RGPS, deixando, deste modo, além de si mesmo, também aos seus dependentes desamparados caso algum revés da vida o vitimasse, como de fato ocorreu.
Seria completamente absurda a ideia de que os dependentes, com o indivíduo à beira da morte, pudessem fazer, em seu nome, o pagamento de singelas contribuições que colocassem a eles próprios, os dependentes, sob a proteção de um regime securitário como é o RGPS.
No entanto, esse apelo ao bom senso não está desacompanhado do bom Direito.
Com efeito, note-se que o art. 30, II, da Lei 8.212/91 atribuiu ao contribuinte individual a necessidade de recolher sua contribuição por iniciativa própria:
Art. 30. A arrecadação e o recolhimento das contribuições ou de outras importâncias devidas à Seguridade Social obedecem às seguintes normas: (Redação dada pela Lei n° 8.620, de 5.1.93)
II - os segurados contribuinte individual e facultativo estão obrigados a recolher sua contribuição por iniciativa própria, até o dia quinze do mês seguinte ao da competência; (Redação dada pela Lei nº 9.876, de 1999).
Portanto, não cabe aos dependentes decidir, estando ausente em termos de lucidez o eventual instituidor da pensão, sobre sua proteção previdenciária. Essa é uma decisão que cabe a cada um, e aceitar a distorção da finalidade da pensão por morte para abarcar esse tipo de situação resultaria, sem dúvida alguma, numa catástrofe em termos de equilíbrio financeiro do regime.
Note-se que, ao isentar a pensão por morte de carência, a intenção do legislador foi proteger os dependentes daquele segurado que, não obstante tivesse o intuito de seguir contribuindo, foi vitimado por uma fatalidade absolutamente imprevisível. A imprevisibilidade é o que justifica a ausência de carência, assim como ocorre com os acidentes em relação aos benefícios por incapacidade.
Sobre o tema, veja-se recentíssima decisão do STJ, que, embora trate do recolhimento de contribuições após a morte do instituidor, pode perfeitamente ser aplicada analogamente, pois se trata da mesma razão de direito, qual seja, atribuir qualidade de segurado a outrem em benefício próprio contra a vontade daquele:
“Não se admite o recolhimento post mortem de contribuições previdenciárias a fim de que, reconhecida a qualidade de segurado do falecido, seja garantida a concessão de pensão por morte aos seus dependentes. De fato, esse benefício é devido ao conjunto de dependentes do segurado que falecer, mas desde que exista, ao tempo do óbito, a qualidade de segurado do instituidor. Nesse contexto, é imprescindível o recolhimento das contribuições pelo próprio contribuinte, de acordo com o art. 30, II, da Lei 8.212/1991. Sendo assim, não obstante o exercício de atividade pelo segurado obrigatório ensejar sua filiação obrigatória no RGPS, para seus dependentes perceberem a pensão por morte, são necessários a inscrição e o recolhimento das respectivas contribuições em época anterior ao óbito, diante da natureza contributiva do sistema. Dessa forma, não há base legal para uma inscrição post mortem ou para que sejam regularizadas, após a morte do segurado, as contribuições não recolhidas em vida por ele. Precedente citado: REsp 1.328.298-PR, Segunda Turma, DJe 28/9/2012. REsp 1.346.852-PR, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 21/5/2013.”
Ora, se o recolhimento da contribuição se dá após a fatalidade, mas um pouco antes da consumação do fato gerador da pensão, que é a morte, não há absolutamente nenhum motivo para se proteger com isenção de carência o segurado que optou por permanecer sem cobertura previdenciária.
Esse raciocínio nos introduz a solução para o segundo caso.
Embora, numa análise fria e formalista, os dependentes do doente com câncer terminal, que apenas recolheu contribuições após saber ter poucos meses ou dias de vida, tenham direito ao benefício no momento do óbito, faz-se necessária uma análise que harmonize a legislação com a Constituição através de uma interpretação que lhe dê sentido.
Deste modo, tendo em vista que o RGPS tem caráter contributivo e é informado pelo princípio da solidariedade, o qual, segundo o STF já reconheceu quando afirmou a constitucionalidade da incidência de contribuição sobre as aposentadorias dos servidores inativos, também tem estatura constitucional, não se pode admitir que a norma que isenta a carência tenha sua finalidade distorcida.
Embora o fato gerador do benefício seja a morte, a isenção total de carência foi instituída para a proteção de um evento abrupto. Principalmente nos casos em que, embora o fato gerador ainda não tenha ocorrido, mas seja certo, do ponto de vista científico, como no caso 2, é absolutamente injusto que os contribuintes arquem com um benefício vitalício, que pode ser pago por muitas décadas, em troco de uma contribuição recolhida por um indivíduo que jamais se preocupou em financiar esse sistema.
Esse raciocínio pode ser tachado por muitos de utilitarista, exatamente pelo benefício ser gerado por um momento extremo na vida de qualquer família que é a morte de um de seus membros. Mas é preciso ter em conta os que são prejudicados por artifícios como este, mas não são vistos.
São os contribuintes, que sofrem com a altíssima carga tributária, da qual faz parte a contribuição previdenciária, e não recebem os serviços públicos com a qualidade correspondente.
Portanto, a conclusão a que se chega é a de que cabe também ao Poder Judiciário ter uma visão mais ampla do significa o interesse público primário. A justiça não é o foro ideal para que se combata a desigualdade social em larga escala, muito menos em ações individuais, e à custa do justo orçamento da Previdência.
Admitir esse tipo de conduta estimula, em última análise, que os trabalhadores permaneçam na informalidade, retirando recursos importantes para a melhoria da qualidade de vida de todos.
Procurador Federal, membro da Advocacia Geral da União, lota na Procuradoria Federal Especializada junto ao INSS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MUREB, Marcelo Di Battista. O caráter securitário do RGPS e a pensão por morte: dos primeiros recolhimentos às vésperas do óbito anunciado Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 dez 2014, 04:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42329/o-carater-securitario-do-rgps-e-a-pensao-por-morte-dos-primeiros-recolhimentos-as-vesperas-do-obito-anunciado. Acesso em: 23 dez 2024.
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