O presente artigo tem por escopo tecer breves, porém extremamente relevantes, considerações sobre a possibilidade da anulação de atos administrativos ilegais pela via judicial após superado o prazo legal previsto para o exercício do direito de autotutela pela Administração Pública.
Inicialmente cumpre esclarecer o conceito de prescrição administrativa, o qual não se confunde, em absoluto, com os das prescrições civil e penal.
Conforme é cediço, dentre os poderes da Administração Pública se insere o da autotutela administrativa, que é o poder de rever seus próprios atos, seja em decorrência de vícios de ilegalidade ou por motivos de conveniência e oportunidade, sem que necessite recorrer ao judiciário para tanto.
Neste sentido dispõe a súmula 473 do Supremo Tribunal Federal:
A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.
No caso do ato administrativo conter um vício de ilegalidade, a invalidação deste é considerada um poder-dever, o qual, contudo, não é absoluto, sendo limitado no tempo se a desconstituição do ato puder causar prejuízos a terceiros de boa-fé, em atenção ao princípio da segurança jurídica.
A prescrição administrativa é, portanto, no que se refere ao poder-dever de autotutela, a perda do direito pela Administração de revisão dos seus atos pelo decurso do tempo. Destarte, em se tratando de perda de um direito, entende-se que a terminologia mais adequada para o caso seria decadência e não prescrição.
Isto porque a prescrição atinge o direito de ação e não propriamente o direito em si, enquanto a decadência se refere à extinção do próprio direito.
Neste sentido elucida Maria Helena Diniz:
A decadência não se confunde com a prescrição. A decadência é a extinção do direito potestativo pela falta de exercício dentro do prazo prefixado, atingindo indiretamente a ação, enquanto a prescrição extingue a pretensão, fazendo desaparecer, por via oblíqua, o direito por ela tutelado que não tinha tempo fixado para ser exercido.[1]
Quanto à impropriedade terminológica da expressão prescrição administrativa para o prazo estabelecido para a invalidação pela Administração dos seus atos ante a constatação da existência de vício de ilegalidade, WeidaZancaner explica:
Se, em razão do exposto, podemos concluir que no Direito Privado a prescrição basta para garantir a segurança jurídica, o mesmo não se dá no Direito Público, pois o princípio da segurança jurídica só fica resguardado através do instituto da decadência, em se tratando de atos inconvalidáveis, devido ao fato de a Administração Pública não precisar valer-se da ação, ao contrário do que se passa com os particulares, paraexercitar o seu poder de invalidar. Logo, o instituto da prescrição não seria suficiente para pacificar a situação que advém da matéria objeto desse estudo. Tanto é exato tal assertiva que não se concebe a possibilidade de interrupção ou suspensão do prazo para a Administração invalidar, característica essa da decadência, em oposição à prescrição.
Assim, muito embora a doutrina tenha utilizado o prazo prescricional como forma de sanação dos atos inválidos, este consiste em prazo decadencial, para poder surtir os efeitos em razão dos quais é invocado"[2]
A limitação temporal ao poder de autotutela do ente público não afasta, porém, a possibilidade deste se socorrer do Poder Judiciário para sanar a ilegalidade, pleiteando, para tanto, a anulação do ato administrativo viciado.
Decisões em sentido contrário, contudo, são encontradas com certa frequência em nossa jurisprudência. Por exemplo:
ACÓRDÃO. Vistos, relatados e discutidos estes autos do Apelação nº00847-69.2013.8.26.0576, da Comarca de São José do Rio Preto, em que é apelanteSÃO PAULO PREVIDENCIA SPPREV, são apelados VANDA APARECIDA SILVA eMARIA DE FATIMA SILVA TERCETI. (CURADOR(A). ACORDAM, em 4ª Câmara deDireito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão:"Negaram provimento ao recurso. V. U.", de conformidade com o voto do Relator, queintegra este acórdão. O julgamento teve a participação dos Exmos. DesembargadoresPAULO BARCELOS GATI (Presidente), ANA LIARTE E FERREIRA RODRIGUES. SãoPaulo, 3 de novembro de 2014. PAULO BARCELLOS GATTI. RELATOR. APELAÇÃO AÇÃO ANULATÓRIA DE ATO ADMINISTRATIVO PENSÃO POR MORTE SOBRINHA DE SERVIDOR ESTADUAL Pretensão inicial do instituto previdenciário de anular o próprio ato administrativo que reconheceu o direito da autora ao recebimento de pensão mensal por morte benefício previdenciário concedido em 17.02.202, com fundamento no art. 152, I, da Lei Complementar Estadual nº 180/78, cuja eficácia estava suspensa desde a edição da Lei Federal nº 9.717/98 ação anulatória ajuizada somente em 08.01.2013 vício de ilegalidade originário que deve ser convalidado pelo decurso do tempo direito potestativo da Administração de anular os próprios atos que se submete ao prazo de decadência decenal, previsto no art. 10, I, da Lei Estadual nº 10.17/98 prevalência do princípio da segurança jurídica necessidade de estabilidade nas relações jurídicas entre a Administração e os que percebem benefícios previdenciários sentença mantida. Recurso não provido.” (DJSP 17/11/2014)
Entende-se que a interpretação no sentido do r.decisum, que nega ao ente público a possibilidade de se socorrer da via judicial para invalidação de ato ilegal é inconstitucional, uma vez que todo e qualquer ato administrativo é passível de exame de legalidade e revisão judicial pelo Poder Judiciário (artigo 5º, XXXV, da Carta Fundamental).
O decurso do prazo decadencial para exercício do poder-dever de autotutela pela Administração extingue tão somente o direito potestativo de autotutela, não se confundindo com, nem interferindo na garantia constitucional de acesso à Jurisdição, de forma que perfeitamente possível o ingresso pelo Poder Público perante o Judiciário com ação anulatória do ato administrativo eivado de ilegalidade, desde que respeitado o prazo prescricional.
Aliás, reconhece-se que, na verdade, o acesso ao Poder Judiciário para anulação do ato administrativo só seria possível, e desde que ainda em curso o prazo prescricional, após o decurso do prazo para o exercício da autotutela, uma vez que antes o ente público careceria de interesse de agir para propositura da ação.
Neste ponto, mister observar que o prazo decadencial para exercício do direito de autotutela administrativa, quando previsto, o será por lei do próprio entepolítico interessado, no exercício da sua autonomia de organização político-administrativa, sendo assim competentepara legislar sobre o processo administrativo em seu âmbito.
Ressalta-se, por oportuno, o entendimento da doutrina no sentido de que a regra é inclusive pela inexistência de prazo para anulação de atos administrativos ilegais, salvo se for expressamente fixado prazo pelo legislador:
Em matéria de anulação também aflora o problema do prazo de que dispõe o poder público para anular seu atos. No direito pátrio, em princípio, o ato administrativo ilegal pode ser anulado em qualquer época. Embora alguns considerem iníqua tal regra, pela pendência da situação, relembre-se que decorre do princípio da legalidade, consagrado pela Constituição Federal. Limitação temporal ao poder de anular deve estar previsto de modo explícito e não presumido ou deduzido de prazos prescricionais fixados para outros âmbitos. Entendimento diverso traz subjacente incentivo à prática de ilegalidade, ante a possibilidade de ser consolidada pela prescrição.[3]
A competência, porém, para legislar sobre direito civil e, portanto, sobre o prazo prescricional é privativa da União, nos termos do artigo 22, inciso I, da Constituição Federal.
Assim, no que diz respeito ao prazo prescricional para ajuizamento de ação anulatória do ato administrativo que gerar efeitos para terceiros de boa-fé, entende-se que incide aquele previsto no artigo 205, “caput” do Código Civil, que fixa em 10 anos a regra geral da prescrição.
Quanto ao entendimento, por vezes também encontrado em nossa jurisprudência, de que para o caso seria aplicável, por analogia, o prazo de 5 anos do artigo 1º do Decreto n.º 20.910/1932, acredita-se que, além de inexistir lacuna normativa à respaldá-lo, este não é ainda compatível com o princípio da isonomia em sua acepção material (que justifica a supremacia do interesse público sobre o privado).
Destarte, o prazo prescricional para ação anulatória poderá não coincidir com o decadencial previsto para o exercício da autotutela. Por exemplo, no âmbito federal, a lei 9.784/99 que regula o processo administrativo prevê o prazo de 5 anos para anulação do ato administrativo de que decorram efeitos favoráveis para os destinatáriospela própria Administração.
Diante das considerações acima expostas, conclui-se que a limitação existente no âmbito administrativo para revisão de ofício dos atos da administração não se mostra como impeditivo à apreciação pelo Poder Judiciário de lesão ou ameaça de lesão(na hipótese configurada na manutenção no ordenamento jurídico de ato eivado do vício insanável da ilegalidade), desde que respeitadasas limitações da lei civil e processual civil que autorizam a busca da tutela jurisdicional.
REFERÊNCIAS
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro:Lumen Juris, 2005
DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. São Paulo: Saraiva, 2006.
MEDAUAR, Odete, Direito Administrativo Moderno. Ed. RT: São Paulo, 2001.
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2005
ZANCANER, Weida. Da Convalidação e da Invalidação dos atos administrativos.Ed. Malheiros: São Paulo, 1996.
[1]DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 245.
[2]ZANCANER, Weida. Da Convalidação e da Invalidação dos atos administrativos. Ed. Malheiros: São Paulo, 1996, p. 77.
[3] MEDAUAR, Odete, Direito Administrativo Moderno. Ed. RT: São Paulo, 2001, p. 187.
Procurador Federal. Especialista em Direito Público com ênfase em Direito Constitucional pela Universidade Potiguar.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NETO, Clélio de Oliveira Corrêa Lima. A prescrição (decadência) administrativa e a prescrição da ação anulatória do ato administrativo ilegal pelo Poder Judiciário Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 dez 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42357/a-prescricao-decadencia-administrativa-e-a-prescricao-da-acao-anulatoria-do-ato-administrativo-ilegal-pelo-poder-judiciario. Acesso em: 23 dez 2024.
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