Resumo: Trata-se de análise acerca da figura jurídica do depositário judicial, da possibilidade de recusa do encargo e do tratamento que se dá à questão quando o depositário é algum ente que componha a Fazenda Pública.
Palavras-chave: Depósito. Encargo. Possibilidade. Recusa. Fazenda Pública.
Introdução
A expressão depositário é utilizada para caracterizar os indivíduos que recebem algum bem em depósito.
Adriane Medianeira Toaldo em seu Artigo “O depositário infiel sob a ótica da reforma do Direito Processual Civil”, citando as lições de Edna Luiza Nobre Galvão (2000), afirma que a figura do depósito tem três vertentes:
“a) do contrato, previsto no Código Civil (arts. 627 e seguintes.); b) da lei, como no caso do depósito necessário previsto no artigo 647 de ato judicial, quando o depositário assume um encargo que lhe é deferido pelo Poder Judiciário, responsabilizando-se, como longa manus da Justiça, a guardar o bem até que, por ordem judicial, lhe seja solicitado”.
Desenvolvimento
No contexto aqui abordado,a espécie de depósito relevante é aquela oriunda de determinação do Poder Judiciário, contexto no qual o depositário assume o encargo de guardar o bem até que lhe seja solicitado através de outra ordem judicial, funcionando, conforme acima mencionado, como longa manus(ou seja, executor de ordens) da justiça.
Entretanto, conforme restará demonstrado ao final deste trabalho, o encargo de depositário judicial, embora seja determinado por autoridade judiciária, pode ser recusado pela pessoa indicada, de forma que a nomeação compulsória de qualquer pessoa, física ou jurídica, a assumir o mencionado ônus, é inadmissível.
Tal entendimento encontra-se consolidado na jurisprudência pátria, tendo o STJ pacificado a questão através da edição da Súmula nº 319, adiante colacionada, vejamos.
Súmula nº 319 - O encargo de depositário de bens penhorados pode ser expressamente recusado.
No mesmo sentido, apontam as lições dos seguintes arestos do STJ:
HABEAS CORPUS - PRISÃO CIVIL - DEPOSITÁRIO - SÓCIO - EMPRESA - FATURAMENTO - RECUSA EM ASSUMIR O ENCARGO. NOMEAÇÃO COMPULSÓRIA INADMISSÍVEL. - Sócio de empresa não pode ser obrigado, contra a sua vontade, a aceitar o encargo de depositário judicial. - Somente pode ser considerado depositário infiel aquele que aceita o munus público, assinando declaração nesse sentido. - É requisito do auto de penhora a assinatura do termo. Precedentes. (HABEAS CORPUS Nº 34.229 - SP)
"Habeas Corpus. Prisão civil. Depositário judicial. Recusa da Nomeação. I. - Não pode o paciente, contra a sua vontade, ser obrigado a aceitar o encargo de depositário judicial. Precedentes. II. - Sem que tenha assumido expressamente o compromisso, não é cabível a prisão civil como depositário infiel. Precedentes. III. - Ordem de habeas corpus concedida".(HC 28.152/PÁDUA RIBEIRO);
"HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO. PENHORA. BEM MÓVEL. DEPÓSITO JUDICIAL. NÃO CONFIGURAÇÃO. AUSÊNCIA DE ACEITAÇÃO EXPRESSA DO ENCARGO. PRISÃO DECRETADA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. ORDEM CONCEDIDA. I. O decreto de prisão no âmbito de ação executiva do depositário judicial infiel é legítimo, porém desde que assumido expressamente o compromisso, situação esta não configurada na II. Precedentes do STJ. III. Ordem concedida". (HC 15.386/ALDIR PASSARINHO);
PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. AGRAVO DEINSTRUMENTO. ART. 526 DO CPC. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. EXECUÇÃO FISCAL. PENHORA SOBRE O FATURAMENTO DA EMPRESA. NOMEAÇÃO DE DEPOSITÁRIO. RECUSA. POSSIBILIDADE. SÚMULA 319 DO STJ. 1. A recusa do depositário nomeado compulsoriamente é possível, com respaldo no art. 5º, II da CF/88, que consagra "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei" (vide REsp 276.886, Rel. Min. José Delgado, DJ de 05/02/01), máxime porque há auxiliares do Juízo capazes de exercer as tarefas equivalentes ao depositário. 2. Súmula 319 do STJ: "O encargo de depositário de bens penhorados pode ser expressamente recusado." 3. O prequestionamento impõe que, na interposição do recurso especial, o dispositivo de Lei Federal tido por violado seja indicado, como meio de se aferir a admissão da impugnação, posto ter sido ventilado no acórdão recorrido (enunciados n.° 282 e 356, das Súmulas do STF). 4. Recurso especial desprovido. (REsp 728093 / SP)
Importante esclarecer que o fundamento indicado pela jurisprudência pátria como hábil a rechaçar a nomeação compulsória de depositário judicial é a disposição constante doart. 5º, II da CF/88, que consagra "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei" (vide REsp 276.886, Rel. Min. José Delgado, DJ de 05/02/01).
Ora, o princípio da legalidade, acima transcrito e previsto no art. 5º, II, da CF, constitui direito e garantia fundamental do cidadão, elemento essencial à defesa dos indivíduos em face de atividades arbitrárias advindas do Poder Público, em qualquer de suas esferas, o que apenas constitui mais um fundamento idôneo a que se defenda sua aplicação integral, na hipótese trazida a debate.
Importante mencionar, ainda, que se a possibilidade de recusa do encargo de depositário é prevista de forma indistinta, devendo ser aplicada a todas as pessoas, sejam elas físicas ou jurídicas, como, de fato, o é, com maior legitimidade deve-se aplicar tal entendimento quando se tratar de entes que compõem a chamada fazenda pública, uma vez que dispõem de uma série de prerrogativas processuais.
Em verdade, as prerrogativas processuais da fazenda pública foram a ela conferidas com o objetivo de assegurar a efetivação do princípio da igualdade nas relações processuais. É que a fazenda pública apresenta-se perante os particulares em situação desfavorável, o que pode ser justificado através da burocracia inerente às suas atividades, entre outros elementos.
Leonardo José Carneiro da Cunha, em sua Obra A fazenda Pública em juízo – 2014, citando Nelson Nery Júnior, na Obra Princípios do Processo Civil na Constituição Federal – 1996, preleciona:
“ Ora, a Fazenda Pública, que é representada em juízo por seus procuradores, não reúne as mesmas condições que um particular para defender seus interesses em juízo. Além de estar defendendo o interesse público, a Fazenda Pública mantém uma burocracia inerente à sua atividade, tendo dificuldade de ter acesso aos fatos, elementos e dados da causa. O volume de trabalho que cerca os advogados públicos impede, de igual modo, o desempenho de suas atividades nos prazos fixados para os particulares.”
Assim, tem-se que negar à fazenda pública a possibilidade de recusa ao encargo de fiel depositário representaria ofensa ao princípio da legalidade, que dispõe que ninguém será obrigado a fazer alguma coisa, senão em virtude de lei, além de representar violação ao sistema processual pátrio, que confere expressamente às pessoas jurídicas de direito público uma série de prerrogativas processuais, objetivando erigir tais entes ao mesmo patamar em que posicionam-se os particulares, quando atuam em juízo.
Surge, ainda, como fundamento suficiente a rechaçar a possibilidade de recusa do encargo de fiel depositário pela fazenda pública, a chamada reserva do possível, que trata da capacidade fática de se atender ou não requisições, bem como a qualquer outra demanda, seja compulsória, seja facultativa.
Para Flávia Danielle Santiago Lima em seu artigo Em busca da efetividade dos direitos sociais prestacionais, o conceito de Reserva do Possível é uma construção da Doutrina alemã que coloca, basicamente, que os direitos já previstos só podem ser garantidos quando há recursos públicos. Segundo a autora, “o indivíduo só pode requerer do Estado uma prestação que se dê nos limites do razoável, ou seja, a qual o peticionante atenda aos requisitos objetivos para sua fruição”. Mais especificamente, o Poder Público se reserva à prerrogativa de prestar somente o direito social que for materialmente possível de ser prestado, daí a denominação de “Reserva do Possível”.
Por sua vez, Ana Paula Barcellos, em sua Obra “A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana” afirma:
“A expressão reserva do possível procura identificar o fenômeno econômico da limitação dos recursos disponíveis diante das necessidades quase sempre infinitas a serem por eles supridas. [...] A reserva do possível significa que, além das discussões jurídicas sobre o que se pode exigir judicialmente do Estado, é importante lembrar que há um limite de possibilidades materiais para esses direitos”
Imprescindível registrar, ainda, que a teoria da Reserva do Possível já se encontra inteiramente inserida nos tribunais pátrios. Neste sentido, a analisemos julgado da jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro:
TJRJ - APELACAO / REEXAME NECESSARIO: REEX 61846520088190008 RJ 0006184-65.2008.8.19.0008Ementa DIREITO CONSTITUCIONAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER, COM PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA. Direito à vida e à saúde, assegurado a todos pelos arts. 5º, 6º, 196 da Constituição da República. Obrigação solidária dos entes públicos em decorrência do Sistema Único de Saúde. Pretensão da autora de obter aparelho medidor de glicose ACCU-CHEK ADVANTAGE e fitas reagentes de glicemia, conforme prescrição médica. Não estão os entes federativos obrigados a fornecer ao paciente o que ele deseja por lhe ser mais cômodo, mas o que é possível, desde que comprovado que através desse se obtém o mesmo resultado. Garantia ao "mínimo existencial" frente aos limites impostos pela "reserva do possível". Recurso parcialmente provido.
Vê-se, pois, que limitações fáticas são juridicamente aceitas como justificativa à impossibilidade de o Poder Público realizar determinado tipo de ação, visto que toda a máquina governamental está sujeita à Reserva do Possível.
Conclusão
À vista de todo o exposto, conclui-se que o encargo de depositário judicial pode ser recusado pela pessoa a quem atribuído pela autoridade judiciária, aí incluindo-se as entidades que compõem a Fazenda Pública, tendo em vista as limitações fáticas a que estão sujeitas, o que representa expressão da aplicabilidade da Teoria da Reserva do Possível, amplamente consagrada na doutrina e jurisprudência pátrias.
BIBLIOGRAFIA
- BARCELLOS, Ana Paula.A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. Rio de Janeiro: Editora Renovar, pág.261.
- Lima, Flávia Danielle Santiago “Em busca da efetividade dos direitos sociais prestacionais.. Considerações acerca do conceito de Reserva do Possível e do Mínimo Necessário (2001)”.Jusnagandi. Acesso em 26/11/2014.
Disponível em http://jus.com.br/artigos/2177/em-busca-da-efetividade-dos-direitos-sociais-prestacionais.
Procuradora Federal com atuação na Procuradoria Regional Federal da 1ªRegião - Brasília - DF
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CUNHA, Renata Maria Periquito Pontes. Da possibilidade de recusa do encargo de fiel depositário pela Fazenda Pública Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 dez 2014, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42362/da-possibilidade-de-recusa-do-encargo-de-fiel-depositario-pela-fazenda-publica. Acesso em: 23 dez 2024.
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