O sistema contratual brasileiro sempre foi uma categoria jurídica marcada por três princípios clássicos, a saber: a) o da liberdade contratual, o qual admite que as partes, dentro dos limites da ordem pública, convencionem como e o que quiserem; b) o da obrigatoriedade do contrato, conhecido como pacta sunt servanda; c) o da relatividade dos efeitos contratuais, que limita os efeitos entre os contratantes.
Com o Estado social imposto progressivamente, a partir dos fins do século XIX e princípios do século XX, restaram enfraquecidas as concepções liberais sobre a autonomia da vontade no intercâmbio negocial, afastando-se, por conseguinte, o neutralismo jurídico diante do mundo da economia.
Assim, foram desenvolvidos mecanismos de intervenção estatal no processo econômico. Por conseguinte, restou superado o modelo do estado liberal puro, alheio por completo aos problemas econômicos.
Como decorrência lógica da nova postura assumida pelo Estado perante as relações negociais, a teoria do contrato sofreu marcantes alterações, que merecem importante reflexão.
Essa nova perspectiva restou fortemente delineada pelo Código Civil de 2002,que trouxe marcantes características no âmbito das relações contratuais, em especial, o apego à ética, à postura social e à economicidade.
As características supracitadas se fazem notar com maior destaque nas relações contratuais, tendo em vista que o Código Civil estabelece expressamente normas que consagram a boa-fé objetiva, a função social do contrato e a submissão aos efeitos da revisão contratual para reequilíbrio de sua equação econômica.
No que tange ao princípio da boa-fé objetiva, deve-se asseverar que este pode ser entendido como aquele que obriga às partes contratantes a cumprirem não apenas o foi convencionado entre elas, mas, principalmente, a observarem na conclusão do contrato, como na sua execução, os princípios da probidade e boa-fé, por força de lei.
Neste sentido convém colacionar o ensinamento de Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, para quem a boa-fé objetiva
[...] é cláusula geral, ao mesmo tempo em que se consubstancia como fonte de direito e de obrigações, isto é, fonte jurígena assim como a lei e outras fontes. [...] a boa-fé objetiva impõe ao contratante um padrão de conduta, de modo que deve agir como um ser humano reto, vale dizer, com probidade, honestidade e lealdade. (NERY JUNIOR, 2008, p. 506)
Assim, pode-se afirmar que, pelo princípio da boa-fé objetiva, ao lado dos vínculos criados pelo acordo de vontades, há deveres acessórios aos que foram expressamente pactuados entre os contratantes.
Ademais, conforme acima asseverado,o dever de lealdade e boa-fé deverão estar presentes também na fase pré-contratuale perdurar no momento da definição do ajuste contratual, assim como o seu cumprimento. Para além disto, tais deveres deverão subsistir, até mesmo, depois de esgotado o vínculo contratual.
Neste sentido é também a lição de Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, senão veja-se:
As partes devem guardar a boa-fé tanto na fase pré-contratual, das tratativas preliminares, como durante a execução do contrato e, ainda, depois de executado o contrato (pós-eficácia das obrigações). Isso decorre da cláusula geral da boa-fé objetiva [...] Com isso, os entabulantes – ainda não contratantes – podem responder por fatos que tenham ocorrido antes da celebração e da formação do contrato (responsabilidade pré-contratual) e os ex-contratantes – o contrato já se findou pela sua execução – também respondem por fatos que decorram do contrato findo (pós-eficácia das obrigações contratuais). (NERY JUNIOR, 2008, p. 506)
Neste diapasão, impende salientar quea ocorrênciada boa-fé objetiva na formação e execução do contrato, e, portanto, para exigir-se do contratante alguma prestação derivada de dever acessório, apenas tem o seu conteúdo definido na situação concreta, com aanálise da postura das partes na relação contratual.
Assim, apesar de ser obrigação decorrente de lei, embora possa ser utilizada para a interpretação e integração do pacto, segundo os usos e costumes, a teoria da boa-fé objetiva não se presta para credenciar o juiz a alterar a substância do contrato, ainda que pactuado de má-fé por uma das partes, haja vista que o acordo de vontades continua sendo o fundamento dos negócios bilaterais.
Com relação ao princípio do equilíbrio econômico do contrato, pode-se afirmar que visa a proteger a contratante contra a lesão e a onerosidade excessiva que podem decorrer darelação contratual.
Nesse contexto, cumpre aduzir queo negócio jurídico será anulável se, sob premente necessidade ou por inexperiência, uma das partes se obrigarà prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta.
Por outro lado, se o desequilíbrio for decorrente da superveniência de acontecimentos extraordinários, que tornem a prestação excessivamente onerosa para uma das partes contratantes e extremamente vantajosa para a outra, será permitida a resolução do contrato ou a revisão de seus termos, para restabelecer o equilíbrio econômico entre prestação e contraprestação, sem, contudo, ensejar anulação.
Importa versar ainda sobre o princípio da função social do contrato, que tem conteúdo reconhecido em data muito anterior ao Código Civil de 2012.
Infere-se do alcance da função social que, embora livres para convencionar, os contratantes deverão agir sempre dentro dos limites necessários para evitar que sua atuação negocial se torne fontes de prejuízo injustos e indesejáveis para terceiros.
Outrossim, o princípio também possui conteúdo vocacionado aos terceiros que, mesmo sem serem partes do contrato, deverão respeitar seus efeitos no meio social. Isto porque, as relações contratuaispossuem relevante papel na ordem econômica, sendo negócios indispensáveis ao desenvolvimento social.
Na sua vocação para atingir terceiros é que reside, justamente, a diferença entre a função social do contrato e a boa–fé objetiva, haja vista que, diferente daquela, que aborda os reflexosda liberdade contratual sobre terceiros, esta está adstrita ao campo das relações estabelecidas entre as partes.
Assim, ofende-se o princípio da boa-fé objetiva quando o contrato, ou a maneira de interpretá-lo ou executá-lo,redunde em prejuízo injusto para uma das partes – o que demonstra tratar-se de um efeito intrínseco do pacto –, enquanto que se ofende a função social quando os efeitos externos do contrato prejudiquem injustamente os interesses da comunidade ou de estranhos ao vínculo negocial.
Apesar da importância das novas concepções das relações contratuais, necessárias para a manutenção do equilíbrio e coibição dos abusos nas convenções entre as partes, deve-se asseverar a importância dos princípios clássicos.
Afinal,
[...] a probidade resulta do confronto da conduta do contratante com um padrão de “homem leal e honesto”, e terá de ser apurada em face das circunstâncias de cada caso. O conceito de boa-fé, embora flexível, exige que o intérprete procure pesquisar a real intenção das partes, dentro do contexto efetivo do instrumento do contrato. (PEREIRA, 2008, p. 20)
Assim, os “mais recentes princípios” devem ser acrescidos aos tradicionais, a fim de diminuir-lhes a rigidez, bem como para enriquecer o direito contratual com apelos e fundamentos éticos e funcionais, sem, contudo, retirar a importância da autonomia davontade das partes na celebração do pacto, que continua sendo o elemento essencial do contrato.
Com efeito, é certo que
[...] em primeiro lugar vigora a faculdade de contratar e de não contratar, isto é, o arbítrio de decidir, segundo os interesses e as conveniências da cada um, se e quando estabelecerá com outrem um negócio jurídico-contratual [...] a liberdade de contratar espelha o poder de fixar o conteúdo do contrato, redigidas as suas cláusulas ao sabor do livre jogo das conveniências dos contratantes... o princípio da autonomia da vontade, que genericamente pode enunciar-se como a faculdade que têm as pessoas de concluir livremente os seus contratos. (PEREIRA, 2008, p. 20)
Como isso, deve-se concluir, necessariamente, que devem ser impostos limites na aplicação prática dos novos princípios da teoria dos contratos, a saber: não podem eles servir de ensejo a uma desmesurada intervenção judicial na autonomia contratual, o que traduziria insegurança jurídica; deverão os juízes na aplicação de tais princípios atuar segundo as figuras traçadas pelo próprio código para franquear a invalidação dos negócios viciados ou proceder à revisão dos negócios desequilibrados.
Referências:
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Rio de Janeiro, Forense, 2008.
NERY JUNIOR, Nelson. Código civil comentado. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
Procuradora Federal - membro da Advocacia-Geral da União, em exercício na Procuradoria Federal Especializada Junto à Universidade Federal do Sul da Bahia. Graduação em Direito pela Universidade Católica de Salvador (2005), especialização em Direito Civil pela Universidade Federal da Bahia (2008) e especialização em Direito Público pela Universidade de Brasília (2013).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ANDRADE, Roberta Rabelo Maia Costa. A necessária compatibilização de princípios na teoria geral dos contratos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42391/a-necessaria-compatibilizacao-de-principios-na-teoria-geral-dos-contratos. Acesso em: 23 dez 2024.
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