RESUMO: o conceito de miserabilidade previsto no art. 20, § 3o, da Lei 8.742/93 foi sendo ampliado e relativizado desde sua criação, e mesmo com a decisão do Supremo Tribunal Federal na Reclamação 4374/PE o assunto não foi integralmente resolvido.
Palavras-chave: amparo assistencial, Lei Orgânica da Assistência Social, benefício de prestação continuada, miserabilidade, evolução, jurisprudência, inconstitucionalidade, critério objetivo.
1. Introdução
A garantia de benefício assistencial no valor de um salário mínimo ao idoso ou portador de deficiência que não tem meios de sustentar, nem pode ser sustentado por sal família, está prevista no próprio texto constitucional (art. 203, V). A norma constitucional, no entanto, não define no que consiste “não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família”, deixando expressamente para a lei infraconstitucional a tarefa de fazê-lo.
A previsão constitucional foi regulamentada pela Lei 8.742/93 (Lei Orgânica da Assistência Social, ou LOAS), que instituiu o chamado amparo assistencial ou benefício assistencial, chamado na lei de benefício de prestação continuada.
A LOAS determinou, em seu art. 20, §3º, que a aferição de miserabilidade seria baseada na renda familiar “per capita”, que não poderia ser inferior a ¼ de salário mínimo (redação dada pela Lei nº 12.435, de 2011) :
Art. 20. O benefício de prestação continuada é a garantia de um salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família.
[...]
§ 3o Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo.
Tal limitação, que foi polêmica desde sua criação, embora tenha sido considerada constitucional num primeiro momento, foi sendo progressivamente flexibilizada pela legislação e pela jurisprudência, culminando nas recentes decisões do Supremo Tribunal Federal na Reclamação 4374/PE que, embora tenha declarada a inconstitucionalidade do §3º do art. 20 da LOAS, não adotou critério diverso, o que causa vários problemas de ordem prática, como se demonstrará.
2. Evolução do conceito de miserabilidade na jurisprudência
A Lei Orgânica da Assistência Social sofreu críticas desde sua criação. Em 23 de janeiro de 1995, o Procurador-Geral da República ingressou com a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 1232-1/DF, alegando a inconstitucionalidade do art. 20, §3º, da Lei. De início, a medida liminar foi negada por unanimidade, sob os seguintes argumentos:
EMENTA: MEDIDA LIMINAR EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CONCEITO DE "FAMILIA INCAPAZ DE PROVER A MANUTENÇÃO DA PESSOA PORTADORA DE DEFICIÊNCIA OU IDOSA" DADO PELO PAR.3. DO ART. 20 DA LEI ORGÂNICA DA ASSISTENCIA SOCIAL (LEI N. 8.742, DE 07.12.93) PARA REGULAMENTAR O ART. 203, V, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. . 1. Argüição de inconstitucionalidade do par. 3. do art. 20 da Lei n. 8.472/93, que preve o limite maximo de 1/4 do salario minimo de renda mensal "per capita" da familia para que seja considerada incapaz de prover a manutenção do idoso e do deficiente físico, ao argumento de que esvazia ou inviabiliza o exercício do direito ao beneficio de um salario minimo conferido pelo inciso V do art. 203 da Constituição. 2. A concessão da liminar, suspendendo a disposição legal impugnada, faria com que a norma constitucional voltasse a ter eficacia contida, a qual, por isto, ficaria novamente dependente de regulamentação legal para ser aplicada, privando a Administração de conceder novos benefícios até o julgamento final da ação. 3. O dano decorrente da suspensão cautelar da norma legal e maior do que a sua manutenção no sistema jurídico. 4. Pedido cautelar indeferido.
(STF – ADI 1.232 (MC) – DF – Tribunal Pleno – Rel. Min. Maurício Correa – DJU26.05.1995)
Ao final, a ADI foi julgada improcedente, sendo derrotado o voto do relator, o Ministro Ilmar Galvão, que entedia possível a comprovação da miserabilidade por outros meios além da renda “per capita” inferior a ¼ de salário mínimo. Foi adotada a seguinte ementa:
“Ementa: Constitucional. Impugna dispositivo de lei federal que estabelece o critério para receber o benefício do inciso v do art. 203, da CF. Inexiste a restrição alegada em face ao próprio dispositivo constitucional que reporta à lei para fixar os critérios de garantia do benefício de salário mínimo à pessoa portadora de deficiência física e ao idoso. Esta lei traz hipótese objetiva de prestação assistencial do Estado. Ação julgada improcedente.”
(STF – ADI 1.232/DF – Tribunal Pleno, por maioria; Rel. Min. Ilmar Galvão, Red. para o acórdão Min. Nelson Jobim; DJ de 01.06.2001).
Com base nesse julgamento, o INSS passou a apresentar reclamações quando se via diante de decisões judiciais que violavam o entendimento do Supremo Tribunal Federal na ADI 1232-1/DF, muitas vezes com sucesso.
A matéria, no entanto, não fora pacificada na jurisprudência. A Turma Nacional de Uniformização chegou a editar em 2004 a súmula 11, com a seguinte redação:
A renda mensal, per capita, familiar, superior a ¼ (um quarto) do salário mínimo não impede a concessão do benefício assistencial previsto no art. 20, § 3º da Lei nº. 8.742 de 1993, desde que comprovada, por outros meios, a miserabilidade do postulante.
Ou seja, a mencionada súmula ia em sentido contrário à decisão do Supremo Tribunal Federal. A súmula acabou cancelada em 2006, mas a discussão persistiu, com muitos juízes concendendo o amparo assistencial com base em outas provas além do critério de ¼ de salário mínimo “per capita” previsto na LOAS.
Em 2007, nos autos da Reclamação 4374/PE, o relator, ministro Gilmar Mendes, reconheceu que:
“O Tribunal parece caminhar no sentido de se admitir que o critério de 1/4 do salário mínimo pode ser conjugado com outros fatores indicativos do estado de miserabilidade do indivíduo e de sua família para concessão do benefício assistencial de que trata o art. 203, inciso V, da Constituição.
Entendimento contrário, ou seja, no sentido da manutenção da decisão proferida na Rcl 2.303/RS, ressaltaria ao menos a inconstitucionalidade por omissão do § 3o do art. 20 da Lei n° 8.742/93, diante da insuficiência de critérios para se aferir se o deficiente ou o idoso não possuem meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, como exige o art. 203, inciso V, da Constituição.
A meu ver, toda essa reinterpretação do art. 203 da Constituição, que vem sendo realizada tanto pelo legislador como por esta Corte, pode ser reveladora de um processo de inconstitucionalização do § 3o do art. 20 da Lei n° 8.742/93.”
(Rcl 43746/PE, Decisão monocrática em 01/02/07. Min. Gilmar Mendes)
Finalmente, em abril de 2013, o Supremo Tribunal Federal julgou improcedente a Reclamação 4.374-PE e negou provimento ao RE n. 567.985/MT, realizando declaração de inconstitucionalidade parcial, sem pronúncia de nulidade, do art. 20, § 3º, da Lei 8.742/93.
Transcrevemos, ante a relevância para o presente artigo, a ementa adotada na Reclamação 4.374-PE:
Benefício assistencial de prestação continuada ao idoso e ao deficiente. Art. 203, V, da Constituição.
A Lei de Organização da Assistência Social (LOAS), ao regulamentar o art. 203, V, da Constituição da República, estabeleceu critérios para que o benefício mensal de um salário mínimo fosse concedido aos portadores de deficiência e aos idosos que comprovassem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família.
2. Art. 20, § 3º da Lei 8.742/1993 e a declaração de constitucionalidade da norma pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 1.232. Dispõe o art. 20, § 3º, da Lei 8.742/93 que “considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo”. O requisito financeiro estabelecido pela lei teve sua constitucionalidade contestada, ao fundamento de que permitiria que situações de patente miserabilidade social fossem consideradas fora do alcance do benefício assistencial previsto constitucionalmente. Ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.232-1/DF, o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade do art. 20, § 3º, da LOAS.
3. Reclamação como instrumento de (re)interpretação da decisão proferida em controle de constitucionalidade abstrato. Preliminarmente, arguido o prejuízo da reclamação, em virtude do prévio julgamento dos recursos extraordinários 580.963 e 567.985, o Tribunal, por maioria de votos, conheceu da reclamação. O STF, no exercício da competência geral de fiscalizar a compatibilidade formal e material de qualquer ato normativo com a Constituição, pode declarar a inconstitucionalidade, incidentalmente, de normas tidas como fundamento da decisão ou do ato que é impugnado na reclamação. Isso decorre da própria competência atribuída ao STF para exercer o denominado controle difuso da constitucionalidade das leis e dos atos normativos. A oportunidade de reapreciação das decisões tomadas em sede de controle abstrato de normas tende a surgir com mais naturalidade e de forma mais recorrente no âmbito das reclamações. É no juízo hermenêutico típico da reclamação – no “balançar de olhos” entre objeto e parâmetro da reclamação – que surgirá com maior nitidez a oportunidade para evolução interpretativa no controle de constitucionalidade. Com base na alegação de afronta a determinada decisão do STF, o Tribunal poderá reapreciar e redefinir o conteúdo e o alcance de sua própria decisão. E, inclusive, poderá ir além, superando total ou parcialmente a decisão-parâmetro da reclamação, se entender que, em virtude de evolução hermenêutica, tal decisão não se coaduna mais com a interpretação atual da Constituição.
4. Decisões judiciais contrárias aos critérios objetivos preestabelecidos e Processo de inconstitucionalização dos critérios definidos pela Lei 8.742/1993. A decisão do Supremo Tribunal Federal, entretanto, não pôs termo à controvérsia quanto à aplicação em concreto do critério da renda familiar per capita estabelecido pela LOAS. Como a lei permaneceu inalterada, elaboraram-se maneiras de contornar o critério objetivo e único estipulado pela LOAS e avaliar o real estado de miserabilidade social das famílias com entes idosos ou deficientes. Paralelamente, foram editadas leis que estabeleceram critérios mais elásticos para concessão de outros benefícios assistenciais, tais como: a Lei 10.836/2004, que criou o Bolsa Família; a Lei 10.689/2003, que instituiu o Programa Nacional de Acesso à Alimentação; a Lei 10.219/01, que criou o Bolsa Escola; a Lei 9.533/97, que autoriza o Poder Executivo a conceder apoio financeiro a municípios que instituírem programas de garantia de renda mínima associados a ações socioeducativas. O Supremo Tribunal Federal, em decisões monocráticas, passou a rever anteriores posicionamentos acerca da intransponibilidade do critérios objetivos. Verificou-se a ocorrência do processo de inconstitucionalização decorrente de notórias mudanças fáticas (políticas, econômicas e sociais) e jurídicas (sucessivas modificações legislativas dos patamares econômicos utilizados como critérios de concessão de outros benefícios assistenciais por parte do Estado brasileiro).
5. Declaração de inconstitucionalidade parcial, sem pronúncia de nulidade, do art. 20, § 3º, da Lei 8.742/1993.
6. Reclamação constitucional julgada improcedente
(STF, Rcl 4374, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 18/04/2013)
Entendeu a suprema corte que, ante as “mudanças fáticas (políticas, econômicas e sociais) e jurídicas (sucessivas modificações legislativas dos patamares econômicos utilizados como critérios de concessão de outros benefícios assistenciais por parte do Estado brasileiro)” não poderia mais o critério objetivo estabelecido legalmente ser considerado como único padrão para aferição de miserabilidade para fins de concessão do amparo assistencial, uma vez que ele seria insuficiente para dar cumprimento à ordem constitucional do art. 293, V. Percebe-se, ademais, que uma vez que “a lei permaneceu inalterada” mesmo diante das mencionadas mudanças, acabou tornando-se obsoleta para os fins a ela se destina.
As novas leis citadas, no entanto, estabelecem critérios objetivos para os programas sociais. Como se vê Supremo Tribunal Federal, ao realizar a declaração de inconstitucionalidade parcial do art. 20, § 3º, da Lei 8.742/93 deixou de determinar outro critério em substituição ao contido na norma. Embora tenham sido propostas balizas por alguns dos ministros envolvidos no julgamento, não se logrou formar maioria para que se estabelecessem parâmetros objetivos, cabendo, doravante, aos operadores do direito aferir a miserabilidade no caso concreto, com base em critérios subjetivos.
É nesse panorama que se encontra a jurisprudência no momento atual.
3. Da problemática da aferição de miserabilidade na situação atual
A ausência de parâmetros objetivos para a concessão do benefício assistencial, além de levantar variadas questões jurídicas, traz um sério problema de ordem prática.
Os programas de assistência social atendem milhões de pessoas. Na Reclamação 4374/PE são mencionadas projeções, para 2010, de mais de três milhões de beneficiários do benefício de amparo assistencial, que saltariam para quase oito milhões se contemplados todos que recebem renda “per capita” de meio salário mínimo.
A questão não é apenas orçamentária, mas também logística. A concessão dos benefícios de amparo assistencial é feita pelas agências do Instituto Nacional do Seguro Social, com base na legislação previdenciária. Ocorre que aos funcionários do INSS não é dada autonomia para decidir, com base em critérios subjetivos, qual o conceito de miserabilidade, ficando obrigados a seguir aos limites objetivos determinados na legislação previdenciária.
Surge, portanto, um benefício previdenciário que só pode ser concedido pela via judicial: o amparo assistencial ao indivíduo que tem renda “per capita” superior a ¼ de salário mínimo. A situação tende a gerar uma infinidade de novas ações, cada uma com uma solução diversa, uma vez que inexiste na jurisprudência dos tribunais superiores critérios objetivos a guiar o julgador de primeiro grau.
Tendo em vista que o critério anteriormente estabelecido tornou-se insuficiente, a concessão de amparo assistencial passará a depender de política judiciária, e não da decisão do legislador.
É provável ainda que a multiplicação de entendimentos entre os diversos órgãos julgadores cause novos pedidos de uniformização e outros recursos aos tribunais superiores, sendo devolvida a matéria ao Supremo Tribunal Federal, para que estabeleça balizas para as instâncias inferiores.
Por fim, eventual solução legislativa que atualize os critérios para concessão do benefício, embora seja desejável conforme os próprios acórdãos da Reclamação 4.374-PE e do RE n. 567.985/MT, inevitavelmente será levada à suprema corte, ante a ausência de definição de parâmetros objetivos até o presente momento.
4. Conclusão
Os critérios de miserabilidade trazidos na Lei 8.742/93 não sofreram alteração legislativa significativa, ainda que a legislação e a jurisprudência tenham evoluído para ampliar esse conceito, o que gerou a declaração de inconstitucionalidade do art. 20, §3º. Embora se mostre necessária e urgente a padronização das políticas assistenciais, conferindo-se aos idosos e deficientes proteção semelhantes àquelas previstas para outras entidades nas legislações posteriores (tais como a Lei 10.689/2003e a Lei 10.836/2004), a ausência de qualquer critério objetivo gera proliferação de demandas e insegurança jurídica.
REFERÊNCIAS:
MIKHAIL, Fouad Degani. A declaração de inconstitucionalidade do §3º do art. 20 da Lei n. 8.743/93 - Breves apontamentos sobre o RE n. 567.985/MT e a Rcl. 4.374/PE. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 jan. 2014. Disponivel em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.46726&seo=1>. Acesso em: 10 dez. 2014.
KERTZMAN, Ivan. Curso Prático de Direito Previdenciário. – 7. edição – Salvador: JusPODIVM, 2010, p. 51.
SANTOS, Marisa Ferreira dos. Direito previdenciário esquematizado / Marisa Ferreira dos Santos; coord. Pedro Lenza. – 1. edição – São Paulo : Saraiva, 2011.
ALENCAR, Hermes Arrais. Benefícios previdenciários. 3. ed. São Paulo: Livraria e
Editora Universitária de Direito, 2007.
Procurador Federal em exercício na Procuradoria Geral Federal de Santos-SP, órgão da Advocacia-Geral da União (AGU)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AVIAN, Eduardo. Amparo assistencial: a evolução do conceito de miserabilidade e a aplicação da Lei 8.742/93 na prática Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42406/amparo-assistencial-a-evolucao-do-conceito-de-miserabilidade-e-a-aplicacao-da-lei-8-742-93-na-pratica. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Maurício Sousa da Silva
Por: Maurício Sousa da Silva
Por: Maurício Sousa da Silva
Por: DESIREE EVANGELISTA DA SILVA
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