1. INTRODUÇÃO
A proteção dos interesses sociais e individuais indisponíveis, bem como dos direitos disponíveis com relevância social, faz com que o processo coletivo seja cada vez mais debatido, especialmente tendo em vista a importância dada pela própria Constituição à tutela destes direitos. Neste contexto, a discussão sobre a possibilidade de desistência em ação civil pública faz-se oportuna.
2. O PEDIDO DE DESISTÊNCIA NA AÇÃO CIVIL PÚBLICA
A Lei n. 7.347/85regulamentou a propositura da ação civil pública, que foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988, sendo esta um instrumento para proteger os direitos transindividuais. Por ser a via adequada para tutelar os interesses sociais e individuais indisponíveis, bem como dos direitos disponíveis com relevância social, por meio da ação civil pública é definida a responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, entre outros direitos.
Neste ponto, é interessante gizar que, conquanto o art. 1º da Lei n. 7.347/85[1], elenque um rol de direitos sujeitos a proteção, em razão do art. 129, III, da Constituição, estatuir que é função institucional do Ministério Público promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos, os direitos elencados como sujeitos à proteção passaram a ser apenas exemplificativos.
Diante da importância dos direitos e interesses tutelados, a desistência da ação tem tratamento diverso do conferido pelo Código de Processo Civil. De fato, impõe-se reconhecer neste ponto mais uma especificidade do microssistema de tutela dos direitos coletivos. O parágrafo 3º do art. 5º da Lei n. 7.347/85, abaixo transcrito dispõe:
§ 3° Em caso de desistência infundada ou abandono da ação por associação legitimada, o Ministério Público ou outro legitimado assumirá a titularidade ativa.
Destarte, em caso de desistência infundada poderá o Ministério Público ou outro co-legitimado continuar com a ação. Marcelo Abelha Rodrigues ensina:
O plus em relação ao sistema do CPC (art. 267, VIII e § 4º) diz respeito ao fato de que, no “sistema processual coletivo”, a desistência, para se ter validade e o condão de extinguir o processo nos termos do art. 267, III, do CPC, necessita, além dos requisitos normais estabelecidos no § 4º da norma citada, ser fundada. Justamente porque a legitimação é do tipo concorrente e porque a desistência leva, inexoravelmente, à sentença sem julgamento do mérito, permitindo a re-propositura da demanda, é que nada mais lógico que o sistema preveja a hipótese de que qualquer legitimado possa suceder processualmente o autor desistente[2].
Cuida-se de um caso de substituição processual superveniente, já que o co-legitimado irá assumir o polo ativo da demanda após o início da ação, estando esta substituição processual condicionada a desistência por parte do autor da ação civil pública, bem como que esta desistência seja infundada.
José dos Santos Carvalho Filho afirma que “a desistência será fundada quando o autor deixar claros os motivos que escoram sua definição de conduta. Ao contrário, será infundada quando se limitar a manifestar sua vontade de não prosseguir o processo, sem, contudo, declinar as razões por que o faz. Se a desistência tiver fundamento, não se autorizará a substituição processual; se for despida de motivação, outro legitimado poderá assumir a titularidade ativa”[3].
O referido doutrinador destaca, também, que mesmo se estiver arrazoada a desistência, caso o fundamento viole princípios da razoabilidade, veracidade e precisão poderá ser autorizada a substituição processual[4].
É importante esclarecer que a possibilidade de assunção da demanda ocorrerá independentemente de quem seja autor da ação, como assevera Fredie Didier Jr:
“...embora o legislador se refira apenas às associações, a interpretação correta do dispositivo deve estender sua aplicação à desistência infundada de qualquer co-legitimado ativo.[5]”
Noutro giro, interessante analisar a posição do Ministério Público no que tange à desistência da ação civil pública. Com relação à possibilidade de assumir a ação não há o que se discutir, pois a legislação é expressa em determinar que o Ministério Público integre o polo ativo da demanda em caso de abandono da causa pelo autor co-legitimado, ou na hipótese de sua desistência infundada. Sobre o tema, o STJ já se manifestou:
PROCESSO CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. EXECUÇÃO. EXTINÇÃO DO PROCESSO EXECUTÓRIO SEM JULGAMENTO DE MÉRITO. DESISTÊNCIA TÁCITA DA INSTITUIÇÃO AUTORA LEGITIMADA. COISA JULGADA MATERIAL DA DECISÃO EXTINTIVA. INEXISTÊNCIA. ARTS. 5.º, §3.º, E 15, DA LEI N.º 7.347/85.
PRINCÍPIOS DA INDISPONIBILIDADE E OBRIGATORIEDADE DA DEMANDA COLETIVA.
1. A motivação contrária ao interesse da parte ou mesmo omissa em relação a pontos considerados irrelevantes pelo decisum não se traduz em ofensa ao art. 535 do CPC.
2. A ofensa ao art. 535 do CPC somente se configura quando, na apreciação do recurso, o Tribunal de origem insiste em omitir pronunciamento sobre questão que deveria ser decidida, e não foi, o que não ocorreu na hipótese dos autos.
3. Nos termos dos arts. 5.º, §3.º, e 15, da Lei n.º 7.347/85, nos casos de desistência infundada ou de abandono da causa por parte de outro ente legitimado, deverá o Ministério Público integrar o pólo ativo da demanda. Em outras palavras, homenageando-se os princípios da indisponibilidade e obrigatoriedade das demandas coletivas, deve-se dar continuidade à ação civil pública, a não ser que o Parquet demonstre fundamentalmente a manifesta improcedência da ação ou que a lide revele-se temerária.
4. Entende-se por coisa julgada material a imutabilidade da sentença de mérito que impede que a relação de direito material, decidida entre as mesmas partes, seja reexaminada e decidida, no mesmo processo ou em processo distinto, pelo mesmo ou por distinto julgador.
5. Justamente por ter como pré-requisito essencial a análise de questão de mérito é que se diz que a sentença extintiva da execução não possui força declaratória suficiente para produzir coisa julgada material, que é o fim buscado, em verdade, pelo processo de conhecimento.
6. Recurso especial a que se nega provimento.
(REsp 200.289/SP, Rel. Ministro VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RS), TERCEIRA TURMA, julgado em 02/09/2010, DJe 15/09/2010)
Contudo, pode o Ministério Público deixar de assumir a titularidade da ação civil pública caso entenda que não há razões para prosseguir com o processo, devendo, entretanto, submeter sua manifestação ao Conselho Superior do Ministério Público como defende Hugo Nigro Mazzilli, em lição a seguir transcrita:
“Se o órgão do Ministério Público entender que não é caso de assumir a promoção da ação civil pública ou coletiva, objeto de desistência por parte de co-legitimados, deverá submeter previamente suas razões ao Conselho Superior, que, caso discorde de seu entendimento, poderá designar outro membro para prosseguir no feito[6]”.
É, também, possível que o Ministério Público desista da ação, se, durante seu curso, verifique inexistir razões fundadas para seu prosseguimento.
Este entendimento destoa do defendido por José dos Santos Carvalho Filho, que afirma que a tutela destes interesses qualificados é indisponível, sendo função institucional do Ministério Público sua proteção. Defende assim, que “tendo os interesses difusos e coletivos a qualificação de interesses sociais indisponíveis e sendo eles considerados como função institucional do Ministério Público, sua indisponibilidade acarretará para seus órgãos, por via de natural consequência, a indisponibilidade também do instrumento adequado para sua tutela”[7].
Entretanto, esta não é a melhor solução, já que também para o Ministério Público é exigido que a desistência seja fundada. A desistência fundada não implica disponibilidade de direitos indisponíveis, mas tão-somente que a via utilizada, por razões devidamente fundamentadas não precisa ter trânsito.
Diante, portanto, da desistência do prosseguimento no processo de ação civil pública pelo Ministério Público, compete ao magistrado presidente do feito abrir a possibilidade para que um dodos co-legitimados ativos possa assumir o polo ativo, mediante substituição processual. Este é, inclusive, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, abaixo mencionado:
PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MICROSSISTEMA DE TUTELA DE DIREITOS COLETIVOS (EM SENTIDO LATO). ILEGITIMIDADE ATIVA.APLICAÇÃO, POR ANALOGIA, DOS ARTS. 9º DA LEI N. 4.717/65 e 5º, § 3º, DA LEI N. 7.347/85. POSSIBILIDADE. ABERTURA PARA INGRESSO DE OUTRO LEGITIMADOS PARA OCUPAR O PÓLO ATIVO DA DEMANDA. EXTINÇÃO SEM RESOLUÇÃO DE MÉRITO. MEDIDA DE ULTIMA RATIO. OBSERVAÇÃO COMPULSÓRIA DAS REGRAS DE DISTRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIA ABSOLUTA.
1. Trata-se, na origem, de ação civil pública ajuizada pelo Conselho Regional de Medicina da Seccional do Rio Grade do Sul (CREMERS) contra o Estado do Rio Grande do Sul para discutir o direito de pacientes que escolherem pelo atendimento do SUS à opção de pagamento da chamada "diferença de classe" e à abstenção da exigência prévia de que passem por triagem em posto de saúde a fim de que seja, portanto, viabilizado o atendimento pelo médico escolhido pelos próprios pacientes.
2. A sentença reconheceu a ilegitimidade ativa ad causam da autarquia federal por considerar que, segundo a redação do art. 5º da Lei n. 7.347/85 vigente à época da propositura da demanda, as autarquias que intentassem ações como a presente deveriam comprovar a pertinência temática entre seus objetivos institucionais e o objeto da demanda. O acórdão recorrido reformou este entendimento, aplicando a nova redação do referido dispositivo, que franqueia às autarquias, de forma ampla e irrestrita - sem necessidade, pois, de pertinência temática -, a legitimidade ativa para propor ações civis públicas.
3. As conclusões ora impugnadas não merecem reforma, embora seja possível discordar da linha argumentativa desenvolvida pela origem.
4. O motivo de rever o entendimento sufragado pela sentença reside unicamente no fato de que, por se tratar de demanda que envolve direitos coletivos em sentido lato, há atração do microssistema específico, formado basicamente - mas não exclusivamente - pelas Leis n. 4.717/65 (LAP), 7.347/85 (LACP) e 8.038/90 (CDC).
5. De acordo com a leitura sistemática e teleológica das Leis de Ação Popular e Ação Civil Pública, fica evidente que o reconhecimento da ilegitimidade ativa para o feito jamais poderia conduzir à pura e simples extinção do processo sem resolução de mérito.
6. Isto porque, segundo os arts. 9º da Lei n. 4.717/65 e 5º, § 3º, da Lei n. 7.347/85, compete ao magistrado condutor do feito, em caso de desistência infundada, abrir oportunidade para que outros interessados assumam o pólo ativo da demanda.
7. Embora as referidas normas digam respeito aos casos em que parte originalmente legítima opta por não continuar com o processo, sua lógica é perfeitamente compatível com os casos em que faleça legitimidade a priori ao autor. Dois os motivos que levam a esta assertiva.
8. Em primeiro lugar, colacione-se um motivo dogmático evidente, que diz respeito ao valor essencialmente social que impregna demandas como a presente, a fazer com que o Poder Judiciário deva se esmerar em, sempre que possível, ser condescendente na análise de aspectos relativos ao conhecimento das ações, deixando de lado o apego ao formalismo.
9. Normas específicas do microssistema em comento e indicativas do que a doutrina contemporânea convencionou chamar de princípio da primazia do conhecimento do mérito do processo coletivo é o próprio art. 5º, § 4º, da Lei n. 7.347/85, que é especialização do princípio da instrumentalidade das formas (art. 154 do CPC). Excertos de doutrina especializada.
10. Em segundo lugar, parece necessário lembrar um motivo pragmático. É que, diante da multifacetada gama de legitimados ativos para os feitos coletivos, a extinção sem exame de mérito normalmente implicará apenas na necessidade de ajuizamento de nova demanda, com mesmas causas de pedir e pedidos, o que significa apenas postergar o juízo meritório - a teor da formação de coisa julgada secundumeventum litis e secundumeventumprobationis.
11. Poder-se-ia objetar que uma sucessão como a que se propõe causaria certo tumulto processual em razão de a parte originária forçar o deslocamento do feito para o âmbito da Justiça Federal.
12. Contudo, justamente em razão do amplo universo de legitimidados ativos ad causam, seria possível a manutenção do processamento e julgamento da causa nos moldes do art. 109 da Constituição da República vigente - poderiam assumir o pólo ativo o Ministério Público Federal ou a União, por exemplo.
13. Por óbvio, caso aparecessem apenas legitimados sem foro próprio, a competência recairia na Justiça Estadual, afinal as regras e princípios já enunciados não têm o condão de modificar norma peremptória de competência absoluta. Porém, no caso concreto, é impossível saber o destino da presente demanda pois o interesse de outros legitimados não foi aferido - o juízo sentenciante, em momento algum, abriu a oportunidade para que viessem a assumir o feito.
14. De mais a mais, veja-se o tortuoso percurso que seria forçado reconhecendo a ilegitimidade nos moldes pleiteados na pretensão recursal: atualmente, até mesmo a autarquia recorrida já teria legitimidade ativa ad causam, pela superveniência da Lei n.11.448/07, o que equivaleria a dizer que estar-se-ia extinguindo um feito agora para permitir que demanda idêntica, com partes, causas de pedir e pedidos literalmente idênticos, fosse ajuizada.
15. Recurso especial não provido.
(REsp 1177453/RS, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 24/08/2010, DJe 30/09/2010)
3. DA CONCLUSÃO
De todo o exposto, é possível a desistência da ação civil pública por qualquer dos legitimados ativos, bem como a assunção, por substituição processual de qualquer dos referidos legitimados no caso de desistência infundada.
Destarte, o magistrado condutor do feito, ao se deparar com pedido de desistência da ação civil pública, deve intimar os co-legitimados ativos para se manifestarem, para, só então, extinguir o processo.
4. BIBLIOGRAFIA
CARVALHO FILHO. José dos Santos. Ação civil pública. 4 ed. rev.,ampl. e atual. Rio Janeiro : Lumen Juris, 2004.
DIDIER Jr, Fredie. Curso de direito processual civil 4. Salvador: Jus Podium, 2007.
LUSVARGHI, Leonardo Augusto dos Santos. DA (IM)POSSIBILIDADE DE DESISTÊNCIA DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO.
Disponívelem
http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/bh/leonardo_augusto_dos_santos_lusvarghi.pdf. Acesso em 10.12.2014.
MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. São Paulo: Saraiva, 1998.
RODRIGUES, Marcelo Abelha. Ação civil pública e meio ambiente. 2º ed. São Paulo: Forense Universitária, 2004.
[1]Art. 1º Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados:
III – a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;
IV - a qualquer outro interesse difuso ou coletivo.
V - por infração da ordem econômica;
VII – à honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos.
VIII – ao patrimônio público e social.
Parágrafo único. Não será cabível ação civil pública para veicular pretensões que envolvam tributos, contribuições previdenciárias, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS ou outros fundos de natureza institucional cujos beneficiários podem ser individualmente determinados.
[2] RODRIGUES, Marcelo Abelha. Ação civil pública e meio ambiente. 2º ed. São Paulo: Forense Universitária, 2004, p. 88-89.
[3] CARVALHO FILHO. José dos Santos. Ação civil pública. 4 ed. ver., ampl. e atual. Rio Janeiro:Lúmen Juris, 2004, p.210.
[4]In, op. cit, p. 210.
[5] DIDIER Jr, Fredie. Curso de direito processual civil 4. Salvador: Jus Podivm, 2007, p. 298.
[6] MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 101-102.
Procurador Federal atuante na Procuradoria-Federal em Goiás, órgão de execução da Advocacia-Geral da União. Pós-graduado em Direito Público pela Universidade de Brasília - UnB. Pós-graduado em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Goiás - UFG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARVALHO, Victor Nunes. A possibilidade de desistência da Ação Civil Pública pelos seus legitimados ativos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42411/a-possibilidade-de-desistencia-da-acao-civil-publica-pelos-seus-legitimados-ativos. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: ELISA CARDOSO BATISTA
Por: Fernanda Amaral Occhiucci Gonçalves
Por: MARCOS ANTÔNIO DA SILVA OLIVEIRA
Por: mariana oliveira do espirito santo tavares
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