RESUMO: A propriedade urbanística possui características e subordinações notadamente destacadas da função social que se exige do exercício do direito de propriedade individual. Partindo-se da evolução histórica eminentemente patrimonialista-liberal até a presente antropocêntrica-social, apura-se o tratamento conferido pelo ordenamento jurídico atual à propriedade urbanística, em seu notável papel de exercício da cidadania no uso e ocupação do solo urbano, de molde a garantir a dignidade da pessoa humana esculpida como fundamento da República Federativa do Brasil.
Palavras-Chave: Propriedade Urbanística – Direito Romano – Função Social – Cidadania – Plano Diretor – Direito De Superfície – Elasticidade De Conceitos – Bem-Estar – Meio Ambiente Sadio – Limitações Administrativas
No que diz respeito à propriedade, notadamente a urbana, inegável ter a Constituição Federal Brasileira de 1988 albergado significativas modificações na contextualização de seu efetivo exercício, impondo limites tanto à atuação privada como à atuação social. Referido tratamento à matéria foi seguido pela edição do Código Civil de 2002 (lei federal n. 10.406/02) e pelo Estatuto das Cidades (lei federal n. 10.257/01).
Porém, antes de se atingir o atual estágio de desenvolvimento e compreensão, o conceito de propriedade suportou diversas mutações ao longo da história, coadunando-se com o pensamento ideológico prevalecente em cada um dos períodos. Destaca-se que propriedade, inicialmente individualizada no período romano, a partir do imperialismo bárbaro passou a ter nítida função de dominação dos povos pelo seu território. Referida ideologia manteve-se durante o absolutismo, que contou, aliás, com o apoio da Igreja.
Somente com a revolução burguesa durante do século XIX, marcado pelo Estado Liberal e pela liberdade de iniciativa, evidenciou-se o conceito de propriedade em seu viés individualista em grau maior do que aquele inicialmente verificado no império romano. De fato, o liberalismo imprimiu verdadeiro caráter absoluto à propriedade individual, reflexo da valorização da liberdade de iniciativa sem que houvesse, em verdade, qualquer subordinação às necessidades sociais.
Este o contexto, inclusive, em que fora editado o Código Civil Brasileiro de 1916 (lei federal n. 3.071/16), em que se conferia tratamento eminentemente patrimonialista ao direito de propriedade, desconectado de preocupações de ordem social, revelando limitadíssima intervenção na propriedade privada – adstrita, no mais das vezes, exclusivamente às hipóteses de desapropriação.
Entretanto, seja pela abusiva utilização do direito de propriedade, seja pelo nascimento do Estado Social a partir da primeira guerra mundial buscando satisfazer as necessidades sociais advindas dos lamentáveis efeitos bélicos, o direito de propriedade passou a ser visto com nova roupagem. Muito embora o Estado Social busque resguardar a propriedade privada, não permite que seu uso ocorra de forma ilimitada ou abusiva.
Advém, de toda esta evolução, que em verdade não se limita o direito de propriedade, e sim seu respectivo exercício. Neste contexto, estará limitado ao atendimento de finalidades socialmente relevantes, como a preservação e equilíbrio do meio ambiente, a garantia do patrimônio histórico e do desenvolvimento urbanístico sadio às presentes e futuras gerações.
Como garantia do meio ambiente equilibrado, tangenciando os direitos fundamentais básicos esculpidos no artigo 5º da Constituição Federal Brasileira (dentre eles o direito à propriedade), sem perder de vista o fundamento básico da República consistente na preservação da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da Constituição Federal), de rigor o estabelecimento de políticas de desenvolvimento urbano visando ao pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e à garantia do bem-estar de seus habitantes.
Sobre o assunto, dispõe o art. 182 da Constituição Federal Brasileira:
Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.
§ 1º - O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.
§ 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.
§ 3º - As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indenização em dinheiro.
§ 4º - É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:
I - parcelamento ou edificação compulsórios;
II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;
III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.
Deste modo, patenteou-se, desde a Constituição Federal Brasileira de 1988, a necessidade de compreender a propriedade urbana como aquela que, sem anular por completo seu caráter patrimonialista, seja capaz de assegurar a observância de valores afetos ao urbanismo e à função social, de modo que apenas como parte de conjunto urbano se apresente a propriedade individual.
A confirmar este entendimento, basta verificar que o art. 182, §1º, da Constituição Federal não prevê como facultativa, mas como obrigatória a elaboração de plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, para cidades com mais de vinte mil habitantes. O Texto Constitucional, nesse assunto, vai além inclusive, atribuindo ao plano diretor o papel de instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.
Ao Município, assim, no exercício de sua competência legislativa voltada a interesse local (art. 30, incisos I e VII, da Constituição Federal Brasileira), promover o adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano. Um dos mecanismos utilizados, pelo Município, no desempenho desta tarefa, consiste em estabelecer as diretrizes para o zoneamento urbano.
O direito de propriedade, por tais razões, acaba sendo determinado pelos planos de ordenação urbana, materializando-se na qualificação urbanística a ele imprimida pelo plano diretor. Sendo assim, o direito de propriedade fica submetido à qualificação urbanística dos respectivos imóveis, estabelecida pelo Município de acordo com as necessidades do desenvolvimento urbanístico das cidades, variáveis no tempo e no espaço.
Por sua vez, o instituto da superfície destaca-se na seara atinente ao uso do solo urbano. Caracteriza-se como meio pelo qual o proprietário de imóvel urbano concede a outrem (superficiário), seja de modo gratuito ou oneroso, de forma temporária, o direito de plantar ou construir em seu terreno. O direito de superfície, frise-se, caracteriza-se como direito real, exigindo a lavratura de escritura pública para sua realização, levado a registro no tabelião de imóveis, e é assim tratado pelo artigo 21 do Estatuto das Cidades (lei federal n. 10.257/01):
Art. 21.O proprietário urbano poderá conceder a outrem o direito de superfície do seu terreno, por tempo determinado ou indeterminado, mediante escritura pública registrada no cartório de registro de imóveis.
§ 1o O direito de superfície abrange o direito de utilizar o solo, o subsolo ou o espaço aéreo relativo ao terreno, na forma estabelecida no contrato respectivo, atendida a legislação urbanística.
§ 2o A concessão do direito de superfície poderá ser gratuita ou onerosa.
§ 3o O superficiário responderá integralmente pelos encargos e tributos que incidirem sobre a propriedade superficiária, arcando, ainda, proporcionalmente à sua parcela de ocupação efetiva, com os encargos e tributos sobre a área objeto da concessão do direito de superfície, salvo disposição em contrário do contrato respectivo.
§ 4o O direito de superfície pode ser transferido a terceiros, obedecidos os termos do contrato respectivo.
§ 5o Por morte do superficiário, os seus direitos transmitem-se a seus herdeiros.
Em linhas gerais, o direito de superfície pode ser implementado a título gratuito ou oneroso, constituindo obrigação do superficiário o pagamento dos tributos incidentes sobre o imóvel, conforme estipulado, também, pelo art. 1.371 do Código Civil Brasileiro:
Art. 1.371. O superficiário responderá pelos encargos e tributos que incidirem sobre o imóvel.
Poderá o imóvel objeto do direito de superfície ser alienado a terceiros ou transferido por morte do superficiário a seus herdeiros, sendo que será extinta se o superficiário der ao terreno destinação diversa daquela para que foi concedida, demonstrando a preocupação da adequação do instituto ao planejamento urbanístico da cidade, nos termos do art. 1.374 do Código Civil Brasileiro:
Art. 1.374. Antes do termo final, resolver-se-á a concessão se o superficiário der ao terreno destinação diversa daquela para que foi concedida.
De outra parte, na ocorrência de eventual desapropriação da área, tanto o proprietário quanto o superficiário terão direito à indenização. Porém, verificada a consolidação da propriedade, o superficiário não terá direito a indenização por benfeitorias, salvo se as partes diversamente estipularam quando da concessão do direito de superfície, nos termos do Código Civil Brasileiro:
Art. 1.375. Extinta a concessão, o proprietário passará a ter a propriedade plena sobre o terreno, construção ou plantação, independentemente de indenização, se as partes não houverem estipulado o contrário.
Art. 1.376. No caso de extinção do direito de superfície em conseqüência de desapropriação, a indenização cabe ao proprietário e ao superficiário, no valor correspondente ao direito real de cada um.
Por qualquer ângulo que se visualize a questão, inegável que a conotação da função social da propriedade urbanística possui nuances bastantes específicos, variáveis no tempo e no espaço, diretamente relacionados à opção do ente federativo (no caso, o Município) no planejamento e execução da arquitetura urbana, de modo a garantir o bem-estar das pessoas, em atendimento ao plano diretor.
Conclui-se, assim, que a configuração do legítimo exercício do direito de propriedade urbanística não se relaciona exclusivamenteà sua qualidade natural ou situação concreta. Ao contrário, a delimitação do regular exercício do direito de propriedade urbanística é desenhada pelas opções conscientes do plano diretor estabelecido pelo Município, que se mostram absolutamente elásticas, sob pena de não se concretizar o exercício da cidadania no uso e ocupação do solo urbano.
Procurador Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JANNUCCI, Alessander. Propriedade Urbanística Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42419/propriedade-urbanistica. Acesso em: 23 dez 2024.
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