O legislador ordinário, ao redigir a Lei 8.213/91, pensou em diversas formas de tornar mais fácil e estimular o retorno ao RGPS daqueles que, por contingências da vida, tiveram que interromper suas contribuições. Tome-se, como exemplo, o período de graça, previsto no art. 15 da citada Lei.
No entanto, há situações em que nem mesmo o lapso do período de graça é suficiente para que o segurado consiga estabilizar sua situação financeira e voltar a contribuir de forma regular.
Pensando neste indivíduo que perdeu sua qualidade de segurado é que foi inserido no art. 24 da Lei de Benefícios o seu parágrafo único, o qual transcrevo abaixo:
“Parágrafo único. Havendo perda da qualidade de segurado, as contribuições anteriores a essa data só serão computadas para efeito de carência depois que o segurado contar, a partir da nova filiação à Previdência Social, com, no mínimo, 1/3 (um terço) do número de contribuições exigidas para o cumprimento da carência definida para o benefício a ser requerido.”
A finalidade da norma é bastante clara: não punir aqueles que tiveram de interromper suas contribuições com a perda de todas elas para efeito de carência.
Para seduzir este indivíduo que perdeu sua qualidade de segurado a voltar a contribuir com o RGPS, o legislador, ao invés de exigir um novo cumprimento total da carência para o benefício a ser requerido, demanda apenas que se cumpra com um terço delas, após o que as contribuições vertidas anteriormente voltam a ser computadas para o preenchimento deste requisito.
Entretanto, a prática na defesa do INSS em juízo mostra que esta regra, na verdade, apenas atinge o seu propósito no que toca aos benefícios com carência longa, de 180 meses.
A sua aplicação para os benefícios por incapacidade, que é o objeto deste trabalho, mostra-se absolutamente desastrosa na prática. O que tinha o intuito de ser um estímulo ao retorno das contribuições acabou tornando-se exatamente o oposto: um estímulo à evasão contributiva, e, principalmente, uma brecha para a obtenção de benefícios por incapacidade preexistente à refiliação dos segurados ao regime.
Com efeito, a experiência mostra que aqueles que têm por intuito obter alguma das aposentadorias por idade avançada raramente precisam se utilizar desse dispositivo. As interrupções não costumam ser suficientemente longas para ensejar a perda da qualidade de segurado.
Contudo, como já escrevi em outros trabalhos, há um contingente gigantesco de segurados que não tem outra intenção ao recolher contribuições que não a de pleitear benefícios por incapacidade, seduzidos pela carência reduzida e pela dificuldade que há na perícia médica para se aferir a possibilidade ou não do exercício do trabalho.
Aqueles que, de antemão, sabem que não têm o propósito de chegar a recolher as 180 contribuições necessárias à aposentadoria regular, após cumprir a carência de 12 contribuições, muito dificilmente voltam a recolhê-las regularmente.
O que se vê muito na prática forense, e, permissa vênia, credita-se em boa parte a advogados varejistas previdenciários que deturpam o sentido da norma em benefício próprio, é o caso de pessoas que chegaram a trabalhar por mais de um ano, mas que há muito deixaram de contribuir, recolherem essas 4 contribuições (1/3 das 12 previstas para os benefícios por incapacidade), e, ato contínuo, requererem o benefício.
Não é exagero dizer que ao menos metade dos segurados em gozo de benefício por incapacidade no país se utilizaram, para sua obtenção, da regra do art. 24, §único, da Lei 8.213/91. Os advogados da área, os Procuradores Federais e os Juízes Federais tem plena noção disso, pois é o dia a dia que se vive na verdadeira indústria que representa o processo previdenciário, que ocupa mais de 20% das ações no Judiciário Brasileiro.
Para que fique mais claro de que expediente estou tratando, e que fique ainda mais claro se tratar de uma espúria distorção da regra, ilustrarei a questão com um exemplo.
X, em meio a uma vida trabalhando na informalidade, teve um vínculo empregatício anotado em sua CTPS, o qual se iniciou em 1994 e findou em 1996. Em 2008, X, com fortes dores lombares que tornam difícil a realização de seu trabalho habitual, obtém a informação de que, como já teve sua carteira assinada por 2 anos, bastaria o recolhimento de 4 contribuições para tornar possível o requerimento de um benefício por incapacidade.
Obviamente, tanto o Procurador oficiante quanto o Magistrado não têm como ler os pensamentos de X e certificar-se de que o recolhimento das contribuições deu-se com o único e exclusivo intuito de requerer o benefício por incapacidade.
Por outro lado, estes operadores do Direito têm como fazer a leitura dos indícios trazidos em uma situação como esta:
1) Pelas regras de experiência comum, qual é a probabilidade de que, após 12 anos, um segurado que teve um vínculo empregatício por apenas 2 anos, retorne ao RGPS e se incapacite justamente quando completou o número mínimo de contribuições necessárias ao requerimento do benefício?
2) Qual o número de vezes que uma situação exatamente igual a esta se repete, diuturnamente, no dia a dia, seja do JEF, seja da Justiça Estadual que exerce competência delegada?
Com efeito. Apesar de, às escâncaras, a quase totalidade de situações que se amoldam ao exemplo dado revelarem incapacidade preexistente ao retorno destes segurados ao RGPS, ainda são raras e honrosas as decisões judiciais que acolhem o argumento.
A razão principal para a concessão do benefício, nestes casos, é a dificuldade que há em se fixar o momento em que a incapacidade se iniciou. Além de ser uma tarefa quase impossível mesmo para o expert, ainda existe a previsão legal de que a incapacidade que advenha de agravamento de doença anterior à filiação ao regime também enseje a concessão do benefício, o que torna tarefa ainda mais hercúlea determinar com precisão, via laudo pericial, que se trata de incapacidade preexistente.
Ademais, os advogados atuantes na área, cientes da dificuldade do perito fixar um marco para o início da incapacidade, à míngua de laudos e atestados médicos, procuram, obviamente, trazer atestados posteriores ao cumprimento da carência reduzida prevista no art. 24, § único.
O ponto a que se quer chegar é o seguinte: cientes de toda essa dificuldade que há em provar, pericialmente, que a incapacidade é anterior à refiliação ao RGPS, os operadores do Direito precisam descobrir formas de escapar dessas artimanhas e evitar que os contribuintes sofram o ônus de enriquecer advogados mal intencionados e sustentar trabalhadores que optaram por não colaborar com um sistema contributivo, securitário, e pautado pelo princípio da solidariedade.
Os indícios também são um meio de prova, e isso foi alardeado diversas vezes no julgamento do caso que ficou conhecido como “Mensalão” pelo STF (Ação Penal 470).
Ora, é mais do que óbvio que aqueles que jamais foram contribuintes assíduos e recolhem o número mínimo de contribuições possível, para não gastar nem um real a mais do que o necessário, logo antes de requerer um benefício por incapacidade, já o fazem com esta intenção. Esse indício fica ainda mais acentuado no caso de doenças degenerativas, como lombalgias, discopatias, tendinites, artroses, que não surgem de um dia para o outro.
Negar esse tipo de argumento sob o escudo de um formalismo exacerbado, ou, do que é ainda pior, de um suposto princípio in dubio pro misero, significa admitir a distorção da finalidade da norma em prol do enriquecimento ilícito, e, em linguagem ordinária, fazer caridade com dinheiro alheio, no caso, o dos contribuintes.
Felizmente, começam a surgir julgados nos quais, mesmo sem o perito fixar uma data de início da incapacidade anterior ao pagamento das famigeradas 4 contribuições, o Magistrado sentenciante não olvida os indícios e as revelações trazidas pela experiência comum, como na brilhante sentença proferida no processo 2014.51.62.001329-9, proferida pelo I. Juiz Federal João Paulo de Mello Castello Branco:
“....
Seguindo no mérito, não é necessário maior esforço intelectual parase constatar que tal recolhimento deu-se com a única finalidade de viabilizar, formalmente, o deferimento do benefício em seguida requerido, prática que tem se mostrado corriqueira nesta Subseção Judiciária.
Contraria o bom senso e a experiência cotidiana acreditar que, após mais dequinze anos sem qualquer contribuição, o autor tivesse efetivamente voltado a exercer atividade remunerada apenas pelo período mínimo previsto em lei (art. 24, § único, da Lei nº8.213/91) e, logo após, se tornado incapaz definitivamente para o trabalho.
Por certo que, ao estabelecer o mínimo de 12 contribuições, ou 04na forma do artigo 24, parágrafo único da LBP, como carência para a concessão de benefícios como auxílio-doença e aposentadoria por invalidez, o legislador teve a intenção de proteger, das vicissitudes e infortúnios, o indivíduo que ingressa no RGPS com a intenção de obter aposentadoria regularmente, mas que encontra obstáculos que o impedem de prosseguir em tal mister e, não, aqueles que sequer trabalham, ou trabalham décadas na informalidade, incorporando a patrimônio próprio os valores que deixam de contribuir, e, quando a idade avançada prenuncia o declínio natural da capacidade laborativa ou, mesmo, quando já existe uma incapacidade laborativa instalada, recorrem ao sistema, que, diga-se, boicotaram uma vida inteira, a fim, tão somente, de auferir benefícios a que não fazem jus.
Assim, imaginar-se um sistema de previdência com pessoas efetuando o recolhimento mínimo de contribuições, pleiteando,após isso, o benefício por incapacidade é absurdamente temerário para preservação do sistema de seguro social, uma vez que prejudica os demais segurados que efetuam o recolhimento para uma futura aposentadoria.
No dizer de Daniel Machado da Rocha e José Paulo Baltazar Junior, a previdência social, comoum sistema de seguro social que é, está indissociavelmente ligada à ideia de contribuição. A proteçãosocial nãocontributiva fica a cargo da assistência social.”
Portanto, o apelo que se faz, em conclusão ao presente trabalho, é que seja levado em conta na análise que se faz em casos desse jaez o conjunto probatório como um todo, e não apenas o laudo pericial, realizando uma simples subsunção do fato à regra, caso este em que seria desnecessário que pessoas ficassem a cargo da jurisdição e das funções essenciais ao seu exercício.
Procurador Federal, membro da Advocacia Geral da União, lota na Procuradoria Federal Especializada junto ao INSS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MUREB, Marcelo Di Battista. Do Art. 24, § único, da Lei 8.213/91 e da sua aplicação conforme os princípios que norteiam a Previdência Social Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42433/do-art-24-unico-da-lei-8-213-91-e-da-sua-aplicacao-conforme-os-principios-que-norteiam-a-previdencia-social. Acesso em: 23 dez 2024.
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