RESUMO: O presente artigo ocupa-se do estudo da dispensa de licitação em razão do valor prevista no inciso II do artigo 24 da Lei 8.666/93, focando sua atenção especificamente nos critérios mais apropriados para se evitar o chamado fracionamento ilegal de despesa na utilização de tal tipo de dispensa.
PALAVRAS CHAVE: Licitação, dispensa em razão do valor, dotação, planejamento.
SUMÁRIO: Introdução. I. O fundamento legal da dispensa de licitação em razão do valor prevista no artigo 24, inciso II, da Lei 8.666/93 e a contextualização do problema relativo ao fracionamento ilegal de despesa. II. A dispensa em razão do valor prevista no artigo 24, inciso II, da Lei 8.666/93 e os critérios mais apropriados para se evitar o fracionamento ilegal da despesa. III. Conclusão.
Introdução
A interpretação do inciso II do artigo 24 da Lei 8.666/93, que autoriza a contratação por dispensa em razão do valor para compras e serviços gerais, exceto de engenharia, tem suscitado as mais variadas dúvidas dos gestores no que tange a evitar o chamado fracionamento ilegal de despesas. Dentro desse contexto, têm surgido alguns critérios para orientar os gestores, sendo a maioria deles desconectada de razões técnicas apropriadas, de sorte que o presente artigo pretende identificar e propor critérios seguros para que os gestores decidam com correção no seu dia a dia.
I. O fundamento legal da dispensa de licitação em razão do valor prevista no artigo 24, inciso II, da Lei 8.666/93 e a contextualização do problema relativo ao fracionamento ilegal de despesa
A hipótese de dispensa de licitação em razão do valor para compras e serviços gerais, exceto de engenharia, encontra-se tipificada no inciso II do artigo 24 da Lei 8.666/93, verbis:
Art. 24. É dispensável a licitação:
(...)
II - para outros serviços e compras de valor até 10% (dez por cento) do limite previsto na alínea "a", do inciso II do artigo anterior e para alienações, nos casos previstos nesta Lei, desde que não se refiram a parcelas de um mesmo serviço, compra ou alienação de maior vulto que possa ser realizada de uma só vez; (Redação dada pela Lei nº 9.648, de 1998)
Trata-se, como se vê, de autorização legal para que, desde que observados os requisitos fixados no dispositivo, o gestor possa deixar de instaurar a licitação e contratar diretamente compras e serviços gerais para a Administração.
Ocorre que, se por um lado um dos requisitos de tal modalidade de dispensa é de natureza objetiva, de fácil percepção, porque se expressa no valor do contrato a ser firmado, de outro o intérprete se depara com um requisito de equacionamento complicado, de conteúdo aberto, dado que a lei não fixa adequadamente o que o venha a ser serviço ou compra que possa ser realizada de uma só vez, sendo esse, pois, o aspecto que se pretende discorrer no presente artigo.
II. A dispensa em razão do valor prevista no artigo 24, inciso II, da Lei 8.666/93 e os critérios mais apropriados para se evitar o fracionamento ilegal da despesa
Há que ser ponderado, inicialmente, que para a incidência do artigo 24, inciso II, da Lei 8.666/93 exigem-se os seguintes requisitos: a) ser a despesa de valor não superior a 10% do limite previsto na alínea “a” do inciso II do artigo 23 da Lei 8.666/93, ou seja, não superior a R$8.000,00; b) não constituir a despesa parcela de uma outra contratação de maior vulto que possa ser realizada de um só vez.
Como sinalado acima, o primeiro requisito não ostenta maiores dúvidas, posto ser de natureza objetiva, de fácil percepção.
Quanto ao segundo requisito, porém, que é o foco deste trabalho, embora não o diga expressamente o inciso II do artigo 24, fica clara a intenção do legislador de impedir a contratação direta por meio de eventual fracionamento do objeto para adequar ao valor permitido para a dispensa, fugindo-se, pois, à exigência do regular torneio licitatório. Isso porque, além do texto do referido dispositivo exigir que o contrato não possa ser uma parcela de um outro de maior vulto, tem-se que também se integra ao referido dispositivo, mutatis mutandis, as regras contidas nos §§ 1º, 2º e 5º do artigo 23 da Lei 8.666/93, verbis:
Art. 23. (.....).
§ 1o As obras, serviços e compras efetuadas pela Administração serão divididas em tantas parcelas quantas se comprovarem técnica e economicamente viáveis, procedendo-se à licitação com vistas ao melhor aproveitamento dos recursos disponíveis no mercado e à ampliação da competitividade sem perda da economia de escala
§ 2o Na execução de obras e serviços e nas compras de bens, parceladas nos termos do parágrafo anterior, a cada etapa ou conjunto de etapas da obra, serviço ou compra, há de corresponder licitação distinta, preservada a modalidade pertinente para a execução do objeto em licitação.
(....).
§ 5º. É vedada a utilização da modalidade "convite" ou "tomada de preços", conforme o caso, para parcelas de uma mesma obra ou serviço, ou ainda para obras e serviços da mesma natureza e no mesmo local que possam ser realizadas conjunta e concomitantemente, sempre que o somatório de seus valores caracterizar o caso de "tomada de preços" ou "concorrência", respectivamente, nos termos deste artigo, exceto para as parcelas de natureza específica que possam ser executadas por pessoas ou empresas de especialidade diversa daquela do executor da obra ou serviço”.
Mas afinal, como aferir o que venha a ser compra ou serviço que possa ser contratado de uma só vez ou serviço e compra que represente parcela de um outro objeto de maior vulto, de sorte a evitar o fracionamento de despesa?
Nesse sentido, muitos critérios têm sido externalizados, tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência, sobretudo dos tribunais de contas, para se analisar casos de fracionamento ilegal de despesas envolvendo a aplicação do artigo 24, inciso II, da Lei 8.666/93. Há quem fale, por exemplo, que se deva levar em conta a dotação orçamentária do órgão para algumas despesas, de sorte que se a dotação anual for maior que R$8.000,00 (oito mil reais) estaria vedada a dispensa em razão do valor.
Tal critério, por certo, não é um bom conselheiro para o gestor, uma vez que há uma infinidade de objetos/despesas que não contam com uma dotação própria e específica no orçamento[i]. É o caso, por exemplo, da compra de café, açúcar etc, para os quais não é possível pinçar da peça orçamentária uma dotação própria e específica.
Alguns orgãos, de outra parte, utilizam o critério de oito mil reais como um limite para gastos durante o exercício, podendo ser adquiridos qualquer tipo de objeto dentro desse limite durante o exercício, seja objeto do dia a dia, seja objeto cuja aquisição a Administração não adquirire de maneira ordinária.
Outros, porém, analisam a questão conjeturando apenas sobre se a contratação pode ou não ser feita de um só vez, consideradas as suas características físicas, de tal sorte que aquele objeto que não teria mesmo condições de ser contratado juntamente com outros, desde que com custo inferior ao limite dos oito mil reais, poderia ser contratado diretamente por meio da dispensa em razão do valor[ii].
Analisando a jurisprudência do Tribunal de Contas da União – TCU, porém, é possível extrair a ideia de que as questões que gravitam em torno do fracionamento de despesas na aplicação do artigo 24, inciso II, da Lei 8.666/93 estão ligadas a dois pontos principais: planejamento e previsibilidade das contratações durante o exercício, seja compra ou serviço. Com efeito, são esses os comandos extraídos da jurisprudência do TCU a respeito do tema, verbis:
“(....) determinar à Prefeitura Municipal de Araguari/MG que observe rigorosamente as disposições da Lei n.º 8.666/93, coibindo o uso irregular da dispensa de licitação em aquisições de mesma natureza, cujo montante total ultrapasse o limite máximo vigente, tendo em vista o disposto nos art. 23, § 2º, c/c o art. 24, II, da referida Lei”. (AC-1473-15/08 – 1ª Câmara. Sessão: 13/05/08. Classe: Relator: Ministro Guilherme Palmeira - FISCALIZAÇÃO – REPRESENTAÇÃO.)
“2.15. No que se refere à despesa com serviços gráficos, a responsável relacionou, [...], despesas sem licitação que atingem o montante de R$13.736,00, superior ao valor consignado no relatório de auditoria interna que foi de apenas R$9.400,00 [...]. O mesmo ocorre com as despesas com publicações, no período de janeiro a setembro/2002, cujo valor informado pela responsável é de R$ 17.974,40 [...], superior ao consignado pelo Controle Interno (subitem 3.8.1). Logo fica patenteado o descumprimento do art. 24, II, da Lei nº 8.666/1993, que fixa em R$ 8.000,00 o limite de dispensa para compras e outros serviços.
2.16. O argumento esposado pela ex-gestora do Coren/PA, no sentido de que as despesas individuais referentes a cada um dos casos são inferiores ao limite exigido para contratação por meio de licitação não pode prosperar, visto que a despesa pertinente a cada objeto deve ser considerada no seu todo, embora o objeto seja divisível. O parcelamento não pode conduzir à fuga ao procedimento de licitação.
2.17. É pacífico o entendimento desta Corte de Contas (Acórdãos 73/2003 - 2ª Câmara; 66/99 - Plenário) no sentido de que as compras devem ser programadas pelo total para todo o exercício financeiro, observando o princípio da anualidade do orçamento, consoante o estabelecido no art. 8º, caput, da Lei nº 8.666/1993. Na situação sob exame constata-se que não houve planejamento adequado das compras, na forma do inciso II do §7º do art. 15 da Lei nº 8.666/1993, ensejando o fracionamento da despesa, cujo total superou o limite fixado no art. 24, inciso II, do citado diploma legal. (.....)
[ACÓRDÃO]
9.4. determinar ao Coren/PA que:
9.4.1. observe o disposto nos arts. 8º, 15, §7º, inciso II; e 23, §§ 1º a 5º da Lei nº 8.666/1993, programando a despesa pelo total para todo o exercício financeiro, em atenção ao princípio da anualidade do orçamento, evitando fracionamentos ilícitos de despesa;” (Acórdão 3373/2006 – 1ª Câmara, de 21.11.06 Classe: VI - Relator: Ministro Augusto Nardes - FISCALIZAÇÃO – REPRESENTAÇÃO.)
Note-se, pois, que se a contratação de determinados objetos já está (ou deveria estar) no raio de planejamento ordinário das contratações do órgão, suas estimativas de valor para o ano devem ser somadas para o fim de se decidir sobre: a) qual a modalidade de licitação aplicável (convite, tomada de preços ou concorrência[iii]); ou b) se vai haver licitação ou dispensa em razão do valor, na forma do artigo 24, inciso II, da Lei 8.666/93.
Em verdade, esse procedimento de perquirir sobre se a contratação pretendida faz parte (ou deveria fazer) do raio de planejamento ordinário das contratações do órgão ou da entidade funciona como uma baliza bastante segura e razoável para orientar a decisão do gestor no que toca a evitar um possível e ilegal fracionamento de despesas.
Por exemplo: A grande maioria dos órgãos públicos não gasta mais que R$8.000,00 (oito mil reais) com a compra de canetas, lápis, copos plásticos ou café durante o ano. Aliás, há muitos outros objetos cujo montante de gasto durante o ano jamais ultrapassaria a cifra referida.
Então, se fosse considerar individualmente o custo de cada um desses objetos (canetas, lápis, café etc) para fins de decidir entre licitação ou dispensa em razão do valor, certamente que se deixaria de licitar uma quantidade imensa de objetos, situação essa, sabe-se, que não foi querida pelo legislador quando editou o artigo 24, inciso II, da Lei 8.666/93. De outra parte, considerar apenas o limite de gasto de oito mil reais durante o ano também não parece tecnicamente adequado.
Isso significa, pois, que empreender investigação sobre se o objeto é um daqueles cuja contratação o órgão público poderia ter planejado e previsto antecipadamente ajuda, e muito, a lançar luzes para o gestor entender adequadamente as questões que gravitam em torno do chamado “fracionamento ilegal de despesas” nas contratações diretas fundadas no permissivo do artigo 24, inciso II, da Lei 8.666/93.
De tal sorte que se a despesa for uma daquelas em que a Administração possa fazer um planejamento para a sua realização, ainda que sua estimativa de valor seja inferior a R$8.000,00 não será possível que a contratação se dê com base no artigo 24, II, da Lei 8.666/93, já que todas as demais despesas ordinárias e de manutenção do órgão deverão ser somadas para o fim de preenchimento do requisito.
Ao revés, se se tratar de uma despesa cujo planejamento ordinário não possa mesmo ser realizado pela Administração, aí sim poderia a Administração, desde que o valor fique abaixo da alçada de R$8.000,00 e que não seja a hipótese de emergência (onde a contratação deveria ser firmada com base no artigo 24, IV, da Lei 8.666/93), contratar com base no artigo 24, inciso II, da Lei 8.666/93.
III – Conclusão
Conforme explicitado acima, vários critérios têm sido propostos com vistas a interpretar o artigo 24, inciso II, da Lei 8.666/93 no sentido de não incidir no chamado fracionamento ilegal de despesa. O critério mais adequado e seguro, porém, é investigar se a contratação pretendida faz parte (ou deveria fazer) do raio de planejamento ordinário das contratações do órgão ou da entidade. Se a despesa fizer parte (ou devesse fazer parte) desse raio de planejamento ordinário, ela deve ser somada com as outras despesas de manutenção do órgão ou da entidade com vistas a permitir a decisão sobre se encaixa ou não na alçada de oito mil reais.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8666cons.htm>. Acesso em 12 de dezembro de 2014.
BRASI. Tribunal de Contas da União – TCU. Informativos de jurisprudência de licitações e contratos nºs 24 e 26. Disponível em: http://portal2.tcu.gov.br/portal/page/portal/TCU/jurisprudencia/informativos/info_licitacoes>. Acesso em 12 de dezembro de 2014.
____. Acórdão nº 1.473/2008 – Primeira Câmara. Disponível em: < https://contas.tcu.gov.br/juris/Web/Juris/ConsultarTextual2/Jurisprudencia.faces?numeroAcordao=1473&anoAcordao=2008 >. Acesso em 12 de dezembro de 2014.
____. Acórdão nº 3373/2006 – Primeira Câmara. Disponível em: < https://contas.tcu.gov.br/juris/Web/Juris/ConsultarTextual2/Jurisprudencia.faces?numeroAcordao=3373&anoAcordao=2006 >. Acesso em 12 de dezembro de 2014.
FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Contração Direta Sem Licitação. Belo Horizonte: Fórum, 7ª edição, 2008.
[i] Ver, a propósito, o contido nos INFORMATIVOS Nºs 24 e 26 DO TCU.
[ii] Jorge Ulisses Jacoby Fernandes, in Contratação Direta Sem Licitação, Editora Fórum, 7ª edição, 2008, pág. 318.
[iii] Isso caso não se esteja diante de bens e serviços comuns, uma vez que para esses objetos será sempre necessária a utilização da modalidade pregão, preferencialmente o pregão eletrônico.
Procuradora Federal da Advocacia Geral da União. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Pós Graduada em Direito Penal e Processo Penal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARROS, Fabiana Martinelli Santana de. A dispensa de licitação em razão do valor prevista no artigo 24, inciso II, da Lei 8.666/93 e os critérios mais apropriados para se evitar o chamado fracionamento ilegal de despesas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42439/a-dispensa-de-licitacao-em-razao-do-valor-prevista-no-artigo-24-inciso-ii-da-lei-8-666-93-e-os-criterios-mais-apropriados-para-se-evitar-o-chamado-fracionamento-ilegal-de-despesas. Acesso em: 23 dez 2024.
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