SUMÁRIO: I.INTRODUÇÃO II. DA LICENÇA POR MOTIVO DE AFASTAMENTO DE CÔNJUGE III. DO AFASTAMENTO PARA PARTICIPAÇÃO EM PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO STRICTO SENSU IV. POSSIBILIDADE DE LICENÇA POR MOTIVO DE AFASTAMENTO DO CÔNJUGE ENQUANTO NÃO CUMPRIDO O PERÍODO DE PERMANÊNCIA OBRIGATÓRIO PREVISTO NO ART.96-A DA LEI 8112/90 V. CONLUSÃO VI. BIBLIOGRAFIA.
I.INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por escopo suscitar algumas reflexões acerca do tratamento jurídico conferido à licença por motivo de afastamento do cônjuge.
Oportunamente serão sintetizadas as hipóteses de incidência previstas no Estatuto dos Servidores Públicos da União, seu conteúdo, requisitos e alcance segundo a doutrina e a jurisprudência.
Em sequência, serão tecidas breves considerações sobre a previsão legal de afastamento do servidor para participação em programas de pós graduação stricto sensu, enfatizando, especialmente, os limites da exigência de permanência obrigatória contida no art.96-A da lei 8.112/90.
Nesse momento será conferida especial atenção a um possível conflito entre direitos/interesses contidos no Estatuto dos Servidores Federais: art.84 x art.96-A.
Ressalte-se que a colisão entre direitos/interesses é frequentemente encontrada no ordenamento jurídico, frutoda conjugação de valores antagônicosigualmente contemplados dentro de um ambiente democrático.
II.DA LICENÇA POR MOTIVO DE AFASTAMENTO DE CÔNJUGE
O tratamento legal conferido à licença por motivo de afastamento do cônjuge encontra-se no Título III (Dos Direitos e Vantagens do Servidor), capítulo IV, Seção III da Lei nº 8.112/90 (Estatuto dos Servidores Públicos Civis da União). Confira-se referida normatização:
Art. 84. Poderá ser concedida licença ao servidor para acompanhar cônjuge ou companheiro que foi deslocado para outro ponto do território nacional, para o exterior ou para o exercício de mandato eletivo dos Poderes Executivo e Legislativo.
§ 1o A licença será por prazo indeterminado e sem remuneração.
§ 2o No deslocamento de servidor cujo cônjuge ou companheiro também seja servidor público, civil ou militar, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, poderá haver exercício provisório em órgão ou entidade da Administração Federal direta, autárquica ou fundacional, desde que para o exercício de atividade compatível com o seu cargo. (Redação dada pela Lei nº 9.527, de 10.12.97)
Uma leitura atenta do dispositivo supracitado é deveras elucidativa.
Fica claro que, a partir de uma ponderação de interesses, a finalidade da norma foi atender ao comando constitucional de tutela da unidade familiar, razão pela qual, qualquer interpretação desse dispositivo não pode se afastar desse escopo constitucional. Da finalidade indicada se denota pouco ou nenhum poder para a Administração. O legislador, quando quis empregar poder discricionário nesse Título, foi expresso.
Da análise do citado dispositivo, extraem-se duas hipóteses legais de concessão de licença por motivo de afastamento do cônjuge.
A primeira, prevista no caput e §1 do dispositivo, licença de servidor para acompanhar cônjuge ou companheiro não servidor deslocado para outro ponto do território nacional ou para o exterior. Essa hipótese é caracterizada pela indeterminação do prazo e pela ausência de remuneração.
Nesse caso, o entendimento doutrinário e jurisprudencial revela tratar-se de ato vinculado, é dizer, desde que preenchidos os requisitos legais, tal licença deve ser concedida pela Administração, não obstante o legislador tenha se utilizado da expressão “poderá” no artigo 84.
Assim, para concessão da licença por motivo de afastamento do cônjuge não servidor bastam os seguintes requisitos legais: a) comprovação da relação familiar, consubstanciada no vínculo matrimonial ou na união estável; e b) o deslocamento do cônjuge ou companheiro para outro ponto do território nacional ou para o exterior.
Ao que parece, nessa primeira hipótese, a legislação não condicionou a concessão da licença a considerações sobre a causa do deslocamento do cônjuge ou companheiro do servidor, nem exigiu que esse deslocamento fosse por prazo definido.
A segunda hipótese legal, prevista no §2 do artigo 84, cuida da licença do servidor quando seu cônjuge ou companheiro, também servidor público, for deslocado no interesse da Administração. Há possibilidade de exercício provisório do servidor em órgão ou entidade da Administração Federal direta, autárquica ou fundacional. A razão de ser da provisoriedade, anote-se, é evitar a ocorrência de abusos, imoralidade ou desonestidades. Pontue-se, por oportuno, que provisoriedade não significa retorno do servidor à lotação de origem nem muito menos em curto espaço de tempo. Mesmo assim, em tese, a situação funcional dele no novo órgão ou entidade é circunstancial.
Cumpre atentar que o exercício provisório cessará caso sobrevenha desconstituição da entidade familiar cuja unidade se pretendeassegurar ou caso surja hipótese de novo deslocamento do cônjuge, haja vista que em tais ocorrênciasdeixará de existir a razão que justificou a concessão do exercício provisório.
Apesar da divergência existente em alguns Tribunais Regionais Federais, consoante entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça (Resp 422437/MG, Min. Relator Gilson Dipp, DJ 04.04.2005 e Resp 287867/PE Relator Ministro Jorge Scartezzini, DJ 13.03.2003), o exercício provisório para acompanhamento de cônjuge servidor tem natureza vinculada, desde que o deslocamento do cônjuge servidor se dê: a) para outro ponto do território nacional, para o exterior ou para o exercício de mandato eletivo dos Poderes Executivo e Legislativo; b) com exercício de atividade compatível com a do órgão de origem; c) atento ao caráter transitório, efêmero, passageiro da situação.
Assim, tanto na primeira quanto na segunda hipótese, o conflito de intenções constitucionais reclamou do legislador a aplicação da técnica da ponderação de interesses, prevalecendo, nesse caso específico, a tutela constitucional da família, afastando-se, momentaneamente, o interesse público em manter o servidor público em sua lotação de origem.
III. DO AFASTAMENTO PARA PARTICIPAÇÃO EM PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO STRICTO SENSU
Esclarecido alguns pontos sobre a licença para acompanhamento de cônjuge, convém registrar o tratamento conferido pela Lei nº 8.112/1990 ao afastamento para participação em programa de Pós Graduação Stricto Senso no país:
Art. 96-A. O servidor poderá, no interesse da Administração, e desde que a participação não possa ocorrer simultaneamente com o exercício do cargo ou mediante compensação de horário, afastar-se do exercício do cargo efetivo, com a respectiva remuneração, para participar em programa de pós-graduação stricto sensu em instituição de ensino superior no País.
§ 1o Ato do dirigente máximo do órgão ou entidade definirá, em conformidade
com a legislação vigente, os programas de capacitação e os critérios para participação em programas de pós-graduação no País, com ou sem afastamento do servidor, que serão avaliados por um comitê constituído para este fim.
§ 2o Os afastamentos para realização de programas de mestrado e doutorado
somente serão concedidos aos servidores titulares de cargos efetivos no respectivo órgão ou entidade há pelo menos 3 (três) anos para mestrado e 4 (quatro) anos para doutorado, incluído o período de estágio probatório, que não tenham se afastado por licença para tratar de assuntos particulares para gozo de licença capacitação ou com fundamento neste artigo nos 2 (dois) anos anteriores à data da solicitação de afastamento.
§ 3o Os afastamentos para realização de programas de pós-doutorado somente serão concedidos aos servidores titulares de cargos efetivo no respectivo órgão ou entidade há pelo menos quatro anos, incluído o período de estágio probatório, e que não tenham se afastado por licença para tratar de assuntos particulares ou com fundamento neste artigo, nos quatro anos anteriores à data da solicitação de afastamento. (Redaçãodada pela Lei nº 12.269, de 2010)
§ 4o Os servidores beneficiados pelos afastamentos previstos nos §§ 1o, 2o e 3º deste artigo terão que permanecer no exercício de suas funções após o seu retorno por um período igual ao do afastamento concedido.
§ 5o Caso o servidor venha a solicitar exoneração do cargo ou aposentadoria, antes de cumprido o período de permanência previsto no § 4o deste artigo, deverá ressarcir o órgão ou entidade, na forma do art. 47 da Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990, dos gastos com seu aperfeiçoamento.
§ 6o Caso o servidor não obtenha o título ou grau que justificou seu afastamento no período previsto, aplica-se o disposto no § 5o deste artigo, salvo na hipótese comprovada de força maior ou de caso fortuito, a critério do dirigente máximo do órgão ou entidade.
§ 7o Aplica-se à participação em programa de pós-graduação no Exterior, autorizado nos termos do art. 95 desta Lei, o disposto nos §§ 1o a 6o deste artigo.
Da leitura dos dispositivos acima, a contrario sensu, percebe-se que apenas nos casos de solicitação de exoneração ou aposentadoria antes de cumprido o período de permanência obrigatório, é que o servidor estará obrigado a ressarcir o órgão ou entidade pelos gastos com o seu aperfeiçoamento.
Desse modo, não se poderia admitir, mesmo hipoteticamente, a possibilidade de o servidor ressarcir o erário pelas despesas do curso de pós-graduação a fim de eximir-se da citada exigência de permanência no órgão de origem.
Com efeito, o intérprete não pode ampliar o sentido da regra para abranger situações não previstas expressamente no texto normativo. Do contrário, ter-se-ia violação ao princípio da legalidade administrativa, segundo o qual a atividade do agente público sempre deve estar pautada nos estritos limites legais.
IV. POSSIBILIDADE DE LICENÇA POR MOTIVO DE AFASTAMENTO DO CÔNJUGE ENQUANTO NÃO CUMPRIDO O PERÍODO DE PERMANÊNCIA OBRIGATÓRIO PREVISTO NO ART.96-A DA LEI 8112/90
Em casos que tais, o deslinde está diretamente atrelado à escolha que o intérprete fará quanto à regra que deve prevalecer. Tem-se, aqui, o entrechoque do parágrafo quarto do artigo 96-A com o caput e parágrafo primeiro do artigo 84, ambos da Lei n. 8.112/90.
Decerto,a escolha do momento em que deva ser cumprida a exigência do parágrafo quarto do artigo 96-A é que determinará, na prática, a regra prevalente. Afinal, se a exigência de permanência no exercício da função por prazo igual ao do afastamento concedido puder ser cumprida após o retorno (eventual) da licença para acompanhar cônjuge não servidor; prevalece a regra que trata da licença. Se, por outro lado, a licença só puder ser concedida após cumprido prazo de permanência da referida exigência; prevalece a regra que cuida da permanência.
Entrementes, nesse caso, situação bastante interessante sobressai. Embora o conflito se dê entre regras, e não entre princípios, a técnica do “tudo ou nada” não terá muita utilidade aqui. Segundo tal técnica, havendo conflito de regras, uma necessariamente prevalecerá sobre a outra, prejudicando-lhe a incidência. Desenvolve-se, ademais, pelos critérios clássicos de resolução de antinomias jurídicas: hierárquico, temporal e da especialidade. Entretanto, quaisquer desses critérios não servem à presente hipótese. Afinal, os dispositivos em comento estão no mesmo texto normativo (o que obsta a utilização do critério hierárquico e do critério temporal) inclusive no mesmo Título III – Dos Direitos e Vantagens (o que, por sua vez, obsta a utilização do critério da especialidade).
Diante desse quadro, resta ao intérprete proceder à abstração normativa das regras em conflito, de sorte a encontrar o(s) princípio(s) e/ou interesse(s) que embasara(m) axiologicamente suas edições.
O conflito entre direitos/interesses é algo recorrente, motivado pela conjugação de diversos valores muitas vezes antagônicos num mesmo texto normativo. Com a hipótese aqui tratada não é diferente.
Ciente da colisão, o aplicador do Direito, num primeiro momento, deve tentar conciliar os interesses em conflito, garantindo-lhes a máxima efetividade. Trata-se da “concordância prática”, moderna técnica de interpretação.
Somente se isso não for possível, é que o aplicador do Direito, momentaneamente, considerando as razões do caso concreto, afastará a aplicação de um interesse ou valor em benefício de outro. Tem-se, agora, a técnica da “dimensão de peso”, privilegiando-se sempre o interesse que apresente maior peso no ordenamento jurídico.
No caso em liça, de um lado, tem-se o interesse particular do servidor na tutela de sua unidade familiar, tanto que a licença é por tempo indeterminado e independe de remuneração. Em contraponto, tem-se o interesse público de manter tal servidor no quadro de pessoal de seu órgão de origem por período legal mínimo suficiente a converter em proveito do próprio órgão concessor vantagem da capacitação profissional permitida ao servidor.
Assim, frente ao evidente antagonismo entre as normas, não é possível aplicar a técnica da “concordância prática”. Contudo, a técnica da “dimensão de peso” adequa-se perfeitamente à espécie. É dizer: ante a impossibilidade de conciliar os dispositivos, deve prevalecer a regra esculpida no parágrafo quarto do artigo 96-A da Lei n. 8.112/90, já que melhor atende ao interesse público, o qual ostenta supremacia em relação ao interesse privado.
Com razão, não se pode adotar linha interpretativa que esvazie a preocupação com o erário (§ 4º do art. 96-A), sob pena de compactuar com abusos e onerar sobremaneira o órgão ou entidade que permitiu o afastamento de servidor para participação em Programa de Pós Graduação Stricto Sensu.
Destarte, admitida a possibilidade de licença para acompanhamento do cônjuge não servidor público antes de cumprida a exigência de permanência no órgão de origem; pode transcorrer grande lapso temporal entre a concessão da mencionada licença e o retorno do servidor para as suas funções, o que, diante da provável desatualização ou inutilidade do curso de capacitação, traduzir-se-ia em irreparável prejuízo ao Poder Público.
Nesse momento, importa indagar: quais são os sujeitos da relação jurídica decorrente do Regime Jurídico Estatutário?
Ora, a relação jurídica envolve a Administração e o servidor.Dentro dessa relação jurídica subsistem direitos e deveres correspectivos. É dizer, ao direito ao afastamento para participação em programa de Pós Graduação corresponde o dever do servidor de permanecer no órgão durante o mesmo prazo da capacitação. Essa situação jurídica é prejudicial à análise de qualquer outra surgida posteriormente entre o servidor e a Administração, no caso, pedido de licença para acompanhamento do cônjuge não servidor.
Importante ressaltar que não se trata de negativa de proteção constitucional à unidade familiar, especialmente, nos casos em que o deslocamento do cônjuge ou companheiro não servidor ocorresse por ato involuntário. Todavia, deve-se separar as relações jurídicas:a Administração Pública entretém relação jurídica com o servidor, e não com seu cônjuge, não podendo a prevalência do interesse público ser condicionada por aspectos aleatórios e tangenciais à atividade administrativa.
Pontue-se, em adendo, que, a ausência de remuneração, ao invés de se revelar apenas como um ônus para o servidor; em boa verdade, revela prejuízo irreparável para o órgão de origem que tenha que suportar repentinamente redução de seu quadro de pessoal especializado.
V.CONCLUSÃO
A Constituição Federal de 1988 tratou com grande detalhamento os temas afetos ao direito administrativo. Essa atenção não foi aleatória, ao revés, teve por escopo mitigar as distorções encontradas em um histórico de desmandos, paternalismo e pessoalidade no trato da coisa publica.
Nessa linha de entendimento, destaca-se, no presente trabalho, o exame do conteúdo e dos limites de alguns direitos dos servidores públicos contemplados na Lei 8.112/90, especialmente quando caracterizada a colisão de interesses. Em casos que tais, o intérprete deve lançar mão dos modernos métodos de solução de conflitos, mantendo como norte interpretativo o princípio da supremacia do interesse público.
Por certo, não se pretende oferecer uma solução definitiva à hipótese lançada, mas contribuir com algumas ideias, que se úteis à formação de um olhar crítico, terá desempenhado seu mister.
VI.BIBLIOGRAFIA
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Elementos de direito administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986.
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 2003.
CANOTILHO, J. J. Gomes. DireitoConstitucional e Teoria da Constituição. - 5 ed. -Portugal: LivrariaAlmedina, 2002.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2007
GALINDO, Bruno. DireitosFundamentais: Análise de suaConcretizaçãoConstitucional. Curitiba: JuruáEditora, 2003.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro.18.ed. São Paulo: Malheiros, 1993.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2007.
PROCURADORA FEDERAL. ESPECIALISTA EM DIREITO CONSTITUCIONAL PELA UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA. ESPECIALISTA EM CI ÊNCIAS PENAIS PELA UNISUL<br>CURSANDO LLM EM DIREITO EMPRESARIAL. <br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MACHADO, Ivja Neves Rabelo. Tratamento jurídico da licença por motivo de afastamento do cônjuge: supremacia do interesse público x proteção à unidade familiar? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 dez 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42445/tratamento-juridico-da-licenca-por-motivo-de-afastamento-do-conjuge-supremacia-do-interesse-publico-x-protecao-a-unidade-familiar. Acesso em: 23 dez 2024.
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