RESUMO: O presente artigo se propõe a analisar a desapropriação de imóveis rurais para fins de reforma agrária em decorrência de infrações à legislação ambiental e trabalhista a partir do caso concreto da Usina Cambahyba, localizada em Campos dos Goytacazes/RJ.
INTRODUÇÃO
A Usina Cambahyba, localizada em Campos dos Goytacazes, Norte Fluminense, ganhou notoriedade nos últimos anos a partir do lançamento do livro Memórias de uma guerra suja (Topbooks, 2012), no qual um ex delegado do DOPS narra com detalhes como a referida usina teria sido usada para incinerar corpos de militantes políticos presos, torturados e mortos pela Ditadura Civil-Militar de 1964. Independente da veracidade ou não do mencionado relato, o qual ainda pende de investigação pelo Ministério Público Federal, o Poder Público vem tentando desapropriar os mais de 1.300 hectares de terra improdutiva da Usina Cambahyba para fins de reforma agrária desde 1998.
Em meio a disputas judiciais variadas que já duram 16 anos, merece destaque a análise da ação de desapropriação proposta pelo INCRA em face da Usina Cambahyba em 2013 (processo nº 0000221-51.2013.4.02.5103, em curso na 1ª Vara Federal de Campos dos Goytacazes/RJ), não tanto pelas características da exproprianda, mas por ter sido esta a primeira ação de desapropriação para fins de reforma agrária proposta no Estado do Rio de Janeiro com fundamento no descumprimento da função social do imóvel rural nas suas quatro dimensões: produtividade, respeito ao meio ambiente, cumprimento da legislação trabalhista e de bem estar de proprietários e trabalhadores.
Sendo assim, este artigo se propõe a analisar o caso concreto da Usina Cambahyba como paradigma da imposição constitucional de cumprimento da função social pelo imóvel rural em todas as suas dimensões, especialmente a ambiental e a trabalhista.
A DESAPROPRIAÇÃO DE IMOVEL RURAL PARA FINS DE REFORMA AGRÁRIA PELO DESCUMPRIMENTO DA FUNÇÃO SOCIAL NAS DIMENSÕES AMBIENTAL E TRABALHISTA
Primeiramente, cumpre esclarecer que o direito de propriedade com assento constitucional no artigo 5º, XXII na Carta de 1988 não se constitui em direito absoluto; mas é antes condicionado ao cumprimento da função social (artigo 5º, XXIII da CF). No mesmo sentido, o artigo 170, III da CF e o artigo 1.228 e parágrafos do Código Civil subordinam o direito de propriedade ao cumprimento da função social. De fato, como reconheceu o Supremo Tribunal Federal na ADI nº 2.213, pesa sobre a propriedade grave hipoteca social, impondo-se-lhe o cumprimento da função social.
No caso da propriedade rural passível de desapropriação para fins de reforma agrária – a grande em qualquer hipótese e a pequena e a média em caso de o proprietário possuir mais de um imóvel – o cumprimento da função social será aferido mediante o cumprimento simultâneo dos requisitos previstos no art. 186 da CF:
Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I - aproveitamento racional e adequado;
II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Sendo assim, ao direito de propriedade sobre o imóvel rural corresponde um dever de torná-lo economicamente produtivo, sem que tal produtividade implique em danos ao meio ambiente, às relações trabalhistas e, ainda, ao bem estar de proprietários e trabalhadores.
Não é dispensável lembrar que os dispositivos constitucionais que tratam da Reforma Agrária devem ser interpretados em conjunto e não isoladamente. Isto porque, como nos ensina Eros Roberto Grau, a Constituição é uma unidade e não pode ser interpretada em tiras, aos pedaços [1], de maneira que a propriedade produtiva imunizada pelo artigo 185, II da Constituição Federal é aquela que necessariamente cumpre a função social nas dimensões ambiental, trabalhista e de bem estar. Com efeito, a lição de Joaquim Modesto Pinto Junior e Valdez Adriani de Farias nos esclarece que o imóvel produtivo só pode ser considerado como tal se o proveito econômico é extraído da terra mediante usos racionais e adequados ao meio ambiente, à legislação trabalhista e ao bem estar de proprietários e trabalhadores.[2] Assim, a propriedade que retira da terra proveito econômico sem a observância das condicionantes ambiental, trabalhista e de bem estar, ainda que produza frutos, não é considerada pelo ordenamento jurídico pátrio como propriedade produtiva, por lhe faltar a racionalidade e a adequação à exploração econômica do imóvel.
Entendimento diverso conduziria ao absurdo de se proteger a propriedade que gera frutos à custa de danos ambientais e/ou trabalhistas, o que, evidentemente, não se coaduna com a finalidade das normas constitucionais que condicionam o exercício da propriedade sobre o imóvel rural (artigos 170 e 184 a 186 da CF).
Malgrado a existência de lastro constitucional para a desapropriação para fins de reforma agrária de imóveis rurais que descumprem qualquer das dimensões da função social, ainda são raros os casos de desapropriação de imóveis rurais por causas diversas do não atingimento dos índices economicistas de produtividade (grau de utilização da terra e grau de eficiência na exploração). Vale dizer, apesar de previsão constitucional, ainda são pouco frequentes as desapropriações de imóveis rurais que atinjam os índices mínimos de produtividade mas que degradem o meio ambiente e/ou não respeitem a legislação trabalhista. Sendo assim, selecionamos o caso da Usina Cambahyba por reunir, ao mesmo tempo, o descumprimento da função social nas quatro dimensões, além de ter sido o pioneiro do gênero no Estado do Rio de Janeiro.
Feitos estes esclarecimentos, passaremos à analise pormenorizada do caso concreto em questão com relação ao descumprimento da função social da propriedade rural nas dimensões ambiental, trabalhista e de bem estar.
DO DESCUMPRIMENTO DA FUNÇÃO SOCIAL AMBIENTAL
O imóvel rural de propriedade da Usina Cambahyba ora em análise teve sua improdutividade constatada em 1998 pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária e em 2012 pela Justiça Federal. Em ambas as ocasiões o Poder Público constatara que o mencionado imóvel rural não possuía área de reserva legal e tampouco mantinha conservadas as Áreas de Preservação Permanente (APP).
Além disso, o Poder Público identificou despejos irregulares de vinhaça e água de lavagem de cana no rio Paraíba do Sul. Somem-se a isso a extração de argila sem licenciamento ambiental e as frequentes queimadas de cana para a colheita, denotando descumprimento da função social nas dimensões ambiental e de bem estar por parte da proprietária e de seus eventuais arrendatários.
De fato, a prática da queima de cana de açúcar no Norte Fluminense para facilitação de sua colheita tem sido capaz de causar danos ambientais dos mais variados. Como efeitos mais difusos, em épocas de colheita de cana partes da região Norte Fluminense ficam com o ar carregado de fumaça e partículas de fuligem que podem causar problemas respiratórios a quem as inala, especialmente os trabalhadores rurais que laboram ou habitam em áreas próximas das zonas de queimada.
Além disso, a monocultura da cana e a constante queima da mesma vêm, ao longo das últimas décadas, degradando o solo em toda a Baixada Campista (Norte Fluminense), o que pode explicar a vertiginosa queda de produtividade da cana de açúcar na região. Por fim, as queimadas têm contribuído para erosões do solo e para o assoreamento do principal rio do estado, o Rio Paraíba do Sul.
Apesar de parte do imóvel expropriando ter sido, ao longo de vários anos, arrendado a outras usinas, uma vez que a Usina Cambahyba encerrou suas atividades industriais em meados da década de 1990, defendeu o Poder Público expropriante que a responsabilidade pelo dano ambiental causado no imóvel rural expropriando é objetiva e propter rem, de forma a responsabilizar a usina proprietária pelos danos ambientais ocorridos em seu imóvel.
Atentos aos objetivos da Constituição Federal de 1988, os tribunais têm começado a se posicionar favoravelmente à desapropriação por descumprimento da função social ambiental, inclusive com a responsabilização do proprietário pelos danos causados por eventuais arrendatários:
“No caso dos autos, o procedimento administrativo tendente à expropriação do imóvel teve origem na degradação do meio ambiente constatada, vindo a caracterizar ilícito ambiental e, por conseguinte, descumprimento, em tese, de um dos elementos da função social da propriedade. (…)
Por conseguinte, verificada a ocorrência de dano ambiental de grande monta, não parece crível que o imóvel esteja atendendo à sua função social. Pelo contrário o uso inadequado dos recursos naturais e a ausência de preservação do meio ambiente atentam contra a função social da propriedade. Igualmente, deve ser rejeitada a alegação da parte autora de que não concorreu para a prática do dano constatado, pois a responsabilidade pelo dano ambiental é objetiva e propter rem.” (TRF4, APELAÇÃO CÍVEL N°2007.72.11.001000-1/SC, RELATORA DES. FEDERAL MARGA INGE BARTH TESSLER)
Sendo assim, o caso da Usina Cambahyba é emblemático para toda a economia canavieira do Norte Fluminense, demonstrando que se a preocupação ambiental tivesse despertado a atenção do Poder Público e de proprietários há mais tempo, talvez os danos ambientais e o próprio esgotamento do solo na Baixada Campista pudessem ter sido evitados. Com efeito, a condicionante ambiental da função social visa tutelar o ambiente como um todo mas também visa à preservação do potencial produtivo do imóvel rural contra uma exploração irracional do mesmo. Isto porque a terra é um bem limitado e essencial à sobrevivência humana, motivo pelo qual sua exploração irracional que tenha como fim apenas a lucratividade imediata deve ser coibida pelo Poder Público.
Uma das condicionantes da função social – a produtividade – deve ser alcançada mantendo-se o equilíbrio ecológico, pois a produtividade não pode ser compreendida e absorvida sem a atenção que merece a proteção ao meio ambiente. Vale dizer, a propriedade produtiva não deve degradar o meio ambiente em nome da produção.[3]
Pelos motivos acima expostos é que o Poder Público, por meio do INCRA, tem pleiteado a desapropriação das terras da Usina Cambahyba para fins de reforma agrária como sanção ao descumprimento da função social também no aspecto ambiental.
DESCUMPRIMENTO DA FUNÇÃO SOCIAL NOS ASPECTOS TRABALHISTA E DE BEM ESTAR
Assim como a percepção de frutos e ganhos econômicos com o imóvel rural não se mostra lícita se não houver respeito ao meio ambiente, a condição de produtividade e de cumprimento da função social pelo imóvel rural subordina-se à observância da legislação trabalhista e ao bem estar de proprietários e trabalhadores.
O Norte Fluminense possui um histórico de exploração da atividade econômica sucroalcooleira conjugada à precarização e/ou degradação das relações laborais. Neste contexto o Poder Público, por meio do Ministério do Trabalho e Emprego e do Ministério Público do Trabalho, vem constatando, há décadas, o desrespeito à legislação trabalhista por parte da Usina Cambahyba.
Entre as diversas constatações de descumprimento à legislação trabalhista efetuadas ao longo das últimas décadas merecem destaque a utilização de mão-de-obra de menores, a exploração de trabalho análogo ao escravo e/ou degradante e a acumulação de débitos de natureza trabalhista.
Como já relatado, a queima da cana de açúcar como preparo para o corte ainda é largamente utilizada na Região Norte Fluminense. Além dos danos ambientais que acarreta, a queima da cana submete os trabalhadores à inalação e ao contato com a fuligem, além da exposição a cobras, escorpiões e aranhas que afloram com maior intensidade para fugir do fogo. Tal fato constitui-se em descumprimento da função social da propriedade não só na dimensão ambiental como também nas dimensões trabalhista e de bem estar.
Além disso, constatou-se também que os cortadores de cana faziam as refeições no próprio canavial, valendo-se do farnel que traziam de casa ou do abrigo. Era também no canavial que os trabalhadores satisfaziam suas necessidades fisiológicas.
A ausência de registro em CTPS se fez constante em vários canaviais inspecionados pelo Poder Público, entre eles os da Usina Cambahyba, onde foi constatada jornada de trabalho com início às 6h e término às 16h durante a semana e das 6h às 13h aos sábados.
Por fim, vale ressaltar que em 1999 uma inspeção realizada nas áreas utilizadas pelas arrendatárias da Usina Cambahyba apreendeu diversos documentos assinados em branco, tais como: contratos de trabalho por prazo determinado, autorizações para desconto sobre os salários a título de seguro de vida e pedidos de demissão.
Por todos os motivos acima elencados, o Poder Público, por meio do INCRA, tem pleiteado a desapropriação das terras da Usina Cambahyba para fins de reforma agrária como sanção ao descumprimento da função social também nos aspectos trabalhista e de bem estar. Assim como a propriedade que não utiliza racionalmente os recursos naturais não pode ser considerada produtiva, do mesmo modo o imóvel rural que rende frutos e lucro à custa da superexploração degradante e precarizante do trabalho humano não pode ser classificado como produtivo, por faltar racionalidade e adequação à exploração da terra.
Portanto, a desapropriação-sanção de imóveis rurais onde o Poder Público constata a precarização ou a degradação das relações trabalhistas, desapropriação esta que ainda se dá mediante indenização em valor de mercado, é medida que visa reafirmar o caráter fundamental e inalienável do rol dos Direitos Sociais insculpidos no artigo 7º da Constituição Federal, direitos estes que não podem ser suprimidos, muito menos por interesses econômicos de um setor que ainda reluta em reconhecer os direitos de sua força de trabalho.
CONCLUSÃO
No presente trabalho fizemos um breve estudo de caso da ação de desapropriação da Usina Cambahyba tendo como base a imposição constitucional de cumprimento da função social da propriedade nas dimensões ambiental, trabalhista e de bem estar, ainda que o imóvel atinja os índices economicistas de produtividade. Com isso demonstramos a necessidade de cumprimento, por parte de todos os órgãos estatais, das normas constitucionais que limitam o direito de propriedade ao cumprimento de sua função social.
A ação de desapropriação que analisamos tramita na 1ª Vara Federal de Campos dos Goytacazes desde 2013 e não tem qualquer previsão de julgamento. Isto porque esta ação se encontra suspensa até que o Tribunal Regional Federal da 2ª Região confirme ou reforme sentença de primeiro grau proferida em ação ordinária que, após 14 anos de lide, declarou a improdutividade do imóvel rural em questão.
REFERÊNCIAS
- Grau, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988: São Paulo, RT, 1990
- Pinto Júnior, Joaquim Modesto , Farias, Valdez Adriani. Função social da propriedade: dimensões ambiental e trabalhista. - Brasília: Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2005,
[1] - Grau, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988: São Paulo, RT, 1990, p. 181
[2] - Pinto Júnior, Joaquim Modesto , Farias, Valdez Adriani. Função social da propriedade: dimensões ambiental e trabalhista. - Brasília: Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2005, p.15
[3] - Pinto Júnior, Joaquim Modesto , Farias, Valdez Adriani. Função social da propriedade: dimensões ambiental e trabalhista. - Brasília: Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2005, p.20
Procurador Federal .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GONDIM, Carlos Henrique Naegeli. A desapropriação de imóvel rural para fins de reforma agrária pelo descumprimento da função social da propriedade nas condicionantes ambiental e trabalhista: o caso da Usina Cambahyba Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42450/a-desapropriacao-de-imovel-rural-para-fins-de-reforma-agraria-pelo-descumprimento-da-funcao-social-da-propriedade-nas-condicionantes-ambiental-e-trabalhista-o-caso-da-usina-cambahyba. Acesso em: 23 dez 2024.
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