1) INTRODUÇÃO:
As políticas públicas levadas a efeito pelo Poder Executivo devem ser instrumentos de concretização dos princípios e normas albergados pela Carta Magna.
A políticas públicas relacionadas à educação assumem nesse contexto um papel de grande destaque, já que a educação tem o papel de influenciar na formação do ser humano em desenvolvimento, além de buscar garantir o seu pleno desenvolvimento, o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho, promovendo-se, destarte, a devida inclusão social do indivíduo no seio da sociedade.
Nessa perspectiva, o estudo das políticas públicas devem ser analisadas sob a perspectiva de máxima concretização do acesso ao ensino a todos os indivíduos que se encontram em situações idênticas.
O intérprete, então, ao descortinar a norma jurídica presente na regra jurídica posta deve ter como premissa a necessidade de unidade do sistema, de maneira que não haja incongruência entre as políticas públicas implementadas e as disposições constitucionais e legais objeto de modificações posteriores que visem uma ampliação do acesso à educação.
2) HISTÓRICOACERCA DO ENSINO OBRIGATÓRIO:
Analisando o histórico legislativo que envolve a questão da educação no Brasil, constata-se que há um interesse crescente de aumentar o número de anos do ensino obrigatório.
Com efeito, a Lei nº 4.024/61 estabelecia um período de ensino obrigatório de quatro anos, já pelo Acordo de Punta Del Este e Santiago, o governo brasileiro assumiu a obrigação de estabelecer a duração de seis anos de ensino primário para todos os brasileiros, prevendo cumpri-la até 1970. Em 1971, a Lei 5.692 estendeu a obrigatoriedade para oito anos.
Em 1988 foi promulgada a novel Constituição Federal, prevendo o Poder Constituinte Originário no art. 208, incisos I e II, que, in verbis:
“Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:
I - ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiveram acesso na idade própria;
II - progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensino médio;
(...)”
Em 20 de dezembro de 1996, com o escopo de regulamentar o art. 208, CF/88, ingressou no ordenamento jurídico a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, trazendo em seu bojo, dentre outros aspectos, os princípios e fins da educação nacional.
Cumpre destacar, por demais oportuno, que, em nenhum momento, o texto original da Carta Magna, bem como a redação original da Lei nº 9.394/96, identificavam o ensino fundamental e mesmo o ensino obrigatório com a faixa etária de sete a quatorze anos, inferia-se tal faixa etária da própria prática adotada em relação à estruturação do ensino de 1º grau no regime jurídico da Lei nº 5.692/71.
Em relação à idade de sete anos para a matrícula no ensino fundamental, tão-somente havia previsão no art. 6º, da LDB, em sua redação original, que era “dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula dos menores, a partir dos sete anos de idade, no ensino fundamental”, enquanto o art.30, da LDB, dispunha que a educação infantil seria oferecida “em creches ou entidades equivalentes, para crianças de até três anos de idade” (inciso I) e em “pré-escolas, para crianças de quatro a seis anos de idade” (inciso II). Da análise conjugada de tais dispositivos, era possível extrair que o ensino fundamental iniciava-se a partir de sete anos de idade, portanto, a idade obrigatória para matrícula no ensino fundamental era a idade de sete anos.
Com o advento da Lei 11.114/2005, que alterou a redação do dispostonos art. 6º e art. 32, caput, da LDB, passou a ser dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula dos menores, a partir dos seis anos de idade, no ensino fundamental, surgindo, então, para o Poder Público o dever de oferecer e garantir a permanência dessa faixa etária na escola. A mencionada Lei nº 11.114/05 alterou apenas a idade de matrícula, mantendo a exigência de duração mínima do ensino fundamental em oito anos letivos.
Por sua vez, a Lei nº 11.274, de 7 de fevereiro de 2006, modificando novamente a redação do art. 32, caput, manteve a idade de matrícula – seis anos, mas ampliou a duração do ensino fundamental para nove anos, confira-se, in verbis:
“Art. 32. O ensino fundamental obrigatório, com duração de 9 (nove) anos, gratuito na escola pública, iniciando-se aos 6 (seis) anos de idade, terá por objetivo a formação básica do cidadão, mediante:
(...)” (grifos acrescidos)
A Lei nº 11.274/06 foi editada com um dispositivo que garantia ao Poder Público um prazo até 2010 para implementação do ensino fundamental nos termos exigidos pela legislação, in verbis:
“Art. 5º Os Municípios, os Estados e o Distrito Federal terão prazo até 2010 para implementar a obrigatoriedade para o ensino fundamental disposto no art. 3º desta Lei e a abrangência da pré-escola de que trata o art. 2º desta Lei.”
Portanto, após a edição da Lei 11.274/2006, ficou facilmente perceptível a presença de três situações jurídicas no ordenamento jurídico: 1) o início do ensino fundamental aos seis anos de idade; 2) a ampliação do período de duração do ensino fundamental para nove anos e 3) um prazo de transição até 2010 para que Municípios, Estados e o Distrito Federal implementassem as alterações decorrentes da nova legislação.
Em seguida, mais precisamente em 11 de novembro de 2009, entrou em vigor a EC nº 59/2009, que, alterando a redação do art. 208, inciso I, CF/88, consubstanciou que, in verbis:
“Art. 208. (...)
I - educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria;
(...)”
Portanto, o Poder Constituinte Derivado, aumentando a garantia de acesso ao ensino, determinou que educação obrigatória não mais se restringe ao ensino fundamental, mas estende-se também à educação infantil em pré-escolas, conforme art. 30, inciso I, LDB, e ao ensino médio, conforme art. 35, LDB.
Determinou ainda o art. 6º, EC nº 59/2009, que o disposto no art. 208, inciso I, CF/88, deverá ser implementado progressivamente, até 2016, nos termos do Plano Nacional de Educação, com apoio técnico e financeiro da União.
3) DO PROGRAMA NOSSA TERRA NOSSA ESCOLA E O ENSINO FUNDAMENTAL OBRIGATÓRIO:
Visando conferir efetividade aos dispositivos constitucionais, dentre eles ao princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil e princípio de onde decorre todos os demais princípios e sub-princípios estabelecidos na Carta Magna e deles decorrentes (princípios implícitos) e a necessidade de inclusão social através do acesso ao ensino fundamental, nos termos do art. 205, CF/88, buscando-se, dessa forma, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, bem como a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais, objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, conforme art. 3º, incisos I e III, CF/88, bem como conferir efetividade aos dispositivos acerca do ensino fundamental previstos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, o Poder Executivo editou a Medida Provisória nº 2.183-56/2001, instituindo, em seu art. 5º, o Programa Nossa Terra Nossa Escola nos seguintes termos, in verbis:
“Art. 5º Fica criado o Programa "Nossa Terra - Nossa Escola", mediante incentivo financeiro a ser concedido às famílias dos trabalhadores rurais beneficiárias dos projetos de assentamento integrantes do programa de reforma agrária, que mantenham todos os seus filhos com idade entre sete e catorze anos na escola, em ensino regular de primeiro grau.
Parágrafo único. O incentivo de que trata este artigo será concedido a cada família beneficiária do programa, sob forma de redução na proporção de cinqüenta por cento do valor da parcela anual do imóvel a esta alienado.”
Analisando o texto do art. 5º da Medida Provisória nº 2.183-56/2011, depreende-se que a norma editada pelo Poder Executivo teve por escopo a adoção de instrumentos capazes de concretizar o acesso ao ensino fundamental a filhos de beneficiários do Programa Nacional de Reforma Agrária, porquanto estabeleceu incentivo financeiro sob a forma de desconto de cinqüenta por cento do valor anual do imóvel às famílias que mantenham seus filhos com idade entre sete e quatorze anos na escola em ensino regular de primeiro grau.
O Programa Nossa Terra Nossa Escola, portanto, configura-se em uma política pública adotada pela União, tendo a Carta Magna e a Lei 9.394/1996 como parâmetros de atuação, que buscou, através da concessão de incentivos financeiros, fazer com que as famílias de assentados mantenham seus filhos nas escolas, pelo menos, durante o período do ensino fundamental.
Chega-se à conclusão que a teleologia da norma foi a manutenção dos filhos de assentados no ensino fundamental porque à época em que foi editada a MP nº 2.183-56/2001 vigia entendimento no sentido de que o ensino fundamental e mesmo o ensino obrigatório identificava-se com a faixa etária de sete a quatorze anos.
Ocorre que, consoante já exposto, a Lei 11.114/2005 – vigente até a entrada em vigor da Lei 12.796/2013 –,ao modificar a redação do art. 6º da Lei 9.394/1996, estabeleceua obrigatoriedade de efetivação da matrícula dos menores a partir dos seis anos de idade e não mais a partir dos sete anos de idade, enquanto a Lei 11.274/2006, modificando a redação do art. 32 da Lei 9.394/1996, aumentou em um ano a duração do ensino fundamental, passando, então, para nove anos de duração e determinou expressamente que o ensino fundamental obrigatório iniciar-se-ia a partir dos seis anos de idade e não mais a partir dos sete anos de idade.
Cumpre trazer à tona que essa mudança de paradigma ampliadora do período de ensino fundamental não foi realizada de modo aleatório, tendo sido calcada na melhor doutrina pedagógica em relação à importância educativa e formativa no desenvolvimento integral das crianças pela oferta da Educação Infantil.
A esse respeito, segue trecho do parecer CNE/CEB nº 39/2006, que trata de consulta sobre situações relativas à matrícula de crianças de seis anos no Ensino Fundamental, in verbis:
“A fixação da idade cronológica de 6 (seis) anos completos para ingresso no Ensino Fundamental não é uma medida aleatória porque está baseada na melhor doutrina pedagógica em relação à importância educativa e formativa no desenvolvimento integral das crianças pela oferta da Educação Infantil.
Por isso mesmo, a atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional determina, em seu art. 21, item I, que a “Educação Básica (é) formada pela Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio” e o art. 29 diz com clareza que “a Educação Infantil, primeira etapa da Educação Básica, tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança até 6 (seis) anos de idade, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade”. E note-se que, aqui, se fala de Educação Infantil, associando-a à ação familiar e comunitária, espaço das aprendizagens espontâneas, enquanto se diz que Ensino Fundamental é espaço escolar em que se desenvolvem as aprendizagens científicas.”
Nessa toada, cabe aqui também transcrever trecho de apostila[1] do Ministério da Educação acerca do Ensino Fundamental de nove anos, in verbis:
“(...) o ensino fundamental de nove anos é um movimento mundial e, mesmo na América do Sul, são vários os países que o adotam, fato que chega até a colocar jovens brasileiros em situação delicada, uma vez que, para continuar seus estudos nesses países, é colocada a eles a contingência de compensar a defasagem apresentada.
(...)
Conforme recentes pesquisas, 81,7% das crianças de seis anos estão na escola, sendo que 38,9%5 frequentam a Educação Infantil, 13,6% as classes de alfabetização e 29,6% já estão no Ensino Fundamental (IBGE, Censo Demográfico 2000).
Esse dado reforça o propósito de ampliação do Ensino Fundamental para nove anos, uma vez que permite aumentar o número de crianças incluídas no sistema educacional.
Os setores populares deverão ser os mais beneficiados, uma vez que as crianças de seis anos da classe média e alta já se encontram majoritariamente incorporadas ao sistema de ensino – na pré-escola ou na primeira série do Ensino Fundamental.
A opção pela faixa etária dos 6 aos 14 anos e não dos 7 aos 15 anos para o ensino fundamental de nove anos segue a tendência das famílias e dos sistemas de ensino de inserir progressivamente as crianças de 6 anos na rede escolar.”
Portanto, em face da mudança da duração do ensino fundamental e da faixa etária desse mesmo ensino, o art. 5º da MP nº 2.183-56/2001 deve compatibilizar-se a esse novo paradigma, posto que, sob uma análise interpretativa teleológica, tem-se que buscou garantir o acesso dos filhos de assentados ao ensino fundamental, que, desde a edição da Lei 11.274/2006, passou a iniciar-se a partir dos seis anos de idade e não mais a partir dos sete anos de idade.
Nessa perspectiva, deve-se ter em mente que o Estado deve procurar sempre a compatibilização das políticas públicas, haja vista que o ordenamento jurídico traduz-se em um sistema, não podendo coexistir nele normas incompatíveis.
Outrossim, não há razoabilidade na adoção de entendimento que para as crianças que não estejam inseridas na realidade dos assentamentos deve-se adotar instrumentos capazes de garantir o acesso ao ensino fundamental a partir dos seis anos, enquanto para as crianças, filhas de assentados, a adoção de instrumentos capazes de viabilizar o acesso ao ensino fundamental deve ocorrer tomando como parâmetro a idade inicial de sete anos, ferindo tal entendimento, por conseguinte, o princípio da isonomia previsto no art. 5º, caput, CF/88.
Portanto, não há necessidade de mudança da redação da Medida Provisória nº 2.183-56/2001 para que os benefícios do Programa Nossa Terra Nossa Escola sejam estendidos às hipóteses de realização de matrículas de crianças a partir dos 6 anos de idade, podendo tal benefício ser estendido sem a necessidade de alteração do mencionado dispositivo, devendo, então, passar o benefício de incentivo financeiro a abranger as famílias dos trabalhadores rurais beneficiárias dos projetos de assentamento integrantes do programa de reforma agrária que mantenham todos os seus filhos com idade entre seis e catorze anos na escola.
4) CONCLUSÃO:
Assim, conforme estudos pedagógicos elaborados, a mudança da idade de início do ensino fundamental objetiva, antes de tudo, a inclusão social, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho, nos termos do art. 205 da Carta Magna e este parâmetro deve ser o parâmetro adotado no Programa Nossa Terra Nossa Escola, assegurando-se, dessa forma, a compatibilização das normas legais – MP nº 2.183-56/2001 e Lei 9.394/1996 -, das políticas públicas e o respeito ao princípio da isonomia.
[1]Disponível em: <http//portal.mec.gov.br> Acesso em 2 de junho de 2011.
Procuradora Federal atuante no Incra/Sede.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LUCENA, Danielle Cabral de. O Programa Nossa Terra Nossa Escola e a influência das mudanças constitucionais e legais posteriores à sua implementação Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42452/o-programa-nossa-terra-nossa-escola-e-a-influencia-das-mudancas-constitucionais-e-legais-posteriores-a-sua-implementacao. Acesso em: 23 dez 2024.
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