1) INTRODUÇÃO:
Os direitos conferidos aos idosos para fins de assegurar a sua convivência digna em sociedade, com a garantia de respeito, solidariedade e reverência a essas pessoas, devem ser observados tanto no plano horizontal quanto no plano vertical – eficácia horizontal e vertical dos direitos fundamentais, obrigando não apenas o Poder Público, mas todos os membros da sociedade.
Esses direitos configuram-se como direitos de terceira dimensão e visam assegurar mecanismos de proteção, de integração e de respeito às peculiaridades fisiológicas, psicológicas e sociológicas inerentes à idade desse grupo social vulnerável.
A entrada em vigor do Estatuto do Idoso veio exatamente minudenciar, conformar e delinear os direitos desse grupo diferenciado de pessoas previstos genericamente na Constituição Federal.
Não se perde de vista, portanto, que as diversas leis e regramentos jurídicos infraconstitucionais que integram o ordenamento jurídico brasileiro devem sofrer influxos do Estatuto do Idoso, porém, o intérprete ao analisar a irradiação de efeitos provenientes do Estatuto do Idoso está adstrito a limites, já que a análise não pode levar o intérprete a atuar como legislador positivo, sob pena de ofensa ao princípio da separação dos poderes.
2) A REFORMA AGRÁRIA E O ESTATUTO DO IDOSO:
2.1) HISTÓRICO:
A desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária surgiu, primeiramente, na Constituição de 1946, e, com o escopo de regulamentá-la, foi editada a Lei 4.504/64 – Estatuto da Terra, a qual previu entre os meios de acesso do Poder Público às terras destinadas à reforma agrária, a desapropriação por interesse social (art. 17, alínea a), enquanto em seu art. 18 estabeleceu os objetivos da desapropriação por interesse social.
A modalidade de desapropriação acima mencionada foi mantida pela Constituição de 1967, e, em 25 de abril de 1969, sobreveio o Ato Constitucional nº 9, modificando, novamente, os dispositivos constitucionais fundamentais e reguladores do instituto da desapropriação para os fins de reforma agrária e a principal mudança consistiu na eliminação da palavra “prévia” do texto constitucional, assim, a partir de tal marco temporal, a indenização permanecia conectada ao adjetivo “justa”, porém, não necessitava mais ser prévia.
Em seguida, mais precisamente em 17 de outubro de 1969, entrou em vigor a Emenda Constitucional nº 1, modificando profundamente a Constituição de 1967, porém, em relação à modalidade de desapropriação objeto do presente estudo, não houve modificação acerca de seu disciplinamento.
Assim, segundo explanação de Edilson Pereira Nobre acerca do regime anterior, “a desapropriação para fins de reforma agrária por interesse social incidia sobre propriedades rurais, insertas em zonas prioritárias, fixadas por decreto do Poder Executivo, cuja forma de exploração não atendesse aos princípios indicadores da ordem econômica e social. A indenização, no que concernia aos latifúndios, seria solvida em títulos da dívida pública, resgatáveis no prazo de vinte anos, com cláusula de exata correção monetária, ressalvadas as benfeitorias necessárias e úteis, indenizáveis em dinheiro”.
Em termos de legislação infraconstitucional, o Estatuto da Terra ao regulamentar o instituto da reforma agrária, trouxe no art. 25 a previsão do instituto da preferencialidade, senão vejamos:
“Art. 25. As terras adquiridas pelo Poder Público, nos termos desta Lei, deverão ser vendidas, atendidas as condições de maioridade, sanidade e de bons antecedentes, ou de reabilitação, de acordo com a seguinte ordem de preferência:
I - ao proprietário do imóvel desapropriado, desde que venha a explorar a parcela, diretamente ou por intermédio de sua família;
II - aos que trabalhem no imóvel desapropriado como posseiros, assalariados, parceiros ou arrendatários;
III - aos agricultores cujas propriedades não alcancem a dimensão da propriedade familiar da região;
IV - aos agricultores cujas propriedades sejam comprovadamente insuficientes para o sustento próprio e o de sua família;
V - aos tecnicamente habilitados na forma dá legislação em vigor, ou que tenham comprovada competência para a prática das atividades agrícolas.
§ 1° Na ordem de preferência de que trata este artigo, terão prioridade os chefes de família numerosas cujos membros se proponham a exercer atividade agrícola na área a ser distribuída.
§ 2º Só poderão adquirir lotes os trabalhadores sem terra, salvo as exceções previstas nesta Lei.
§ 3º Não poderá ser beneficiário da distribuição de terras a que se refere este artigo o proprietário rural, salvo nos casos dos incisos I, III e IV, nem quem exerça função pública, autárquica ou em órgão paraestatal, ou se ache investido de atribuições parafiscais.
§ 4º Sob pena de nulidade, qualquer alienação ou concessão de terras públicas, nas regiões prioritárias, definidas na forma do artigo 43, será precedida de consulta ao Instituto Brasileiro de Reforma Agrária, que se pronunciará obrigatoriamente no prazo de sessenta dias.”
A Constituição Federal de 1988, promulgada em 5 de outubro de 1988, conferiu novo delineamento jurídico-constitucional ao instituto da reforma agrária, posto que segundo o sistema atual, o imóvel rural, descumpridor da função social e desde que não esteja gravado pela cláusula da inexpropriabilidade, nos termos do art. 185, inciso I e II, poderá ser desapropriado por interesse social para fins de reforma agrária, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, consoante art. 184.
Em 26 de fevereiro de 1993, com o escopo de regulamentar os dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária, previstos no Capítulo III, Título VII, da Constituição Federal, entrou em vigor a Lei 8.629.
A supramencionada Lei também trouxe em seu bojo o instituto da preferencialidade, porém, com algumas modificações decorrentes do novo regime constitucional, vejamos:
“Art. 19. O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente de estado civil, observada a seguinte ordem preferencial:
I - ao desapropriado, ficando-lhe assegurada a preferência para a parcela na qual se situe a sede do imóvel;
II - aos que trabalham no imóvel desapropriado como posseiros, assalariados, parceiros ou arrendatários;
III – aos ex-proprietários de terra cuja propriedade de área total compreendida entre um e quatro módulos fiscais tenha sido alienada para pagamento de débitos originados de operações de crédito rural ou perdida na condição de garantia de débitos da mesma origem; (Inciso incluído pela Lei nº 10.279, de 12.9.2001)
IV - aos que trabalham como posseiros, assalariados, parceiros ou arrendatários, em outros imóveis; (Inciso renumerado pela Lei nº 10.279, de 12.9.2001)
V - aos agricultores cujas propriedades não alcancem a dimensão da propriedade familiar; (Inciso renumerado pela Lei nº 10.279, de 12.9.2001)
VI - aos agricultores cujas propriedades sejam, comprovadamente, insuficientes para o sustento próprio e o de sua família. (Inciso renumerado pela Lei nº 10.279, de 12.9.2001)
Parágrafo único. Na ordem de preferência de que trata este artigo, terão prioridade os chefes de família numerosa, cujos membros se proponham a exercer a atividade agrícola na área a ser distribuída.”
Portanto, consoante explanação acima, o instituto da preferencialidade foi positivado no ordenamento jurídico antes mesmo da entrada em vigor da Lei 8.629/93, porém, a conexão desse instituto com o regramento jurídico protetivo das pessoas com idade igual ou superior a 60 anos é tema novo e que merece ser analisado.
2.2) DOS DIREITOS DOS IDOSOS:
Os idosos devido às modificações físicas, biológicas e sociológicas pelas quais passam em função do tempo de vida, devem ter tratamento protetivo, garantido pelo ordenamento jurídico, capaz de concretizar o princípio da igualdade em seu aspecto material.
Nessa linha, a Constituição Federal de 1988 traz disposições genéricas aplicáveis também aos idosos, a título de exemplo, tem-se o princípio da dignidade da pessoa humana – art. 1º, inciso III e o objetivo de promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação – art. 3º, inciso IV.
A par das disposições genéricas, a Constituição Federal de 1988 também trouxe disposições específicas aplicáveis aos idosos, basta observar o artigo 229, que estabelece aos filhos maiores o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade, bem como o artigo 230 que estipula que a família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas.
Assim, com o objetivo de regulamentar a proteção do idoso prevista na Carta Magna, veio a lume a Lei 8.842/94 – “Dispõe sobre a política nacional do idoso, cria o Conselho Nacional do Idoso e dá outras providências”.
Após, veio à tona o Estatuto do Idoso – Lei 10.741/2003 – destinado a regulamentar os direitos assegurados às pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, conforme disposto no art. 1º.
A esse respeito, faz-se mister transcrever aqui o art. 3º da Lei 10.741/2003, posto que tem correlação com o tema aqui tratado, vejamos:
“Art. 3º É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.
Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:
I – atendimento preferencial imediato e individualizado junto aos órgãos públicos e privados prestadores de serviços à população;
II – preferência na formulação e na execução de políticas sociais públicas específicas;
III – destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção ao idoso;
IV – viabilização de formas alternativas de participação, ocupação e convívio do idoso com as demais gerações;
V – priorização do atendimento do idoso por sua própria família, em detrimento do atendimento asilar, exceto dos que não a possuam ou careçam de condições de manutenção da própria sobrevivência;
VI – capacitação e reciclagem dos recursos humanos nas áreas de geriatria e gerontologia e na prestação de serviços aos idosos;
VII – estabelecimento de mecanismos que favoreçam a divulgação de informações de caráter educativo sobre os aspectos biopsicossociais de envelhecimento;
VIII – garantia de acesso à rede de serviços de saúde e de assistência social locais.
IX – prioridade no recebimento da restituição do Imposto de Renda. (Incluído pela Lei nº 11.765, de 2008).”
Diante da existência do instituto da preferencialidade no âmbito da Reforma Agrária e diante de leis que albergam medidas protetivas direcionadas aos idosos e que estão em consonância com os valores consagrados pela Constituição Federal, buscar-se-á no subtópico seguinte uma análise jurídica que tenha o condão de harmonizar tais preceitos, sem, descuidar, em nenhum momento, da impossibilidade do intérprete fazer as vezes de legislador.
2.3) O INSTITUTO DA PREFERENCIALIDADE (REFORMA AGRÁRIA) E OS DIREITOS DOS IDOSOS:
Em primeiro plano, cumpre analisar o objetivo do elenco de preferência estabelecido no art. 19, Lei 8.629/93, para que, assim, seja possível fazer uma conexão com os direitos previstos na Lei 8.842/94 e na Lei 10.741/2003.
Nesse passo, a mens legis do art. 19 da Lei 8.629/93 está em plena sintonia com o conceito de Reforma Agrária previsto no art. 1º, §1º, Lei 4.504/64, porquanto tal conceito está relacionado com a necessidade de realização de mudanças efetivas no regime de propriedade, uso e posse da terra, com o tríplice objetivo de estimular o aumento da produtividade, atender aos princípios da justiça social e promover o equilíbrio da estrutura fundiária e o art. 19 da Lei 8.629/93 traz em seu bojo uma ordem de preferencialidade que tem o condão de beneficiar exatamente aqueles que labutam em imóveis rurais para que seja efetivamente observado o tríplice objetivo retrocitado.
Assim, a Lei 8.629/93 deve necessariamente sofrer os influxos normativos advindos da Lei 10.741/2003, porém, sem descuidar dos seus objetivos.
Destarte, é que assegurar aos idosos benefícios no Programa Nacional de Reforma Agrária tem estrita correlação com o dever da sociedade e do Estado de garantir ao idoso “todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade” - art. 2º, Lei 10.741/2003.
Ocorre que, consoante já dito, o benefício relacionado à prioridade na aquisição de lote deve estar em sintonia com a mens legis do art. 19, Lei 8.629/93.
Destarte, alçar o idoso à primeira ordem de preferência do art. 19, Lei 8.629/93, sem perquirir algum tipo de conexão da referida preferencialidade com o labor rural fere a mens legis do art. 19, Lei 8.629/93 e leva a uma atuação do intérprete como legislador positivo, restando invadida, dessa forma, a esfera de atuação reservada constitucionalmente ao Poder Legislativo.
Portanto, a interpretação que melhor traduz a harmonia que deve existir entre o art. 19 da Lei 8.629/93 e os preceitos consubstanciados na Lei 10.741/2003 é aquela que utiliza a idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos como critério de desempate.
A título ilustrativo, suponhamos, hipoteticamente, que existam apenas 4 lotes a serem destinados e 5 pessoas na ordem de preferência do inciso II, art. 19, Lei 8.629/93 e, dentre essas pessoas, haja uma pessoa com idade igual ou superior a 60 anos, o primeiro lote deve ter essa pessoa como beneficiária exatamente porque o critério de desempate deve ser a idade.
O critério de desempate deve observar sempre a classe de preferência em que o idoso enquadra-se, não podendo, destarte, o idoso que se enquadra no inciso IV do art. 19 concorrer com as pessoas que se enquadram nos incisos I, II e III do art. 19.
3) CONCLUSÃO:
Não há como incluir, através de via interpretativa, um novo inciso ao art. 19, Lei 8.629/93, de modo que os idosos estejam incondicionalmente na classe I de preferência para aquisição de lote e, por consequência, para o recebimento do título de domínio ou da concessão de uso referente ao lote, porém, a idade deve ser utilizada como critério de desempate.
Eventual mudança na ordem preferencial para fins de inclusão do idoso na classe de prioridade I tão-somente poderá advir de alteração legislativa.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
- Nobre Júnior, Edilson Pereira. Desapropriação para fins de reforma agrária. 3 ed. Curitiba: Juruá, 2008, 38 p.
Procuradora Federal atuante no Incra/Sede.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LUCENA, Danielle Cabral de. Os influxos do Estatuto do Idoso sobre o Artigo 19 da lei 8.629/1993 (Instituto da Preferencialidade) Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 dez 2014, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42477/os-influxos-do-estatuto-do-idoso-sobre-o-artigo-19-da-lei-8-629-1993-instituto-da-preferencialidade. Acesso em: 23 dez 2024.
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